quinta-feira, dezembro 29, 2005

Um flarte com a morte

Acabei de ler “As intermitências da morte”, do José Saramago. É um livro engraçadíssimo, com sérias reflexões sobre grandes questões filosóficas, e finas ironias contra o estado e a igreja, que parte de um plano amplo, com personagens apenas esboçados, e vai fechar o foco apenas na última parte. Não conto nada pra não estragar o suspense, mas recomendo enfaticamente. É ótimo. É escrito em português de Portugal, e o autor fez questão de que não fosse traduzido para o brasileiro, mesmo na edição daqui. Então temos ideia sem acento (cá entre nós, bastante inútil), excepção, facto, as sanduíches, gadanha (o instrumento da morte, aquela foice de cabo longo com uma manete à meia altura, que em São Paulo se chama de alfange), o pequeno ecrã (a tela da tv) e outras curiosidades vernaculares. Quanto à sintaxe, chuto que o Saramago, do alto de sua autoridade de autor laureado e parâmetro da norma culta, ao pontuar e usar as maiúsculas contrariando as regras faz uma declaração de princípios sobre o uso da língua, e não apenas uma manifestação de estilo artístico. Tenha em mãos a trilha sonora. Um personagem é construído a partir de um estudo de Chopin, Opus 25, 9, de cinqüenta e oito segundos. E fundamental mesmo é a Suíte nº. 6, BWV 1012, citada a interpretação do Rostropovitch (incrível como os solos de violoncelo de Bach estão por toda parte, ultimamente). É um longo poema em prosa, em que o cinismo cáustico evolui para uma pungente situação íntima, na qual o flarte (de flirt, flerte) com a morte acaba por dar sentido à vida.

sábado, dezembro 24, 2005

No direction home


Meu primeiro Bob Dylan foi o Desire. Claro que eu já conhecia os seus clássicos, achava legais e coisa e tal, mas nunca me ocorreu comprar os discos. É um acetato grosso com o selo laranja da Columbia, comprado em 76. Na época eu escutava rock, Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Deep Purple, Rolling Stones, essas coisas. Daí um dia eu ouvi no rádio “Hurricane”, recém lançada. Adorei na hora e fui correndo comprar. Não entendia nada do que ele cantava, mas tava na cara que era uma história triste e interessante, de um lutador de box chamado Hurricane preso injustamente. O senso dramático está presente desde o timbre e a levada precisa dos acordes menores no violão, no riff do violino, a bateria com escovinha, mas principalmente a entonação de quem tem alguma coisa muito importante pra dizer. Um testemunho emocionado e contagiante. Inspirador é talvez o comentário que mais aparece no “No direction home”, o super-documentário do Scorcese, de quatro horas, quando os entrevistados tentam defini-lo, e que eu assisti ontem (desculpe Robertão, mais um ano sem ver o seu especial de natal).

É sobre os primeiros anos do artista-herói. A formação musical na cidadezinha moribunda em Minnesota, ilustrada com trechos das interpretações dos discos de seu pai e das outras influências. O esforço pra sair de lá, os truques e mentiras, os discos roubados, a negação da origem judaica, e a construção do personagem Bob Dylan. O modelo decalcado foi o Woody Guthrie, de quem aprendeu todas as músicas, o que lhe valeu a entrada na cena folk do Village em Nova Iorque, gravando o primeiro disco em 1961, sem nenhuma composição, já por uma grande gravadora, totalmente moleque. As primeiras composições, ser sugado para o movimento dos direitos civis, mais pela turma que ele andava do que por vontade própria. E aí vem a revelação ou a tese do documentário, que é o mais interessante de tudo. Tudo o que ele queria ser era um deus pop, totalmente entregue às canções, e nunca pensou em ter uma atuação política. Seu modelo estético é calcado nos grandes artistas country, que nada têm a ver com o folk, misturado com o Woody Guthrie. É um personagem que renega o seu passado, sem lar e sem família, entregue à aventura beatnik e um trabalhador incansável. Aprendeu todas as músicas que pôde, e compunha furiosamente. Sugava tudo o que encontrava como uma esponja – há um depoimento nesse sentido – e depois dos Kerouac, Ginsberg, lia toda poesia que caía na sua mão, os da sua língua, entre os quais o de quem pegou o nome, os malditos franceses, tudo o que trombava nas suas andanças pelo Village. Aprendeu a escrever de modo incompreensível e enigmático, e cantava com a entonação profética que o transformou no “porta-voz de uma geração”. Imagens e histórias. Interpretava as canções com um olhar de louco perdido no vazio revirando os olhos e a cabeça jogada pra trás. O máximo.

A impressão que o documentário dá é que ele ficou aprisionado na tal da cena folk, dos músicos “íntegros” que pouco compunham e executavam música antiga folclórica, intelectuais do bairro boêmio, comunistas engajados em uma luta política. Depois de super-exposto na luta dos direitos civis e conquistar o sempre negado título de líder porta-voz cantor de música de protesto, Dylan, ao atingir precocemente sua maturidade como artista, em 1965 começa a eletrificar a sua música, levando ao festival folk de Newport a banda de rock que gravou o 61 Highway Revisited (Like a Rolling Stone), com o super guitarrista Mike Bloomfield. Foi patrulhado e perseguido pela turma do violãozinho, vaiado, e tocou só três músicas. No ano seguinte, 66, montou uma super turnê européia com a banda que viria a ser The Band, com um afiadíssimo som elétrico, um repertório de meter medo – pelo que eu entendi uma parte do show era violão e voz e outra com a banda – terninhos dos melhores estilistas do mundo do rock, reclamando por direito o seu lugar no panteão pop. Foi patrulhado, perseguido e vaiado na Europa inteira. Ficou oito anos sem sair em turnê.

A sensação que eu fiquei é que ele fez um enorme esforço para ser uma estrela pop, e quando chegou lá, a via de acesso que ele usou, que foi a oportunidade que lhe apareceu, puxou-lhe o tapete. Não escrevia para mudar o mundo, fazer política e liderar uma geração. Ele explicitamente nega isso em todas as oportunidades. Mas sobre si e sobre a sua odisséia ao olimpo pop. Pra mim, quando ele pergunta, “How does it feel, to be without a home, like a rolling stone”, está falando de si mesmo. Nessa época, os Rolling Stones dominavam as paradas. Assim como quando cantou “how many roads must a man walk down, before he call him a man”, falava de si próprio e da distância que estava da sua meta. A Revolução é pessoal.

sexta-feira, dezembro 23, 2005

A salvação da alma (post de natal)

Pois é. Porque a alma precisaria de salvação? Porque a salvação se daria através do simbólico sacrifício de um humano, imolado como um bode de macumba? Essa a salvação temporária, de todo dia, arroz-com-feijão. A definitiva, após a morte, a ressurreição e a vida eterna. E ainda, depois de depois da morte, o apocalipse e a ressurreição de toda a humanidade, para todo o sempre. Haja pecado. O original, a prova do fruto do conhecimento, a consciência racional de nós mesmos. Abdicamos de ser budas, como os animais, pelo uso da palavra. O famoso verbo. Depois, os capitais, tabus de convivência a serem quebrados no cotidiano, a angustiante respiração de controle dos instintos do civilizado. Impulso, pecado, culpa, arrependimento, perdão, impulso, pecado, culpa, arrependimento, perdão. Acredito que nós humanos nunca ficaremos prontos, estamos sempre evoluindo, e nesse processo a religião cristã foi um salto à frente. É uma visão otimista. O deus-juiz que pune e perdoa, antes externo e paternal, depois de Cristo foi introjetado e agora faz parte de nós. Deus e o demônio, a luz e a sombra, convivem dentro de nós, em uma luta constante. Impulso, pecado, culpa, arrependimento, perdão. Os dogmas da religião são pacotes psicológicos que preenchem lacunas filosóficas e têm uma função nesse processo, de construção da civilização e da cultura. Cá pra mim, o apocalipse já aconteceu e não precisamos mais da religião, que não consegue mais cumprir o seu papel. Só nos resta a ética. Mas vamos festejar o nascimento do cordeiro que assassinaremos na páscoa, como fazemos todo ano, convenientemente marcando a virada do odômetro do calendário gregoriano. Vamos festejar mais uma circunvolução da Terra em volta do Sol. Vamos encher a cara, abraçar a família no natal, os amigos no reveillon, e começar, leves e zerados, outro ano.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

G, o gênio do boteco

Como o G, o gênio do boteco, causou forte impressão com maravilhoso refrão carnavalesco “hoje eu vou morder seu silicone”, e atendendo a pedidos traço aqui um breve perfil deste fascinante personagem. Se alguém perceber de quem se trata, favor não comentar nem dar bandeira, porque o G abomina publicidade.

Conheço o G há muitos e muitos anos, desde o ginásio, mas fiquei amigo dele mesmo depois que saímos da escola e nos estabelecemos em escritórios próximos. Passamos a nos encontrar para drinks no fim da tarde com regularidade há mais de vinte anos. No começo éramos jovens fortes e metidos, e tomávamos principalmente uísque, o que engendrava uma velocidade de embebedamento um pouco alta, e o porre total era mais ou menos freqüente. Os locais e os outros convivas variavam mas a falta de outras companhias nunca nos impediu de beber e falar bobagem. Com o tempo fomos deixando o uísque em favor do chopp, que permite uma relação permanência na mesa/estrago um pouco mais branda.

G tem uma característica. Não sei bem porque, mas desconfio que seja uma ressonância telepática com as pessoas do seu entorno próximo. Depois do quarto ou quinto uísque ou o equivalente em álcool de outra bebida, G às vezes se transforma. Como que possuído por um ente sobrenatural, ou como quando o Hulk fica nervoso, ou o Popeye come espinafre, ou o Jerry Lewis em “Professor Aloprado” toma o elixir de Buddy Love, G começa a interagir com as pessoas ao seu redor, conhecidas ou não, fazendo uma espécie de stand-up comedy ou teatro do improviso, ou um sermão de Vieira, um advogado no júri, tomado da convicção dos loucos, contando um caso escabrosíssimo, fazendo considerações filosóficas, sociológicas, e políticas, imitando Miltinho, Elvis ou Dick Farney e Lúcio Alves, com sua sonora voz de cantor inato, ou outra loucura qualquer. Uma vez o vi manipular um bar inteiro lotado, na época da novela “A próxima vítima”, em que cada mesa esperava ansiosamente a sua vez. Outra, ele subiu em cima do piano de meia-cauda e de lá fazia o seu número. Em outra ainda, caiu com a cadeira e tudo de costas no chão, e continuou o seu discurso na horizontal, por um bom tempo, como se nada houvesse acontecido.

