terça-feira, janeiro 30, 2007

Primeiro a do Caçador de Pipas, depois a do Neve

O livro favorito de Hassan era o Shahnamah, a epopéia dos antigos heróis persas do século X. Gostava de todos os capítulos, os shahs do passado, Feridoun, Zal e Rudabeh. Sua História Favorita, porém, e minha também, era “Rostam e Sohrab”, um conto sobre o grande guerreiro Rostam e seu cavalo velocíssimo, Rakhsh. Durante uma batalha, Rostam fere mortalmente seu valente adversário, Sohrab, e acaba descobrindo que o rapaz é, na verdade, o filho que tinha perdido há muito tempo. Atormentado pela dor, Rostam ouve as últimas palavras do filho moribundo:

Se sois efetivamente meu pai, então manchastes vossa espada com o sangue do vosso filho. E fizestes isto por vossa própria obstinação. Pois procurei convertê-lo ao amor e implorei chamando o vosso nome, já que julguei encontrar em vós as qualidades de que minha mãe tanto falava. Mas foi em vão que apelei para vosso coração, e, agora, é tarde demais para qualquer aproximação...

- Leia outra vez, por favor, Amir agha – dizia Hassan. Às vezes ficava com os olhos cheios de lágrimas enquanto eu lia a passagem e, nessas horas, sempre me perguntei por quem ele estaria chorando: seria pelo sofrimento de Rostam, que rasga as próprias roupas e cobre a cabeça com cinzas, ou pelo moribundo Soharab, que só desejava o do pai? Eu, pessoalmente, não era capaz de perceber a tragédia do destino de Rostam. Afinal de contas, todos os pais, no fundo de seu coração, não abrigam o desejo de matar os filhos?


***

“Há muito, muito tempo atrás houve um guerreiro incansável, corajoso como ninguém, que vivia no Irã. Todos os que o conheciam o amavam. Eles o chamavam Rüstem, e assim também o chamaremos. Certo dia, quando caçava, ele se perdeu na floresta, e à noite, enquanto dormia, perdeu o cavalo. Enquanto procurava Raksh, seu cavalo, Rüstem foi parar em Turan, que era uma terra inimiga. Mas como sua fama o precedeu, eles o trataram bem. O xá de Turam acolheu-o como hóspede e organizou uma festa em sua homenagem. Depois da festa a filha do xá procurou Rüstem em seu quarto para declarar seu amor por ele. Ela lhe disse que queria ter um filho seu. Ela o seduziu com sua beleza e com suas belas palavras, e logo os dois estavam fazendo amor.

“Na manhã seguinte, Rüstem voltou para seu país, mas deixou uma lembrança – um pequeno bracelete – para que o filho que ia nascer. Quando a criança nasceu, chamaram-no Suhrab, então assim também vamos chamá-lo. Anos depois, sua mãe lhe contou que seu pai eram ninguém menos que o legendário Rüstem. ‘Eu vou para o Irã’, disse o rapaz, ‘para deporo perverso xá Keykavus e colocar meu pai no lugar dele... e então vou voltar para Turan e fazer exatamente a mesma coisa com o perverso xá Efrasiyab, e quando tiver feito isso, assumo o lugar dele. E então meu pai Rüstem e eu reinaremos com justiça sobre o Irã e Turan – em outras palavras, todo o universo!’

“Assim falou o puro e generoso Suhrab, mal sabendo que seu inimigos eram muito mais espertos e astutos que ele. Porque Efrasiyab, o xá de Turan, dava seu apoio na guerra contra o Irã, mas ao mesmo tempo colocou espiões no exército para garantir que Suhrab não iria reconhecer o pai.