Claro que são eventos raros, como os abalos sísmicos, os furacões, e outras manifestações telúricas, sem nenhuma regularidade, que acontecem uma vez por ano ou menos ainda. G é um responsável chefe de família, bom pai, bom marido e bom filho, bem educado e cordato, e até bastante discreto. Naturalmente é inteligente, criativo e engraçado. E não tem nada de louco, embora nesses momentos especiais, com os olhos arregalados e o sampacu acentuado, a sua expressão fique um pouco assustadora.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Carnaval 2006

Ontem, afogando as mágoas do bom velhinho, que este ano não trará o presente que eu pedi (será que eu não fui um bom menino?), em meio a uma enxurrada de idéias imbecis surgiu uma pérola antropofágica, que se o Chacrinha estivesse vivo, e o carnaval de marchinhas ainda existisse, valeria milhões de dólares. Uma criação do G, de gênio do boteco, e minha (só fiz a rima óbvia):

Eu hoje vou morder seu silicone
Tô com fome
Tô com fome

domingo, dezembro 18, 2005

Na baixada


Cidade baixa. Ô filmão. Só a cor do sangue está errada.

A caminhada ao longo do rio duraria o dia inteiro. A falta de trilha e a necessidade de saltar de pedra em pedra, ainda que já não estivesse caminhando por dentro d’água, tornavam a marcha bastante lenta. Procurava ser discreto, tinha com medo de ser capturado pelos devoradores de homens. Sua fome agora era um estado crônico, amainado pelos frutos que encontrava pelo caminho, verdes, passados, ou semi-comidos por pássaros. Mas achava que tudo ia bem, estava inteiro, andando, e sentia que suas forças eram suficientes para chegar ao litoral. Até que sentiu uma violenta pedrada na panturrilha direita. Sua primeira reação foi olhar para trás e procurar quem havia desferido o petardo. Só a mata e o marulho do rio. Em seguida, olhou para baixo e levou a mão à perna. Tinha uma flecha espetada lá. Desanimou. Havia sido pego pelos tupinambás. Sabia que eles não andavam sozinhos na mata e naquele estado não teria a menor chance de fugir. Enquanto tentava arrancar a flecha da sua perna, seis ou sete deles o cercaram cubrindo-o-o de porrada. E gritando frases em tupi que ele já conhecia de ouvir contar, que significavam alguma coisa como “perdeu, mano, e você vai virar o meu jantar”, ou “seu português filha-da-puta, você matou meu irmão, e agora você vai ver o que é bom pra tosse”, ou, “você é o bichinho que caiu na minha arapuca e eu vou assar no espeto”. Enquanto apanhava e ouvia esses gritos ameaçadores lembrava de alguém falando que tupinambás não comiam escravos, pois não eram dignos da honraria reservada aos guerreiros. Agarrou-se mentalmente a essa duvidosa informação para manter o ânimo. Foi amarrado pelo pescoço com várias cordas, cada uma segura por um deles, e levado até o rio. Lá, enquanto continuava a tomar cascudos, croques, tapas e pontapés, em meio a gargalhadas e impropérios, e era seguro por mil mãos, teve a flecha retirada da sua perna, com o auxílio de uma faca, o que doeu horrores. A ferida foi lavada e ungüentada. Deram-lhe de beber e de comer, uma paçoca de farinha de mandioca com carne torrada esfarelada, que ele comeu com sofreguidão. Daí, puseram-no para andar, e os trancos e puxões no pescoço eram tamanhos que volta e meia perdia a respiração. Dali a umas duas horas chegou à taba e foi entregue às mulheres, em meio a uma grande gritaria e gargalhadas, naquele mesmo teor: jantar, filha-da-puta, vingança e animal capturado. As mulheres o arrastaram para uma grande oca escura e fresca, através de uma pequena abertura baixa, com a mesma violência de puxões nas cordas do pescoço, gritos, imprecações e gargalhadas, e ainda arranhões e mordidas, e ficaram examinando-o-o, apertando-o-o, puxando suas partes, até que perceberam que ele estava além do limite de suas forças e o puseram numa rede, amarrando longe as várias cordas que estavam no seu pescoço, de modo que podia se mover menos de um palmo. Absolutamente esgotado, Pecus* desacordou.


*Aqui, em trajes de banho, 2003, Dia do Trabalho, Itamambuca.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Top top 15

Tá certo, estou entre os top quinze, e o ego está um pouco maior hoje. Claro que tem algo de duvidoso nesse mérito, e algum retrogosto de ridículo, como a Daniela Winitz deve ter sentido quando encabeçou uma lista de melhor peito de silicone da praça. E top, top, top, me lembra o gesto característico do Fradim, aquele gênio que inventou o peido no elevador. O sitemeter enlouqueceu, o que mostra o poder da comissão julgadora na blog-o-land, e acredito que bastante gente tenha se decepcionado com as minhas considerações sobre auto-flagelação, culpa, castração e amores falidos. É uma fase. Há algo de fantástico nessa nova forma de comunicação, os blogs. Escrevemos nossas baboseiras em casa, ou roubando tempo ao patrão, na mais absoluta solidão, e disparamos o míssil no espaço, ou lançamos a mensagem da garrafa na maré, e acertamos justamente naqueles que vão entender nossa loucura. Como disse o Saramago a uma amiga minha, muito tempo atrás, não estamos tão sozinhos quanto pensamos. Obrigado Denise, Márcia e Leila, e toda a comissão julgadora, que eu não conhecia mas agora vou prestar muita atenção.

Pássaro Preto

Blackbird
Lennon/McCartney

Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly.
All your life
You were only waiting for this moment to arise.
Blackbird singing in the dead of night
Take these sunken eyes and learn to see.
All your life
You were only waiting for this moment to be free.
Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.


Assim assassinei (recomenda-se sotaque caipira):

Pássaro Preto

Pass’o Preto no meio da noite a cantar
Pega essas asa quebrada e aprende a voar
Vida inteira
Tava só esperando a hora certa de decolar
Pass’o Preto no meio da noite a cantar
Pega esses zóio afundado e começa a enxergar
Vida inteira
Tava só esperando a hora certa de se libertar
Pass’o Preto Vai
Pass’o Preto Vai
No meio da noite no escuro a cantar


Essa música tem uma curiosa semelhança com “Assum Preto”, do rei do baião, a história triste dos olhos furados. Aliás, o assum preto é a mesma ave que a graúna (nome indígena que significa ave negra), assim chamado no nordeste, que é conhecida em São Paulo por pássaro preto ou vira, de vira-bosta. É um grande cantor, capaz de aprender melodias, e ainda truques, sendo de fácil domesticação. Alguns até criados soltos. Assum preto só pode ser corrutela de pássaro preto, truncado em pass’o preto. Só não sei se a ave de Lennon e McCartney existe. Desconfio que seja uma ave poética. Poucas aves cantam à noite e é muito conveniente para a letra que seja negra. São duas grandes canções.


Assum Preto

Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira

Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Severino e Nair

Em 1969 mudamos para a casa nova, num bairro novo em construção. Eu tinha oito anos e total liberdade. Vivia pelos terrenos baldios e obras com a molecada do bairro, ou amigos da escola, escalando andaimes, construindo carrinhos de roleimã e outras bobagens. Conhecíamos vários pedreiros. Alguns anos depois, começou a obra no último terreno livre do nosso quarteirão. Com a limpeza do terreno, a casa ficou infestada de ratos. Volta e meia caía um rato na piscina, que era esvaziada e lavada. Um dia a piscina tinha só um pouco de água, e uma enorme ratazana havia caído lá durante a noite e estava viva, sem conseguir sair. O que fazer? Como nos livrar do pernicioso invasor? Peguei a espingardinha de chumbo e comecei a dar tiros no bicho. Primeiro ela fugiu da parte seca para a parte com água, e ao nadar deixava um rastro parecendo uma fumacinha, do sangue. Daí ela voltou para a parte seca, encostou-se na parede, sentou sobre as patas traseiras, levantou as dianteiras, e parecendo um canguru, começou a urrar horrivelmente, em gritos estridentes que reverberavam pelas paredes azulejadas. E eu, nervoso com aquela cena tétrica, dava tiros e mais tiros e nada do monstro morrer, o que levou mais um tempo enorme.

O fato é começou a obra no terreno vizinho e trabalhava lá um carpinteiro chamado Severino, baixo, forte, atarracado, bigodinho e costeletas, como se usava na época. Eu já era grandinho, e quem estava na fase de brincar em obras e ficar amigo dos pedreiros era o meu irmão menor. Em casa trabalhava uma cozinheira alta, desengonçada, óculos fundo-de-garrafa, macilenta, uma mulher feia e estranha, a Nair. O Severino se apaixonou pela Nair, e o meu irmão funcionou como cupido, fazendo a aproximação das partes. Não sei bem o que aconteceu, se a Nair relutava, se fez exigências materiais para se casar, mas a história que correu é que o Severino com a machadinha decepou seu polegar esquerdo, a fim de obter uma indenização e montar a casa. Casaram. Pouco tempo depois a Nair virou crente, como se dizia dos fiéis das incipientes seitas evangélicas, e ao que consta passou a se recusar a cumprir os seus deveres conjugais. Coisa do demônio.

terça-feira, dezembro 13, 2005

A carne e o espírito 2

Além da história do Frei Galvão e a Helena Maria do Espírito Santo, para quem ele construiu o Mosteiro da Luz enfrentando as disposições do Marquês do Pombal, e que pra mim tem toda a cara de amor sublimado com auto-flagelação e o encarceramento da pobre tentação em um quarteirão de taipa projetado e amassado pelo próprio frade; e a triste história de Abelardo e Heloísa, do amor livre de filósofo depois maculado pelo casamento, impossibilitado pela mutilação e terminado em religião, topei com um trecho cômico do comunista Saramago, no “Memorial do Convento” que se passa numa quaresma na Lisboa do século XVIII, segundo ele um prolongamento da farra do entrudo, verdadeira temporada do adultério quando deveria haver continência. Mas o engraçado é a procissão da penitência:

“Presas no alto gorro ou na própria disciplina, levam fitinhas de cores, cada um a sua, e se a mulher eleita que à janela anseia de angústia, de piedade pelo amador sofredor, se não também de gozo a que só muito mais tarde aprenderemos a chamar de sádico, não souber, pela fisionomia ou pelo vulto, reconhecer o amante na confusão dos penitentes, dos pendões, do povinho derramado em pavores e súplicas, do vozear das ladainhas, do bambear desacertado dos pálios, dos cabeceamentos bruscos das imagens, adivinhará ao menos pela fitinha cor-de-rosa, ou verde, ou amarela, lilás, se não vermelha ou cor do céu, é aquele o seu homem e servidor, que lhe está dedicando a vergastada violenta e que, não podendo falar, berra como o toiro em cio, mas se às mais mulheres da rua, e ela própria, pareceu que faltou vigor ao braço do penitente ou que a vergastada foi em jeito de não abrir lanho na pele e rasgões que cá em cima se vejam, então levanta-se do coro feminil grande assuada, e possessas, frenéticas as mulheres reclamam força no braço, querem ouvir o estralejar dos rabos do chicote, que o sangue corra como correu o do Divino Salvador, enquanto latejam por baixo das redondas saias, e apertam e abrem as coxas segundo o ritmo da excitação e do seu adiantamento. Está o penitente diante da janela da amada, em baixo na rua, e ela olha-o dominante, talvez acompanhada de mãe ou prima, ou aia, ou tolerante avó ou tia azedíssima, mas todas sabendo muito bem o que se passa, por experiência fresca ou recordação remota, que Deus não tem nada a ver com isto, é tudo coisa de fornicação, e provavelmente o espasmo de cima veio em tempo de responder ao espasmo de baixo, o homem de joelhos no chão, desferindo golpes furiosos, já frenéticos, enquanto geme de dor, a mulher arregalando os olhos para o macho derrubado, abrindo a boca para lhe beber o sangue e o resto.”

É claro que o freio aos instintos é condição da vida civilizada, e a religião teve e tem, ainda que cada vez menos, papel essencial nessa tarefa. Vazando pra todo lado, às vezes de forma trágica, às vezes cômica.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

La poule aux oeufs d'or




L'avarice perd tout en voulant tout gagner.
Je ne veux pour le témoigner
Que celui dont la Poule, à ce que dit la fable,
Pondait tous les jours un oeuf d'or.
Il crut que dans son corps elle avait un trésor.
Il la tua, l'ouvrit, et la trouva semblable
A celles dont les oeufs ne lui rapportaient rien,
S'étant lui-même ôté le plus beau de son bien.
Belle leçon pour les gens chiches :
Pendant ces derniers temps, combien en a-t-on vus
Qui du soir au matin sont pauvres devenus
Pour vouloir trop tôt être riches ?

La Fontaine

domingo, dezembro 11, 2005

A carne e o espírito

Heloísa, já há dez anos no convento, retoma o contato com Abelardo, vítima da terrível amputação, a quem pede socorro por carta:

“Os prazeres amorosos que juntos experimentamos têm para mim tanta doçura que não consigo detestá-los, nem mesmo para expulsá-los de minha memória. Para onde quer que eu me volte, eles se apresentam a meus olhos e despertam meus desejos. Sua ilusão não poupa meu sono. Até durante as solenidades da missa, em que a prece deveria ser mais pura ainda, imagens obscenas assaltam minha pobre alma e a ocupam bem mais do que o ofício. Longe de gemer as faltas que cometi, penso suspirando naquelas que não pude cometer. Não foram só os gestos que permaneceram profundamente gravados em minha memória, junto com tua imagem; mas também os lugares, as horas que deles foram testemunhas, a ponto de eu ali me reencontrar contigo, repetindo esses gestos, e não reencontro repouso nem mesmo no meu leito. Às vezes, os movimentos do meu corpo traem os pensamentos da minha alma, palavras reveladores me escapam... ”

O pobre Abelardo procura demonstrar que a sua desgraça pela qual Heloísa se culpa, foi a sua salvação, e ele, livre do “aguilhão da carne” pode dedicar-se inteiramente ao espírito. E exorta a esposa a fazer o mesmo, tentando provar que viviam mergulhados no pecado, mesmo após o casamento:

“Pouco tempo depois de termos recebido o sacramento, tu te lembras, estavas então retirada no convento de Argenteuil, vim um dia ver-te em segredo: minha conscupiciência, desenfreada, satisfez-se contigo num canto do refeitório, à falta de outro lugar para nos entregarmos a esses divertimentos. Tu te lembras, digo, que não fomos retidos pela majestade daquele lugar consagrado a Virgem? Mesmo que não tivéssemos cometido outro crime, esse não seria digno do pior dos castigos? De que serve lembrar nossas antigas imundícies e as fornicações de que fizemos preceder o casamento? A vergonhosa traição da qual me tornei culpado para com teu tio, na casa em que vivia como familiar, quando, impudentemente, te seduzi?”

“Compara, ao perigo ocorrido, a forma pela qual nos libertamos. Compara, ao remédio, a doença. Examina o que teriam merecidos nossas faltas, e admira os efeitos da bondade divina. Tu sabes a que torpezas minha concuspicência desenfreada havia levado nossos corpos. Nem o pudor, nem o respeito de Deus me arrancavam, mesmo durante a Semana Santa, mesmo no dia das maiores solenidades religiosas, do lamaçal em que eu rolava. Tu recusavas, tu resistias com todas as tuas forças, tu tentavas a persuasão. Mas, aproveitando-me da fraqueza de teu sexo, eu forcei mais de uma vez teu consentimento, através de ameaças e de golpes. Meu desejo de ti tinha tamanho ardor que esses miseráveis e obscenos prazeres (hoje não ouso mais nem mencioná-los) passavam para fim à frente de Deus, à frente de mim mesmo. Podia a clemência divida me salvar de outra forma senão mos proibindo para sempre?”

É uma das histórias mais tristes que eu já conheci. A carne é fraca e o espírito é forte ou ao contrário? Não é inconsistente o discurso do Abelardo, em contraste com o de Heloísa?

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Território tupinambá

Pecus acordou com as inúmeras, exuberantes, tropicais, coloridas e barulhentas aves. A mata na beira do rio estava lavada e brilhante e era bem mais desenvolvida do que a da serra. O céu, azul e limpo. O sol brilhava, e o ar ainda estava fresco. O plano era simples. Um banhão de rio e procurar alguma coisa pra comer. Ao entrar na água gelada, pelo ardor percebeu que estava lanhado em vários pontos. Sentia dores por todo o corpo, músculos e ossos amassados, e o cansaço do esforço. Sua roupa de algodão cor-de-burro-quando-foge estava em farrapos, mas ainda oferecia alguma proteção, e ele aproveitou para lavá-la na pedra. Saiu andando devagar, por dentro da água por precaução, para evitar os farejadores, aproveitando as frutas que encontrava. Não tinha mais porque ter pressa, e nem poderia andar rápido naquele estado. Acreditava ter se livrado dos cães, e a janela do encontro com a sereia tinha passado. Mas já estava do lado certo da serra, e aquele rio provavelmente o levaria ao lugar marcado. Sabia estar em pleno território tupinambá.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

A cortesia medieval

No centro do esquema imaginativo e linguístico onde, de agora em diante, vão se inscrever milhares de discursos e o dinamismo do canto erótico (a voz falada do desejo), coloca-se uma situação tipo, que é a do Obstáculo. O desejo que eu carrego e que me carrega tende para um objeto que, quaisquer que sejam as circunstâncias e as modalidades de seu fantasma, "eu" não possuirei nunca na "alegria", isto é, na perfeita liberdade e intemporalidade do "jogo". Através das inumeráveis variantes que comportam os destinos individuais, o obstáculo está sempre lá, imanente a todo amor. Não que seja concebido misticamente: o simbolismo cortês primitivo permanece terra a terra, o obstáculo é "significado" em sua linguagem pela condenação virtualmente levada contra o casamento. O casamento, não as relações sexuais como tais, o casamento porque implica num direito de posse.

(Trecho do prefácio a Correspondência de Abelardo e Heloísa, de Paul Zumthor, Ed. Martins Fontes, 1989).

terça-feira, dezembro 06, 2005

How insensitive

Uma das minhas músicas prediletas do Jobim - provavelmente também da metade da torcida do Corinthians - é "Insensatez", com a boa letra do Vinícius, especialmente na versão do João Gilberto. Pois bem, uma série de espíritos menores gosta de exibir a semelhança entre a obra do Jobim e um prelúdio em mi menor do seu quase xará, o Chopin. Vários jazzistas interpretam as duas em medley, para tentar enxovalhar o Tom. Claro que não cola. O Jobim era um chopiniano declarado e chegou a gravar algumas de suas peças. Eu não conheço a história da composição, mas eu imagino o Tom mostrando ao Vinícius a sua última molecagem, tocar o tal prelúdio em ritmo de bossa, e o poetinha comentar o sacrilégio dizendo: "que insensatez que você fez, Tom", e daí, a canção estava quase pronta. Ficou tão boa, que não dava mais pra jogar fora. E seria ridículo dar créditos para o Chopin, porque afinal, não era mais o prelúdio. Era uma nova canção, das boas. Tenho certeza que o Jobim jamais escondeu essa origem de ninguém. Se tem alguém que nunca precisou se auto-afirmar como compositor é ele. Pra mim, a maioria das acusações de plágio é coisa de quem não sabe o que é arte.

Vai a letra (pra escutar, tem na rádio uol, tanto o prelúdio como a canção)


Ah, insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado
Ah, por que você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração, quem nunca amou
Não merece ser amado


Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração, pede perdão
Perdão apaixonado
Vai, porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Falso amor sincero

(Nelson Sargento)

O nosso amor é tão bonito
Ela finge que me ama
E eu finjo que acredito

O nosso falso amor é tão sincero
Isso me faz bem feliz
Ela faz tudo que eu quero
Eu faço tudo o que ela diz

Aqueles que se amam de verdade
Invejam a nossa felicidade

sábado, dezembro 03, 2005

No fundo do abismo

Vinha no ritmo descompassado das pedras chapadas em degraus irregulares da beira do abismo, quando, ao saltar o que lhe pareceu uma pequena moita, na certeza de haver uma laje do outro lado, encontrou um emaranhado de galhos e folhas de alguns metros de largura, e despencou estalando tudo e se arranhando todo e assim foi caindo com a queda amortecida pelos galhos que se quebravam arranhando-lhe o lombo já tão castigado, e depois de um segundo e pouco que lhe pareceu um tempão estatelou-se entre pedras e as samambaias espinhentas. Apagou.