“Depois de muitas trapaças, astúcias, cruéis reviravoltas do destino e coincidências, tramadas todas elas, ao que ele sabia, pelo Sublime Todo-Poderoso, chegou o dia em que Suhrab e seu pai Rüstem se viram face a face no campo de batalha, cada um com um exército atrás de si. Nenhum dos dois conhecia o rosto do outro, mas pouco importa: ambos estavam com armadura – e nem é preciso dizer que não se reconheceram. Rüstem, naturalmente, desejava continuar anônimo dentro da sua armadura: do contrário, quele herói à sua frente poderia investir com toda a sua fúria e sua força especialmente contra ele, Rüstem. Quanto a Suhrab, seu coração infantil só parava para se perguntar quem era seu adversário. E assim aconteceu que esses dois grandes e generosos guerreiros, que eram pai e filho, à frente de seus respectivos exércitos e observados por eles, lançaram-se para a frente e sacaram suas espadas.”

Azul fez uma pausa. Antes de olhar Ka nos olhos, acrescentou numa voz infantil: “Embora eu tenha lido essa história centenas de vezes, sempre sinto um arrepio ao chegar nessa parte, e meu coração dispara. Não sei porque, mas por alguma razão me identifico com suhrab quando ele se preara para matar o pai. Quem poderia querer matar o próprio pai? Que alma poderia suportar a dor desse crime, o peso desse pecado? Especialmente meu próprio Suhrab com seu coração inocente! A única esperança é que a essa altura Suhrab mate seu adversário sem saber quem ele é”.

“Enquanto esses pensamentos perpassam minha cabeça, os dois guerreiros começam a lutar, e numa luta que dura horas nenhum dos dois consegue derrotar o outro. Molhados de suor e exaustos, eles embainham suas espadas. Quando chegamos ao anoitecer do primeiro dia, estou tão preocupado pelo pai, como pelo filho, e quando continuo a história, é como se eu a estivesse lendo pela primeira vez. Ouso sonhar que o pai e o filho não serão capazes de matar um ao outro e encontrarão alguma forma de contornar aquela terrível situação.

“No segundo dia, os dois exércitos se alinham mais uma vez, e mais uma vez o pai e o filho, protegidos por suas armaduras, travam um combate implacável. Depois de uma longa luta, a sorte sorri para Suhrab – mas podemos chamar isto de sorte? – e ele derruba Rüstem do cavalo e o imobiliza no chão. Ele saca da espada e, quando está prestes a cortar o pescoço do pai, falam para ele: ‘No Irã um herói não costuma cortar a cabeça de um inimigo na primeira ocasião. Não o mate; seria cruel demais’. Então Suhrab não mata o pai.

“Quando leio essa parte fico muito confuso. Sinto muito amor por Shrab. Qual o sentido desse destino que Deus traçou para esse pai e esse filho? Quanto ao terceiro dia de luta, um dia que esperei com tanta ansiedade – contra todas as minhas expectativas, ele acaba num instante. Rüstem derruba Suhrab do cavalo e, slatando para a frente, enfia a espada nele e o mata. A rapidez desse ato é terrível, chocante. Quando vê o bracelete e se dá conta de que matou o filho, Rüstem se ajoelha, toma nos braços o corpo do filho e chora.”

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Shahnameh


Este é o nome de uma coletânia de épicos persas, escritos por volta do ano 1000 por um certo Ferdosi. É enorme. Curiosamente, uma de suas histórias, a de Sohrab, é uma referência importante não só do "Neve", do Orhan Pamuk, o turco ganhador do Nobel 2006 de literatura, como do manjado "O Caçador de Pipas", do afegão Khaled Housseini, que eu li neste último feriado.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Controle

Entreguei todos os meios de comunicação à distância da minha casa a uma operadora de tv a cabo. Telefone, tv e internet. Numa perspectiva paranóica, supondo que eles (paranóico sempre fala “eles”) auscultassem tudo o que se passa na minha casa, aprendessem nossos hábitos de consumo de cultura e de contato, identificassem as nossas redes sociais, saberiam exatamente quem é aquele cara, cujo cadastro tem em mãos. Foda, né? Uma parte disso eles podem fazer sem violar (isso é uma palavra) a minha privacidade tantas vezes remendada.