Depois de um tempo acordou em plena tempestade e demorou a entender o que estava acontecendo. A primeira providência, e urgente, foi localizar as pingadeiras da parede de pedra para matar a sede de horas. Bebeu quanto quis rapidamente, depois de constatar que estava razoavelmente inteiro, bem melhor do que depois de um dia ruim no trabalho. Torceu para que a água abundante da tempestade apagasse o rastro do seu cheiro e dificultasse sua localização pelos cães. Olhou para cima e supôs que a reentrância na grande parede onde caíra era uma fenda, uma rachadura vertical pronunciada na estrutura mais ou menos homogênea do penhasco. A superfície onde se encontrava era provavelmente uma grande pedra entalada na fenda, sobre a qual a deposição de poeira, folhas e sementes, guano e outros detritos, havia possibilitado o crescimento de trepadeiras, cipós e samambaias, cactos e outras plantas adaptadas às pedras. No canto dessa pedra entalada havia uma abertura, uma chaminé, por onde desceu, e encontrou outras pedras empilhadas na fenda, por onde a descida era possível. Era lento, tinha que examinar com cuidado o melhor caminho, mas era uma grande e complicada caixa de escada, e depois de algumas horas estava lá embaixo, no fundo daquele desfiladeiro onde passava um riozinho no meio das pedras, em meio a uma boa quantidade de árvores. Sentiu-se seguro. O longo dia de verão chegava ao fim, mas ainda conseguiu capturar com a mão alguns pitus embaixo das pedras no rio, arrancou-lhes a casca, as tripinhas e comeu-os com muito prazer e um pouco de nojo. Arrumou um canto seco para dormir, lembrou da sereia e ficou pensando nela até adormecer.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

A mais bela flor de Piratininga

Relato do próprio Frei Galvão, cujo autógrafo se encontra no arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Luz:

"Nasceu Helena em Paranapanema. Freguesia pertencente naquele tempo ao Bispado de São Paulo; nela criou-se até a idade de 17 anos; em todo este tempo eram notáveis os seus procedimentos dando já indícios de sua futura santidade; exercitava-se em obras de caridade, obediência e mansidão para com os domésticos; mui freqüente no exercício da Santa Oração, Via-Sacra e outros atos religiosos, que deixo de os referir por evitar prolixidade; dizendo somente que, entre noite e dia, tinha 7 horas de oração. As sua penitências eram contínuas, anos inteiros usou de cilícios, dormindo com eles em terra fria, digo sobre a terra; usava da disciplina de sangue procurando o silêncio e oportuno tempo da noite. Algumas vezes encontrou-se com feras, entre as quais em certa ocasião uma onça. Invocando o nome de Jesus, com estranha velocidade fugiu o tigre. Aos sete anos levaram seus pais de mudança a um descoberto de ouro, distante alguns dias de sua casa, e como não podia a menina preencher a tarefa dos diários exercícios, esperava nos pousos que faziam os da comitiva, enquanto descansavam todos e dormiam, e fora de horas, retirava-se para os matos, servindo-lhe de farol, para se não perder, os fogos que faziam os arranchados de sua comitiva, aí, pois se disciplinava de sorte que não fosse percebida. Eram-lhe os jejuns contínuos; o mesmo na freqüência dos Sacramentos, etc. etc".

"Veio a São Paulo para servente das Recolhidas de Santa Teresa. Foi no dia que entrou na cidade uando se deu sepultura ao Servo de Deus o Padre Manuel de Oliveira. Recebida pelas mencionadas Recolhidas lá esteve vinte e oito anos; em todo este tempo adiraram-se as virtudes que resplandeciam na Serva de Deus, Helena Maria do Espírito Santo, a qual todos os dias jejuava a pão e água, comendo só ao jantar um pão inteiro, ou meio, senão parte diminuta; algumas vezes passou três dias sem comer coisa alguma. Chegou esse excesso a cinco dias; a Caridade que lhe estuava no coração a transportava muitas vezes, publicamente, fora de seus sentidos; muitos anos com alegria de seu coração serviu às referidas Recolhidas por ser o ofício de servente o mais humilde entre elas, etc. etc.".

"Professou nesse Recolhimento por esmola anterior do M. Rvdo. Dr. Manuel José Vaz, seu confessor por 15 anos. A sua pobreza era extrema e voluntária porque rejeitava esmolas oferecidas de alguns devotos e de seus próprios confessores; só possuía um hábito e uma caixinha velha com algumas coisinhas de nenhum valor. Era admirável na compostura dos olhos, que por nunca os levantar não conhecia nem ainda o Confessor pela fala, que pela experiência que eu tive, disse Frei Antônio, observei que era sem a mínima exageração. Neste Recolhimento lhe apareceu o diabo tomando a forma de alguns de seus Confessores, que a dirigiam; pelo discernimento grande de que era dotada, e auxílio do Céu, nunca este a iludiu e sempre dele triunfou, porque com seus atos de humildade que fazia dava ele demonstração de soberba. Outras muitas coisas poderia referir, que por brevidade as deixo".

Pois bem, o Frei Galvão estava tão impressionado com o potencial da freirinha, que enfrentando a proibição do Marquês de Pombal de criação de ordens religiosas, moveu mundos e fundos, projetou e construiu com as próprias mãos um recolhimento só para ela, que vem a ser o Mosteiro da Luz, talvez o único edifício do século XVIII ainda de pé nesta cidade.

Foxy Lady

Neste momento, nove horas e trinta e oito minutos, estou no escritório da casa, única janela com vista para rua, e cai uma chuva intensa e tranqüila fazendo barulho no telhado. Haja água. Um gato costuma passar do outro lado da rua mais ou menos nesse horário, o que sempre percebo porque mesmo a sua pequena presença aciona a luz de segurança da casa da juíza. Olho e está lá o gato passando. Mas hoje ele não veio, está entanguidinho embaixo de algum carro ainda morno tentando ficar seco. A rua está deserta, só circula quem precisa, um carro de quando em quando. Um até agora, nesses cinco minutos. São nove e quarenta e três. É só imaginar o que eu quero que aconteça na rua. Suspendo a persiana para ver melhor. Nada. A chuva e nada. Vejo você parada embaixo de um guarda-chuva pensando que raios está fazendo ali. A minha amiga imaginária, pensando se toca ou não a campainha, se se materializa ou não. Mas eu tenho que virar o pescoço para ver a rua, ou digitar, essa leve percussão com a ponta dos dedos pulando nas molinhas do teclado. A cadeira ergonômica gira e os cotovelos estão apoiados nos braços curtos, na altura certa, e o conforto é bom. O problema é virar o pescoço para ver a rua, a minha amiga imaginária, o gato acionando a luz da casa da juíza, e ainda não passou outro carro. Preciso virar a mesa para a janela. Daí não tenho que virar o pescoço. Acho que a minha amiga imaginária ficaria bem com um cachorro, um bizarro pretexto numa noite de chuva. Uma raça à prova d’água, labrador não, muito óbvio, uma raça pantaneira, um cão pastor acostumado aos grandes espaços abertos, andando sem coleira, e com uma aparência tão amigável que não assustasse ninguém. Agora, às nove e cinqüenta e cinco, a chuva dobrou de intensidade. Minha amiga imaginária evaporou ou derreteu. Jamais viria numa noite dessa a pé com o cachorro. Ela teria que passar de carro e conhecendo meus hábitos, bastaria ver o meu vulto na janela quadrada de vidro fixo, iluminado só pela luz azulada do monitor. Para isso, ela precisaria passar pelo outro lado da rua, e devagar. Talvez eu reconhecesse o carro, se eu soubesse que carro é. Um carro compacto e ágil com todos os itens principais de conforto, um motor com alguma folga de potência, e um desenho moderno. Um Fox. Foxy Lady. Se eu reconhecesse o carro e ela visse que eu estava lá, estaria feito um duplo contato unilateral, porque não haveria retorno do reconhecimento. E sempre uma dúvida. Poderia ser. Ou talvez uma mensagem telepática pudesse acelerar o batimento cardíaco que soaria como um aviso de recebimento. A chuva diminuiu um pouco, mas ainda está mais forte que no começo. São dez e quatro agora. Uma volta no quarteirão, que é um pouco comprido, é o suficiente para resolver se volta ou não. Quer ou não quer? Ah, se ela soubesse... É claro que ela quer, mas pode ser uma puta cagada. Hoje não. São dez e nove, e eu levei cinco minutos para escrever essas últimas quatro linhas, pensando na morte da bezerra e quase babando no teclado.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Comida de sereia


O corpo quase esférico, cheio de espinhos, de início desencoraja o apetite. Mas desde tempos remotos os homens enfrentam a armadura do ouriço-do-mar para saborear as délicatesses que são seus órgãos reprodutores. São cinco gônadas, ou corais, que ocupam quase todo o interior de machos e fêmeas. Nos machos têm cor amarelo-clara ou atijolada e são menores; nas fêmeas, cor amarelo-forte ou alaranjada, e mais gordas, como dizem os pescadores. No litoral brasileiro há várias espécies de ouriço. Alguns têm espinhos que variam do marrom-escuro ao negro, outros são marrom-avermelhados, há os que variam - roxos, verdes ou púrpura - e uma espécie chega a apresentar-se verde, azul, roxa ou rosa.

De modo geral, o ouriço vive em rochas e no lodo do fundo do mar. Durante o dia, esconde-se nas grutas; de noite sai para comer algas, animais mortos e pequenos organismos marinhos. A melhor forma de degustá-lo é cortar a parte de cima (onde fica a boca) e comer de colherinha, direto da concha, com gotas de limão ou azeite. Na Espanha, em especial nas Astúrias, é apreciado em patê, pastéis, molhos para peixe e marinado na sidra. Na França, destaca-se a sauce à l'oursinade, com béchamel e creme de leite, para acompanhar pescado branco poché ou no vapor. No Japão, conhecido como uni, é servido no sushi ou na concha com limão, raiz-forte, óleo de gergelim e shoyu. Em Pernambuco, em dezembro, a Festa da Ouriçada celebra Santa Luzia; ouriços são pescados e assados sobre palhas, e entram em farofa. Em Porto Covo, Portugal, a Ouriçada festeja as marés da Páscoa. Vinho rosé gelado é ótimo acompanhamento.

COMO SE ESCOLHE

Encontra-se em algumas peixarias, mas não é comum, principalmente nas cidades distantes do litoral. Adquira congelado ou em conserva com sal, em mercearia de produtos orientais. Ou encomende na peixaria. Se comprar inteiro, deve estar com os espinhos firmes e o orifício bucal bem fechado. Congelado ou em conserva, verifique no rótulo o prazo de validade e as informações sobre o produtor. Rejeite se o ouriço-do-mar congelado estiver mole ou com acúmulo de gelo dentro ou fora da embalagem. Ao abrir, avalie o cheiro. Precisa ser suave, à maresia. Nunca deve lembrar amoníaco - estará estragado.

COMO SE PREPARA

Se inteiro, abra uma tampa na parte da boca. Use luva e, caso tenha, um corta-ouriço (coupe-oursin). Com pinça tire as vísceras - a parte escura. Restarão as cinco gônadas. Pingue nelas gotas de limão ou azeite e sirva na concha, sobre gelo. Também é bom cru sobre fatias de pão, branco de preferência, com manteiga, ovo quente ou coração de alcachofra. Junte à omelete, a ovos mexidos (1 ouriço para cada ovo), a molho rápido para macarrão. Pode-se ainda cozinhar no vapor por 5 min e misturar em salada. Molho: misture bem o conteúdo de 8 ouriços e um pouco de azeite. Junte a 1 xíc de molho holandês, mexa bem e sirva com peixes.