Acabei de assistir “Pequena Jerusalém”, um filme cabeça sobre o autocontrole, entre outras grandes questões.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

One nesgow

Os livros de aventura que eu li na minha primeira adolescência, depois do Monteiro Lobato e assemelhados, foram os de uma coleção de quarenta e oito volumes de Júlio Verne (hoje não se traduz mais nome próprio, seria Jules), que eu escolhia pelo título, e de uma coleção de Tarzan, Terramarear, assim, tudo junto. Depois passei para os que tinham, preferencialmente, cenas de sexo, como os de Jorge Amado, e best-sellers americanos da década de setenta, como “Os Insasciáveis”, título cheio de promessas efetivamente cumpridas. O Zorro da Isabel Allende é um nascido clássico da literatura de ação. O peso do livro é centrado na formação do herói, como ele adquiriu suas inúmeras habilidades, um engenharia reversa muito bem encaixada. A esgrima, o cavalo, o chicote, as cordas, as alturas, a roupa preta, a personalidade dividida e sorrateira. E também o contexto é muito bem construído, de um ponto de vista de uma socialista da América Latina, no ocaso das monarquias absolutas da Europa, a libertação das colônias e a formação da república moderna. Claro que numa visão idealista e utópica de justiça social, como convém aos muito jovens, a quem é dirigido, com um balizamento histórico sério. E por ser escrito por uma moça, o cotê romântico do Zorro é tão importante quanto sua atuação como herói.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

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É, a virada do ano não foi fácil, fui acometido de uma macunaímica preguiça de blogar. Não será certamente falta de assunto, na pior das hipóteses a função diário preenche qualquer espaço, disfarçar os fatos potencialmente constrangedores revelando o máximo possível, e tentar não enfeitar a jogada, mas mostrar o que há de interessante na morbidez do cotidiano. O fato é que quando não estou cansado não tenho tempo, e quando tenho tempo estou cansado, ou simplesmente com preguiça. Poderia também falar os outros hits de natal que eu li, “A Neve”, de Orhan Pamuk, e “Zorro” de Isabel Allende, se não estivesse com tanta preguiça. E ainda as cambaleantes tentativas culinárias, os espaçados excessos alcoólicos, o remo intermitente das férias, ou só uma pausa de mil compassos, como diz o Paulinho da Viola.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Vendeta

Uns três ou quatro anos atrás minha filha teve que ler para o colégio uma interessantíssima história de amor passada no Cáucaso, no começo do século XX, do qual acabamos lendo todos juntos boa parte em voz alta numa longa viagem de carro. Foi em “Ali e Nino”, de Kurban Said, que eu achei uma boa explicação para a vendeta. Na guerra entre clãs, quando um membro é morto, cria-se uma desvantagem numérica que deve ser compensada, matando-se um membro do outro clã. E se o morto ainda não procriou, a desvantagem se multiplica. É a morte justa, segundo os padrões tribais. Imagino que esta deve ser a origem da pena de morte, um resquício desta compensação, agora inútil e desnecessária. O respeito incondicional à vida é um dos principais esteios do contrato social moderno, e as exceções como o aborto e a pena de morte são perigosíssimas, brechas por onde a arbitrariedade sobre-humana pode se infiltrar. Nunca acreditei que as penas físicas ou de restrição da liberdade tenham um efeito retributivo. Ninguém paga nada na cadeia, não faz sentido imaginar que o sofrimento do criminoso causa qualquer benefício à sociedade, sobrando de útil só o duvidoso caráter educativo em mostrar que o crime não compensa. O dano do crime só pode ser indenizado em dinheiro, na estranha matemática da avaliação das vidas, membros e faculdades, e traumas. Claro que bandido perigoso não pode andar solto, e assim fica preso por um prazo que se presume suficiente para a reabilitação, de acordo com a gravidade da ofensa, como o castigo “para pensar” das crianças. Pra mim também é claro que o criminoso precisa de ajuda. Salvo os doentes mentais, ninguém se exclui da sociedade – a terrível conseqüência do crime – sem um motivo grave. Também acho difícil convencer alguém com uma formação moral fraca a se contentar com um trabalho braçal remunerado com salário mínimo, ou suportar pacificamente o drama do desemprego, enquanto sujeitos como o Cinqüenta Centavos, o rapper americano, declamam canções dizendo “fique rico ou morra tentando”. Mas estou tegiversando. Porque mataram o Saddam mesmo?