FICHA TÉCNICA
100 g de ouriço-do-mar cru contêm:
Calorias - 142
Proteínas - 16,3 g
Carboidratos - 1,4 g
Gordura - 7,9 g
Vit. B1 - 0,06 mg
Vit. B2 - 0,42 mg
Niacina - 6,1 mg
Vit. C - 5,7 mg
Cálcio - 59 mg
Ferro - 0,7 mg
Fósforo - 366 mg
Potássio - 221 mg


Texto: Celão

quarta-feira, novembro 30, 2005

A sereia do Lampedusa

Finalmente consegui I Racconti do príncipe siciliano e li "A Sereia", sugestão do Dudi. Como na suposição de Pecus, a sereia de Sasá fala grego antigo. E essa sereia vai do bestial, meio-bicho, ao Imortal, divino, sem passar pelo humano. Um jovem professor enlouquecido pela preparação para a cátedra de literatura grega, no quente verão siciliano, logo depois de se instalar num casebre à beira-mar, encontra a sereia:


"Este realizou-se na manhã de cinco de agosto, às seis horas. Acordara pouco antes e logo entrara no barco. Poucos golpes de remo afastaram-me das pedras da praia. Parara debaixo de um rochedo para proteger-me do sol que ia subindo, inchado de fúria, cambiando em ouro e azul a alvura do mar auroral. Declamava quando senti um improviso baixar-se da extremidade do barco, à direita atrás de mim, como se algém o tivesse agarrado para subir. Virei-me e vi-a. O rosto liso de uma moça de dezesseis anos emergia do mar, duas pequenas mãos apertavam a borda do barco. A adolescente sorria. Uma leve dobra afastava os lábios pálidos deixando entrever pequenos dentes aguçados e brancos como os dos cães. Não, porém, um daqueles sorrisos como se vêem entre vocês, sempre abastardados por uma expressão acessória, de benevolência ou ironia, de piedade, crueldade ou qualquer coisa. Esse sorriso exprimia só a si mesmo, isto é uma quase animal alegria de existir, uma quase divina letícia.

Sierva María

"Parece que os cabelos vão ressuscitar muito menos que outras partes do corpo". (Tomás de Aquino, Da integridade dos corpos ressuscitados, questão 80 cap. 5, é a epígrafe escolhida pelo GGMARQUEZ, para o "Do amor e outros demônios", de onde vem o trecho seguinte).

A menina se mostrava tal como era. Dançava com mais graça e donaire que os africanos da nação, cantava com vozes diferentes nas diversas línguas da África, ou com vozes de pássaros e animais, que desconcertavam os próprios negros. Por ordem de Dominga de Adviento, as escravas mais jovens pintavam-lhe a cara com fuligem, penduravam colares de candomblé por cima do escapulário do batismo e ajeitavam-lhe o cabelo, jamais cortado, que atrapalharia o caminhar não fossem as tranças de muitas voltas que lhe faziam todo dia.

Ela começava a florescer numa encruzilhada de forças contrárias. Tinha muito pouco da mãe. Do pai tinha o corpo esquálido, a timidez irremissível, a pele lívida, os olhos de um azul merencório, e o cobre puro da cabeleira radiosa. Seu modo de ser era tão misterioso que parecia uma criatura invisível. Assustada com tão estranha condição, a mãe lhe pendurava uma campainha ao pulso para não perder seu rumo na penumbra da casa.

terça-feira, novembro 29, 2005

Trator



Eu tinha uns vinte e poucos anos, estava no sítio do meu sogro, e ele me pediu que levasse o trator, um velho Massey Ferguson 65, para a cidade que ficava a uns seis ou sete quilômetros, para consertar os freios. Eu já tinha pilotado aquela máquina simpática algumas vezes, com seu acelerador de mão e engrenagens pesadas. Engatado se movimenta tão lentamente quanto se queira e assim o freio não é tão importante. Saí sozinho naquela bela manhã de sol pela estrada de terra prudentemente em segunda marcha, devagar e sempre. Depois de algum tempo naquele ritmo lento, resolvi botar uma terceira, pra não levar a vida inteira pra chegar. E pensei: “Quando chegar no alto dessa subida, troco a marcha”. Pensado e feito. Quando chegou no alto da subida, desengatei a segunda pra por a terceira. E nada da terceira entrar. Tenta, tenta, tenta, arranha, pisa, e nada da marcha engatar. O trator simplesmente pára no alto da subida, e começa a andar para trás.“Fodeu”, pensei. Era uma estrada municipal que tinha algum tráfego. E o trator, com aquela enorme folga na direção, sem amortecedores, sem freio, andando de marcha a ré e ganhando velocidade. Pular não me pareceu uma boa idéia. Tinha que tentar manter o veículo na estrada e torcer para não aparecer nenhum carro, cavalo, charrete, caminhão, ciclista, pedestre na minha desabalada trajetória. A velocidade foi aumentando e eu lá pilotando aquele trem meio desgovernado, pulando pela estrada de terra com aquele barulho de ferros batendo uns nos outros, com o pescoço virado, apavorado, até que a descida acabou, e ele foi parando. Engatei a segunda e fui assim até a cidade, sem ter ninguém pra comentar a aventura.

segunda-feira, novembro 28, 2005

De novo essa bobagem nietzscheana

AMIZADE ESTELAR
279. Amizade estelar - Nós éramos amigos e nos tornámos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado o seu destino e ter um só destino. Mas então a toda poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos e talvez nunca mais nos vejamos de novo ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade.- E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos que ser inimigos na Terra.
Nietzsche - A Gaia Ciência - LIVRO IV

Ainda o abismo

Enquanto caminhava – não é bem o termo, saltava de pedra em pedra como quem anda num costão ou num rio de serra – pela beira do abismo, tomou a decisão. A ser pego, prefiria o mergulho. Teria algum significado a sua morte, pelo menos para os cães, caninos e humanos, que o perseguiam. Destruiria o bem que pudesse interessar os seus senhores. Mostraria que nunca os admitiu como tais. Sempre tentou deixar isso bem claro e agora era hora de esfregar-lhes isso na cara. Satisfeito com a resolução e reconhecida a companhia da morte, acelerou a sua marcha caprina sem sentir fome, sede ou cansaço. Pelo som, tinha a impressão de que estava conseguindo manter a distância dos cachorros, mas eles o seguiam na direção certa. A sereia sumiu da sua mente. Deixou de sentir a ligação telepática que lhe proporcionava um aumento de freqüência na sua vibração vital. Estava só.

domingo, novembro 27, 2005

O negócio é sonhar com mares distantes


O Brasil 1 ao largo de Fernando de Noronha





Ontem no escritório, tomando coragem para começar a trabalhar depois do almoção do sábado, li pela primeira vez o "post" do "blog" da regata de volta ao mundo. Dos sete barcos que saíram de Vigo, na Espanha, dois desistiram em função de avarias. Mudaram de bordo em Fernando de Noronha, e agora se aproximam da Cidade do Cabo, fim dessa primeira perna. A descrição de ontem estava magnífica. Os barcos estavam sendo alcançados por uma frente fria formada por aqui, e que se deslocava em direção à Africa. Os mastros de mais de trinta metros a todo pano, velas-balão com centenas de metros quadrados, infladas por ventos de 26 nós. O equipamento esforçado ao máximo, podendo estourar a qualquer momento, enquanto os barcos, na mesma velocidade do vento, antes de alçarem vôo no vão entre as grandes ondas, tinham o convés lavado pela crista de água verde esmeralda. E a cada pancada tudo chacoalhava com violência.


De ontem pra hoje a situação não se alterou. Vinte e quatro horas no limite do desastre. O líder da prova, o ABN 1 bateu o recorde de milhas/24hs para monocasco, com 583. E aumentou a vantagem para o segundo, o ABN2, que aumentou para o terceiro, o nosso Brasil 1. Não entendo nada do esporte, mas imagino que o skipper Torben Grael aliviou. Estourar a embarcação de milhões de dólares e sair fora da regata no início? Estão previstos oito meses. Não sei nem porque tem tão poucos barcos nessa regata. Será que ela sofreu algum tipo de boicote, ou simplesmente não há interesse?

Disse alguém

Taí uma versão que supera o original, do grande compositor Haroldo Barbosa, e interpretada por João Gilberto em "Brasil", deixa todas as outras no chinelo.


Disse alguém


(Seymour Simons e Gerald Marks, versão de Haroldo Barbosa)

Disse alguém que há bem no coração
Um salão onde o amor descança
Ai de mim que estou tão sozinho
Vivo assim, sem esperança
A implorar alguém que não me quis
E feliz, bem feliz seria
Coração meu, convém descansar
Soluçar mais devagar

Disse alguém que há bem no coração
Um salão, um salão dourado onde o amor sempre dança
Ai de mim que só vivo tão sozinho
Vivo assim, vivo sem ter um terno carinho
A implorar alguém que não me quis
E feliz então eu sei, bem sei que não mais seria
Meu, meu coração sem esperança
E vive a chorar, soluçar
Como quem tem medo de reclamar


All of me


All of me
Why not take all of me
Can't you see
That I'm no good without you
Take my arms
I want to loose them
Take my lips
I'll never use them


Your goodbye
Left me with eyes that cry
And I know that I
Am no good without you
You took the part
That once was my heart
So why not take all of me

sexta-feira, novembro 25, 2005

Bom com as palavras é o Arnaldo Antunes

Ouça essa

Eu sei que a gente ia ser feliz juntinho
Pra todo dia dividir carinho
Tenho certeza de que daria certo
Eu e você, você e eu por perto
Eu só queria ter o nosso cantinho
Meu corpo junto ao seu mais um pouquinho
Tenho certeza de que daria certo
Nós dois sozinhos num lugar deserto
Se você não quiser
Me viro como der
Mas se quiser me diga, por favor
Pois se você quiser
Me viro como for
Para que seja bom como já é
Eu sei que eu ia te fazer feliz
Dos pés até a ponta do nariz
Da beira da orelha ao fim do mundo
Sugando o sangue de cada segundo
Te dou um filho, te componho um hino
O que você quiser saber eu ensino
Te dou amor enquanto eu te amar
Prometo te deixar quando acabar
Se você não quiser
Me viro como der
Mas se quiser me diga, meu amor
Pois se você quiser
Me viro como for
Para que seja bom como já é

quinta-feira, novembro 24, 2005

Decifra-me ou devoro-te


KEEPER: Heh heh. Stop! What is your name?
ARTHUR: It is Arthur, King of the Britons.
KEEPER: What is your quest?
ARTHUR: To seek the Holy Grail.
KEEPER: What is the air-speed velocity of an unladen swallow?
ARTHUR: What do you mean? An African or European swallow?
KEEPER: What? I...I don't know that! Auuuuuuuugh!
BEDEVERE: How do know so much about swallows?
ARTHUR: Well, you have to know these things when you're a king, you know.

quarta-feira, novembro 23, 2005

terça-feira, novembro 22, 2005

Fruto esquisito

Essa música é um dos mais estranhos frutos do rico cancioneiro norte-americano. É entretenimento?

Strange Fruit (tem na rádio uol)

(de Lewis Allen, cantada por Billie Holiday)

Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.

Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter cry.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Fila

Seguiu andando pela beira do abismo pescoçando uma passagem na parede de pedra que pudesse descer sem muito perigo. Depois de meia hora andando começou a ouvir os graves latidos dos filas se comunicando uns com os outros, com o característico crescendo. Apesar do terror e do desespero que sentiu, não deixou de pensar que cachorro é um bicho burro, que caça fazendo barulho. Ainda estavam muito longe, mas a situação não era nada boa, pois estava encurralado entre o despenhadeiro e os cães. Acelerou o passo e redobrou a atenção na procura de um caminho descendente, arriscando-se mais pela beirada. Estava cansado, dolorido, escoriado, mal alimentado, sedento, e o latido roufenho dos mastins lhe pareceu a própria voz do coisa ruim nos seus calcanhares. Pensou no que passaria se fosse capturado de novo, e a idéia de jogar-se no abismo, se não tivesse alternativa, passou-lhe pela cabeça. Aqueles bichos destruíam com facilidade grandes onças pintadas, embora fossem treinados para não danificar os humanos.

sábado, novembro 19, 2005

Velho Chico

Essa música do Chico é tão boa que quando eu conheci achei que era uma das parcerias com o Jobim:

Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
Dá tua mão, olha prá mim
Não faz assim, não vá lá, não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão frouxa de rir
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo o salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão


E essa que era um dos sambas do Chico dos quais eu mais gostava não é dele. É do Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro, das antigas antigas:

Você só dança com ele
E diz que é sem compromisso
é bom acabar com isso
Não sou nenhum Pai João
Quem trouxe você fui eu
Não faça papel de louca
Pra não haver bate-boca
Dentro do salão
Quando toca o samba
Eu lhe tiro pra dançar
Você me diz: Não
Eu agora tenho par
E sai dançando com ele
Alegre e feliz
Quando para o samba
Agradece e pede bis

quinta-feira, novembro 17, 2005

Rave

Há uns três ou quatro anos fui convidado para ir a uma rave numa praia em Santa Catarina. Ia ser aproveitada uma festa que se repetia ali com alguma freqüência para a surfistada e playboys para o lançamento de um instituto de beleza, um sistema de tratamento de pele ou algo assim. Haveria uma ala “vip” separada para os convidados. Chegamos na noite anterior, fomos hospedados num hotel, e no dia seguinte fomos ao local onde ia ser a festa, que sempre era feita na lua cheia. Era um belíssimo bar de praia, muito bem instalado, uma construção rústica de madeira já acinzentada, com restaurante, bar e lounge, que estava sendo ampliado com grandes tendas de lycra. Ficava numa parte meio deserta da praia só ocupada pelos surfistas. Estava um lindo dia de sol, ondas pequenas de qualidade, um verdadeiro paraíso. A organização da festa era feita por dois surfistas, um dos quais era modelo e participou do comercial do tal lançamento, feito ali na praia dias antes, que ia ser exibido na festa. Por volta das duas da tarde, chegou a notícia de que o ministério público estadual tinha obtido uma liminar para impedir a festa por risco de dano ao meio ambiente. Advogados acionados, a ordem foi cassada. Horas depois, chega outra ordem, obtida pelo ministério público federal, para os mesmos fins.

A festa foi mudada para a pousada da mãe do organizador que não era o modelo, que ficava na parte mais ocupada da praia, a algumas quadras do mar. Era um lugar luxuosíssimo, fazendo um tipo “Hamptons”, em madeira branca, e onde estavam hospedados os donos da festa. Tinha um grande jardim, uma vista distante do mar, mas não fazia muito sentido todo aquele dinheiro empatado naquele fundo de praia. Quando chegamos à noite, percebemos que apesar de toda a bebida oferecida pelos patrocinadores, ninguém bebia nada e todos estava suadíssimos com garrafinhas de água na mão. Todos tinham tomado ecstazy. A ala “vip” ficou com as instalações da pousada, deck, bar, restaurante, piscina, e uma escadaria levava ao jardim, onde a festa e seus banheiros químicos estavam. Dos taludes entre o deck e a pista volta e meia despencava um rolando, que além de ecstazy tinha cheirado lança-perfume. Lá embaixo o pessoal dançando tinha algo a ver com a noite dos mortos-vivos, e era docilmente manipulado pelos DJs. Foi a primeira vez que vi um DJ desses que criam sua própria música, trabalhando. Não entendi bem como funciona, mas me pareceu que ele tem bastante controle da dinâmica, e vai acrescentando ou tirando camadas de música como quer. Tira tudo, deixa só uma frasezinha se repetindo, a pista cai, daí vai acrescentando, até que despeja o máximo e os mortos-vivos começam a pular e gritar. É muito bacana. Daí a polícia chamada pelos vizinhos começou a fazer parte da festa. Vinha a música baixava. Ia embora, voltava ao máximo, e os zumbis junto. Várias e várias vezes, naquela noite sem fim e sem cansaço, com uma linda lua cheia. De manhã nos perdemos das vans dos convidados e voltamos a pé para o nosso hotel, na praia vizinha.

Madame Bovary

Acabei de ler “Madame Bovary”. Flaubert cínico e sarcástico. O Bovary é um lorpa caipira ridículo e burro desde o colégio. É arrastado pela mãe para a carreira de médico aos trambolhões e consegue o grau e uma posição no interior mendigando indicações. Sua mãe casa-o com uma viúva velha e feia supostamente rica que para a sorte do rapaz morre quatorze meses depois, deixando-o um pouco melhor que antes. Nesse meio tempo ele havia curado uma fratura simples de um fazendeiro e torna-se benquisto na família. Se engraça com a filha do sujeito, uma linda mocinha recém chegada de um colégio de freiras onde recebeu refinada educação, convivendo com velhas nobres decaídas na revolução. A influência da música e literatura da monarquia moldam o seu caráter romântico e sonhador, e está sempre a perseguir transportes e elevações de espírito em idílios extravagantes. Enterrada no campo ilude-se com o médico, sentindo falso amor que desvanece logo após o casamento. Vive de ler romances e vai se deprimindo com sua situação sem saída. Tem um momento de deslumbramento quando o médico é convidado a um baile num palácio de um poderoso senhor. Daí em diante só faz definhar, até que o Sr. Bovary decide mudar-se para uma outra pequena cidade com ares melhores, por sua saúde. Ao chegar, Madame Bovary logo conhece um jovem escrevente de cartório, com quem tem uma imediata identificação de gostos por romances e música, e nasce um amor platônico e correspondido, mas jamais declarado. O rapaz é tímido. Emma Bovary está grávida, e nasce Bertha. Ele sente que o seu amor é impossível, sua amada é virtuosa, e parte para Paris para completar seu curso de direito. Emma, já com a virtude esgarçada, cai pelo primeiro cafajeste que aparece. É uma cena memorável de um “comício” no interior, mais uma exposição agropecuária, e a ação acontece em vários planos: os animais ao fundo, e os discursos caipiras se entremeando com a cantada de Rudolf. Puro cinema. Impelido pelo farmacêutico, o médico tenta um salto na carreira arriscando uma nova operação num cavalariço aleijado que se movimenta muito bem, soltando seus tendões e enfiando sua perna num grotesco aparelho que constrói. Resultado: gangrena. A amputação na altura da coxa é feita por um médico de uma cidade vizinha. A humilhação do Sr. Bovary é total. É um dos trechos mais aflitivos e incômodos que eu já li. O desprezo de Emma pelo marido chega ao máximo e ela decide fugir com o amante. O cafajeste dá pra trás. Emma tem uma fase beata e depressiva. Para animá-la, o marido resolve levá-la ao teatro em Rouen, onde reencontra Léon, o escrevente, e aí a coisa vai. Emma inventa aulas de piano em Rouen, e vai toda semana se encontrar com o novo amante. Com as roupas, presentes e despesas de viagem e hotel começa a aumentar suas dívidas com um agiota, e acaba levando a família à miséria. Suicida-se com arsênico roubado do farmacêutico.

segunda-feira, novembro 14, 2005

O Abismo


Acordou dolorido do esforço e do lugar pouco confortável onde dormiu. Tentou orientar-se pelo sol da manhã, filtrado pelas grandes árvores, e tomou o que entendeu ser o rumo do litoral, em direção ao nordeste, para evitar reencontrar o rio, provavelmente ao sul de onde estava. Encontrou uma mina de água numa grota onde saciou a sua sede, e continuo andando, subindo a pequena serra à sua frente, procurando o que comer. Encontrou algumas frutas, poucas e em más condições, suficientes apenas para continuar andando. Conforme foi subindo a serra, a vegetação foi rareando, a floresta se transformou numa capoeira, e a capoeira se acabou num capim ralo sobre um terreno pedregoso. Chegando ao topo, percebeu que a orla estava ainda longe. Via no horizonte o mar, que devia estar a uns cinqüenta quilômetros de onde estava, ou mais ou menos oito léguas. Começou a andar em direção ao mar, e logo estacou, com um susto. Entre ele e a o topo inferior seguinte havia um abrupto corte vertical, um abismo, um precipício, um “canyon”, do qual não conseguia nem ver o fundo. Apenas a parte de cima da parede de pedra do outro lado, e o vazio à sua frente. “Que maçada!” pensou. Primeiro, para ver o fundo do problema, aproximou-se perigosamente da borda, para poder olhar para baixo. Uma pedra solta seria fatal. Pensou em deitar na borda, mas apesar de não ter ninguém olhando achou que seria feio. Procurou abstrair os tremores do cansaço e a falta de alimento, e expirando lentamente para manter a sua base esticou o pescoço e olhou para o fundo. “Caráleo!” Bem uns quinhentos metros de queda livre. Olhou em volta. Percebeu que, não fosse o abismo, seu caminho seria, por baixo, uns quinze quilômetros mais curto, pois o fundo do canyon apontava para o mar. A noite era aquela. A lua estaria absolutamente inflada e a sereia estaria lá. Podia sentir isso. E saiu andando pela beirada do precipício, olhando para baixo, procurando uma brecha para descer.

terça-feira, novembro 08, 2005

Surfista prateado, heptacampeão


Kelly Slater (post premonitório de maio)

Onda e vontade – Com que fissura essa onda chega, como se tivesse o que matar! Com que pressa assustadora se insere pelas tocas dos corais! É como se quisesse chegar antes de alguém; como se ali escondesse coisa de valor, muito valor. – E agora ela recua, um tanto mais devagar, ainda branca de loucura – estará desiludida? Terá encontrado o que procurava? Puta da vida? – Mas logo vem outra onda, mais louca e brava que a primeira, e também sua alma parece cheia de segredos e da fome de tesouros. Assim vivem as ondas – assim vivemos nós, animais com vontade! – e mais não digo. – O quê? Vocês desconfiam de mim? Ficam putas comigo, monstras lindas? Têm medo que eu traia o seu segredo? Pois bem, fodam-se, levantem os seus perigosos corpos verdes o mais alto que puderem, um muro entre mim e o sol – como agora! Realmente, nada mais resta do mundo senão o fim-de-tarde verde e os raios verdes. Façam como quiserem, morras gigantes, gritem de prazer e de maldade – ou novamente mergulhem suas esmeraldas nas profundezas, espalhando suas rendas brancas sem fim e rajadas de espuma – pra mim tá tudo certo, pois tudo lhes cai bem e por tudo agradeço: como eu poderia lhes trair? – Ouçam bem! Conheço vocês e o seu segredo, conheço a sua raça! Vocês e eu somos da mesma raça! – Vocês e eu, temos o mesmo segredo! (Nietzsche purinho)

domingo, novembro 06, 2005

O Operário


Vi ontem em dvd “O operário”, ou “El Maquinista”, ou “The Machinist”, uma produção internacional Espanha/Inglaterra/Estados Unidos, que os créditos dão a entender ser mais espanhola. Está na prateleira de “suspense” da locadora mas transcende muito o gênero. Uma balada – no sentido tradicional da canção ou poema que conta uma estória – sobre a degeneração mental de um torneiro mecânico há um ano sem dormir, que vai perdendo peso sem parar. Sim, membros são perdidos entre as engrenagens. O diretor americano, desses formados em escolas de cinema, devia ser um ótimo aluno e domina totalmente a linguagem do cinemão. Refinadíssimo. A trilha sonora é um primor. Claramente inspirada nas trilhas de suspense antigas, com pinceladas atonais e até aquele ululante sintetizador primitivo que se toca sem encostar as mãos, e faz um som parecido com o serrote-violino.

sexta-feira, novembro 04, 2005

Quebra-cabeças

Mais uma do Cali. Ouça.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Plano a, b, c...

Todos sabemos que três pontos fazem um plano e por isso o tripé é estável.
Plano a:
1. Cantada
2. Bolero
3.
Plano b:
1. Romance
2. Segredo
3.
Plano c:
1. Luta
2. Estômago
3.
Plano d:
1. Silêncio
2. Distância
3.

terça-feira, novembro 01, 2005

A simetria das ligações


Não vou nem tentar fazer uma metáfora química para as ligações humanas, como a falsa ciência de Goethe nas "Afinidades eletivas", falsa como a sua rala e poética teoria das cores, destruída por ninguém menos que Isaac Newton, a quem bem se aplica a expressão "o pai da matéria". Mas o jogo da atenção entre os humanos - e não estou nem falando em sexo - remete a equilíbrio . Algo assim como frescobol, o falso jogo, na verdade uma dança de ritmo e cooperação.

Cris e Robert


Bierrenbach


Crumb

segunda-feira, outubro 31, 2005

Minhas putas tristes

Acabei de ler essa maravilha do Gabo, verdadeiro pitéu. Um homem de 90 anos não é só um velho, mas também um homem, que se surpreende e se decepciona cada vez que contempla sua imagem no espelho. Por dentro não sente sua decrepitude. Descobre grandes novidades e revê os seus valores. O amor, custe o que custar, o bolero, pra mim em sentido amplo, as canções de amor, e cantar. E que movido a esse novo e precioso combustível apronta mil e umas. Dá a impressão que vale a pena chegar lá, e aproveitar até a última gota.

sexta-feira, outubro 28, 2005

Todo mundo tem o seu baú

ta tudo preto feito um cu (Céline)
um urubu pousou na minha sorte (dos Anjos)

sim sou só um viajante andando sobre a terra disse o jovem werther sofredor
na aflição de não poder tocar sua carlota, apesar de estar ali tão perto

sou ao mesmo tempo o viajante o camelo e o deserto
disse o solitário flauberto, depois de velho, cada vez mais louco e mais esperto

não vou lá não vou lá não vou lá vou ficar aqui

ta tudo preto feito um cu
um urubu pousou na minha sorte

quando você ficar velhinha
apareço pra tomar um chá na sua cozinha
mas até lá é melhor eu ficar longe
até lá vou ter que dar uma de monge
padre pecador traidor da batina
trair meu amor rejeitado com qualquer menina
sou moço ainda minha carne é fraca
não adianta querer chutar o pau da barraca
já que o ex-pinguço não pode ver garrafa
o ex-pinguço enche a cara de garapa

quinta-feira, outubro 27, 2005

Tears of a clown



Ontem na última hora um amigo me liga oferecendo um ingresso para o Elvis Costello. "Uau, ganhei na loteria". O lugar era no fundão, mas tinha lido no jornal que no Rio ele chamou o público para a frente do palco, então já ficamos preparados. Até a área isolada para os fotógrafos ele fez liberar. Fomos parar no gargarejo. Um quarteto clássico de rock, bateria, baixo (o baixista fazia excelentes backing vocals) , teclados (só os timbres tradicionais) e o Elvis na guitarra. Não pensava que ele tocasse tão bem. A mesma musicalidade exuberante e expressiva de como ele canta. Duas horas de canções de todas as épocas do seu monstruoso repertório de próprias e covers, e muitas do Delivery Man. "Tears of a clown" de Smokey Robinson entrou num medley Motown. E no longo bis, com uma guitarra vermelha brilhosa medonha pendurada no pescoço, cantou a breguíssima "She", que ficou linda. Lembrei da Leila que outro dia nos ofereceu essa versão lá no Stuck in Sac, num post emocionante sobre sua mãe. Ando preguiçoso para essas coisas, mas tem umas que não pode perder.

quarta-feira, outubro 26, 2005

Home of the brave, land of the free


Chegaremos lá. Ontem, Cachinhos de Mel, aos oito anos, com seu próprio rifle, matou o Papai Urso com duas balas no peito. "Quem comeu o meu mingau?"

terça-feira, outubro 25, 2005

Referendado está, mas...

O sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar nos corações
O mal será queimada a semente
O amor será eterno novamente
É o Juízo Final, a história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer

(Nelson Cavaquinho)

segunda-feira, outubro 24, 2005

Referendado está

Em homenagem à bancada da bala, música composta por Bob Geldof baseada em fatos reais. Uma adolescente que fuzilou oito coleguinhas, ao ser perguntada do motivo, respondeu "I don't like mondays".

The silicon chip inside her head
Gets switched to overload,
And nobody's gonna go to school today,
She's going to make them stay at home,
And daddy doesn't understand it,
He always said she was as good as gold,
And he can see no reason
Cos there are no reasons
What reason do you need to be shown

Tell me why
I Dont't like Mondays
I want to shoot
The whole day down

The Telex machine is kept so clean
As it types to a waiting world,
And Mother feels so shocked,
Father's world is rocked,
And their thoughts turn to
Their own little girl
Sweet 16 ain't that peachy keen,
No, it ain't so neat to admit defeat,
They can see no reasons
Cos there are no reasons
What reason do you need to be shown

Tell me why ...

All the playing's stopped in the playground now
She wants to play with her toys a while
And school's out early and soon we'll be learning
And the lesson today is how to die,
And then the bullhorn crackles,
And the captain crackles,
With the problems and the how's and why's
And he can see no reasons
Cos there are no reasons
What reason do you need to die

The silicon chip ...

Tell me why ...

(Bob Geldof)

sexta-feira, outubro 21, 2005

Ao cubo³




Cheiro de sereia no mercado de pinheiros.

A foto e a legenda são do Guga, e estão publicadas no arquitetônico blog "Ao cubo³".

quarta-feira, outubro 19, 2005

Por entre as grades

Beba amor
Fique acordada
Podia ter feito mas não fez nada
Tanto potencial
Mas não faz mal
Promessas que você fez
Beba comigo
Esqueça o perigo
Tanta pressão, faça o que eu digo
Você vai ficar bem
Vou levar para o além
As imagens que não lhe convêm

Gente do seu passado
Que você não quer ao seu lado
Que empurra, chuta, só dá trabalho
Vou lhe proteger

Beba amor
E olhe as estrelas
Vou te beijar por entre as grades
Você neste lugar
Com as mãos para o ar
Finalmente você está presa
Beba mais uma então
E eu te faço só minha
Te deixo guardada no meu coração
Separada do resto
Onde eu quero que esteja
E lembro do que se esqueceu

Gente do seu passado
Que você não quer ao seu lado
Que empurra, chuta, só dá trabalho
Vou te proteger

("Between the bars", Elliott Smith)

terça-feira, outubro 18, 2005

Meire Humane

A informação mais misteriosa trazida por Hans Staden é a de Meire Humane, que segundo nota de rodapé seria um dos mitos históricos americanos pré-colombianos: nome de misterioso personagem que, segundo a tradição, teria aparecido entre os selvagens, servindo-lhes de legislador e mestre.


Assim a ele se refere o alemão, ao comentar o corte de cabelo dos tupinambás:


"Eles raspam a cabeça, deixando apenas uma coroa de cabelo, semelhante à de um monge. Perguntei-lhes diversas vezes como é que tinham chegado a esse tipo de cabelo e eles contaram que seus antepassados tinham-no visto em um homem de nome Meire Humane, que realizara muitas maravilhas entre eles. Era considerado um profeta ou apóstolo."


Matteo Ricci, o jesuíta que passou boa parte da sua vida na China no século XVI, comenta que na sua viagem de ida, em uma escala na Índia, encontrou uma comunidade perdida de cristãos primitivos, com a doutrina e os rituais um pouco alterados talvez pelo isolamento, ou por derivarem de uma fonte anterior à cristalização da igreja católica, que também usavam uma tonsura invertida, exatamente como a descrita por Staden. Teriam a mesma origem desse misterioso Meire Humane, de quem o Google nada nos traz? Seriam apóstolos antiquíssimos perdidos pelo mundo?

domingo, outubro 16, 2005

Post de florzinha



Assisti ontem "O Jardineiro Fiel", filmão dirigido por Fernando Meirelles, que conta uma terrível história de sacanagens da indústria farmacêutica na África. Se não é verdadeira - e não se diz que seja - é plausível. O protagonista é o sujeito bem sem graça que fez "O Paciente Inglês", aquele filme megachato. A heroína é maravilhosa, bem como a atriz que a interpreta. A florzinha aí é uma sobrevivente abandonada no terraço da minha casa, uma cattylea de origem brasileira, da cor que chamam cerúlea.

sábado, outubro 15, 2005

O que eles usam para viajar na água

Na terra deles há um determinado tipo de árvore a que dão o nome de igaibira. Eles destacam a casca dessa árvore de cima abaixo, num único pedaço. Para consegui-la inteira, fazem uma armação extra em torno da árvore.

Transportam essa casca das montanhas até a beira do mar, onde ela é aquecida sobre o fogo e então dobrada para cima, tanto na parte de trás quanto na da frente. Antes disso, amarram madeiras no meio para que não se distenda. É dessa maneira que fabricam barcos, nos quais até 30 homens podem ir em expedições de guerra. A casca é da grossura de um polegar, tendo mais ou menos 4 pés de largura e 40 pés de comprimento, algumas ainda mais longas, outras mais curtas. Com tais barcos, eles viajam o quanto quiserem, remando depressa. Se o mar está agitado, arrastam os barcos para a terra até que o tempo melhore novamente. Não ousam afastar-se mais de duas milhas no mar, mas navegam trechos muito grandes ao longo da costa.


(A verdadeira história dos selvagens nus e ferozes devoradores de homens encontrados no novo mundo, a América, e desconhecidos antes e depois do nascimento de Cristo na terra de Hessen, até os últimos dois anos passados, quando o próprio HANS STADEN DE HOMBERG em Hessen os conheceu, e agora os traz ao conhecimento do público, por meio da impressão deste livro).

sexta-feira, outubro 14, 2005

Quer expiar suas culpas?




Até o século XVI era comum a pena de galés, que consistia em acorrentar o gajo pelo pé a uma galera como essa veneziana, e obrigá-lo a impulsionar a embarcação com um remo de mais ou menos onze metros, junto com mais dois condenados, pelo resto da vida.


Existe uma versão moderna, voluntária, para ambos os sexos e todas as idades:


quinta-feira, outubro 13, 2005

quarta-feira, outubro 12, 2005

Aprendi com os matogrossenses

Nessa tépida tarde de feriado ensolarado, com a cidade tranqüila, lembrei de um comportamento típico dos fazendeiros matogrossenses. Deve valer também para os vizinhos. Andar com o vidro aberto e o ar condicionado ligado no máximo, de preferência numa cabine dupla diesel branca (por uma questão térmica óbvia), com o som ligado alto (para vencer o vento), tocando Zezé de Camargo e Luciano (ou assemelhado, melhor "de raiz"), fumando, e com o bração pra fora. É o equivalente moderno de desfilar na cidade no cavalo com a marcha alta, de arreio novo, casco aparado e bem ferrado, fazendo bonito para as moças. Claro que numa versão paulistana o carro não será branco (cor de táxi) e o som será provavelmente outro.

terça-feira, outubro 11, 2005

Omissão de socorro

Na passagem do ano de 91 para 92 fui para a Praia do Rosa em Imbituba, Santa Catarina, com um enorme grupo de amigos e várias crianças pequenas, e ficamos numa única pousada que havia lá, com chalés espalhados por um pasto cheio de carrapichos, onde não dava para andar descalço. Entrou um mar enorme no canto sul, e eu, inconseqüente e fora de forma, peguei uma prancha do dono da pousada entrei pela prainha lateral, evitando a arrebentação. Tomei um couro danado e saí. Depois, nos outros dias, o mar foi baixando e surf parado há vários anos foi voltando. Tinha um paradisíaco boteco elevado, bem em frente ao pico, e passava muito tempo ali, olhando os bons surfistas pegando ótimas ondas, um espetáculo. O resto do tempo era na rede do chalé, que tinha uma vista semelhante.

Um dia fomos passear pelo costão em direção à praia vizinha, Ibiraqüera, onde ficavam os windsurfers, e apesar do tempo bom, havia um vento bem forte e constante, que nas rajadas chegava a desequilibrar. Era uma caminhada nada atlética, e um de nós até levava uísque dentro de uma daquelas garrafinhas plásticas de esportistas. Às tantas, vimos dois moleques só de calção, a meia altura de um enorme paredão de pedra, em plena escalada de alta dificuldade. Dali a pouco, um deles travou. Não ia nem para frente nem para trás, enquanto o outro ia dele se distanciando e se aproximando do topo da parede. O tempo foi passando e nada do cara se mexer. Nós começamos a discutir o que fazer. Estávamos à meia hora do carro, que estava à quarenta minutos da cidade, que não teria nenhum recurso plausível para salvar o sujeito. Concluímos que só podíamos ficar olhando e torcendo para o cara sair de lá. Fomos nos aproximando do local onde estavam e vimos o outro chegar ao alto da parede. Quando viu o companheiro ainda lá começou a gritar, "venga, maricón", ou algo assim, um longa exortação em impropérios castelhanos. Nada do cara se mexer, e o tempo passando. Seria uma queda de uns dez metros de altura sobre pedra e mar, morte certa. O que já tinha chegado fez então o que era necessário. Voltou lentamente, refazendo a perigosa escalada descendente e chegou onde estava o paralisado. E foi atrás dele, orientando cada movimento, pedra por pedra, saliência por saliência, mão aqui, pé ali, e tirou-o de lá. Nós, angustiados, assistíamos sem fazer nada. Quando finalmente saiu de lá, o sujeito estava em estado de choque, mal conseguia falar. O maricón tomou um belo gole do uísque e contou que o tempo todo que esteve travado formigas mordiam seus pés e suas mãos.

domingo, outubro 09, 2005

O sonho de Pecus

Pecus acomodou-se na enorme forquilha da grande árvore, a poucos metros do chão. Certificou-se que tinha apoio por todos os lados, e por fim, relaxou da longa corrida em fuga, sem perseguidores. Estava livre. Ainda que o roteiro de fuga mais freqüente fosse descendo o rio, normalmente os fugitivos tão logo se sentiam seguros deixavam a corrente e tentavam alcançar o sertão, buscando os quilombos perdidos nas distâncias. Já estava fora do caminho mais óbvio, e a chance de ser capturado antes de ser visto por alguém que pudesse dar conta de seu paradeiro era muito pequena. Alscutou a mata na escuridão, reconhecendo alguns dos inúmeros ruídos próximos e distantes, e embalado pelo coaxar repetitivo de alguns sapos se comunicando, começou a pensar na sereia.

Depois de algum tempo não sabia se estava dormindo ou acordado. Começou a sentir a presença da sereia como se ela estivesse ali do seu lado, até o aroma da sua maresia. Parecia ouvir pequenas ondas quebrando direto na areia, com a característica chicotada na calma do mar noturno. O canto! Um murmúrio insinuava-se entre o som das ondas, uma longa nota emitida de cabeça, por entre as cavidades do crânio, de boca fechada. Daí passou a variar numa escala, que depois de um longo tempo prestando atenção Pecus compreendeu que eram apenas cinco notas, que se alternavam de forma que lhe parecia aleatória, também em duração. Ele teve certeza que ela lhe dizia que não tivesse pressa, que ele agora estava próximo, e que ela tinha todo o tempo do mundo.

sexta-feira, outubro 07, 2005

Hora da ave maria


Aos amigos que hoje vão chutar o balde na hora da Ave Maria, mais uma do Cali.

quinta-feira, outubro 06, 2005

400 coups

Como estou acordando muito cedo para praticar esportes, só consegui ontem ver os “400 coups” sem dormir. É realmente um filmão, que merece a aura cult que tem. Praticamente não tem uma história, é uma seqüência de acontecimentos encadeados que não vai dar em nada, só uma fuga para a beira do mar. Aí é que vi a graça do filme, na narrativa desapaixonada de erros voluntários e involuntários, mal entendidos e mentiras, implicando meias injustiças que acabam deixando o protagonista pré-adolescente totalmente desamparado e solitário, condição que ele parece aceitar estoicamente. Quando a psicóloga do reformatório pergunta se Antoine mente, ele diz que sim, às vezes, mas que não faz diferença nenhuma, porque também não acreditam quando ele diz a verdade. A trilha sonora deixa um pouco a desejar, com a repetição de um bizarro “chorinho/bossa nova” de balanço discutível. Mas há também um tema simples e bonito executado por um singelo violão, que cai bem. Fiquei curioso para ver os outros quatro filmes com o mesmo personagem, mas a minha locadora não tem. Mas quem tem pressa? Um dia eu vejo. Para um clima parisiense pb, a tragada azul de um cigarro sem filtro do Django.

quarta-feira, outubro 05, 2005

Antes tarde do que nunca



François Truffaut fez cinco filmes em que Jean Pierre Léaud intepreta um mesmo personagem autobiográfico, Antoine Doinel, ao longo de 20 anos. A foto é tirada da seqüência final do primeiro, "Os incompreendidos" ou "Les quatre cents coups", do fim da década de cinqüenta.

terça-feira, outubro 04, 2005

A arma do bandido

Quer dados para decidir? Veja aqui.


"As armas oriundas dos "Cidadãos Ordeiros"predominam fortemente nos Estupros (67%).
A arma de fogo que se tem em casa aumenta a potência do agressor, seja ele parente, vizinho ou colega da vítima.
As armas oriundas dos "Cidadãos Ordeiros" são fortemente majoritárias também nos casos de Furto. É o varejo dos pequenos delinqüentes, abastecido por armas furtadas ou revendidas.
Também no porte ilegal, temos o varejo resultante dacultura do medo, onde "Cidadãos Ordeiros" (60%) decidem circular pelas vias públicas portando armas, ilegalmente.
Impressiona a forte presença das armas oriundas dos "Cidadãos Ordeiros" em crimes mais violentos, como o Roubo (51%) e o Latrocínio (46%). É o resultado, provavelmente, das transferências das armas dos estoques legal e informal para o criminal, através de roubos ou de revendas.
Impressiona ainda a forte presença das armas oriundas dos "Cidadãos Ordeiros" nas ocorrências que resultam em Lesões por Arma de Fogo (49%). Pesam aqui os casos de conflitos passionais, vinganças e desavenças ocasionais.
Surpreende a alta participação das armas oriundas de "Cidadãos Ordeiros" no conjunto de armas apreendidas no Tráfico de Drogas (51%). É o fruto das transferências (roubos e revendas) para os baixos escalões do crime organizado, que fazem, justamente, os grandes números dos indivíduos envolvidos.
Alta, por fim, a participação em Homicídios (38%)."

segunda-feira, outubro 03, 2005

Fim de semana no campo

É incrível como uma casa de fazenda pôde permanecer praticamente inalterada por pelo menos 33 anos. A casa, os móveis, a comida, os hábitos, as mãos invisíveis que arrumam e servem, tudo continua igual. Isso é que é ser conservador. Ninguém mais hospitaleiro do que essa simpática família. O mesmo pão caseiro, o queijo branco, a mandioca frita amarela e crocante, as compotas, a piscina com água turva, a tropa bonita e bem arreada, as jaboticabeiras cada vez maiores. Se algumas árvores cresceram outras não existem mais, e a massa vegetal causa a mesma impressão. Em algum momento entre o fim dos anos 70 e o começo dos 80 o café substituiu o algodão, e a grande tulha que ficava cheia de algodão até o alto, e desde então não era usada, há pouco tempo desabou. Em volta a cana ganha espaço frente ao café e à laranja, e há muito menos gente morando por ali. Se há algumas notícias de assaltos nas redondezas, a quantidade e variedade de aves parece ter aumentado. Esse foi o fim de semana das cigarras, que faziam um barulho ensurdecedor, e atraíram dezenas de gaviões.

sexta-feira, setembro 30, 2005

Blog encontro com o Stijn

O blogueiro belga Stijn, de passagem por São Paulo, nos convida para um chopp:

Quem quiser vir:
Segunda, dia 3/10, às 8 e meia
é no balcão, onde rola uma das melhores hamburguesas da capital.
fica na melo alves com tietê.
Até lá!

BAR BALCÃO
Rua Dr. Mello Alves, 150
Tel.: (11) 3061-3781

Suspense

Vai aí a versão do "Love me or leave me" (Khan/Donaldson), que todos conhecem na voz de Billie Holiday. O título e o refrão são a subversão do slogan macartista plagiado pela nossa ditadura militar: "Brasil, ame-o ou deixe-o". A versão foi nomeada "Suspense" pelo autor, o Cali, que também a interpreta em simpática gravação caseira.
This suspense is killin' me
I can't stand uncertainty
Tell me now, I've got to know
Whether you want me to stay or go
Love me or leave me or let me be lonely
You won't believe me, I love you only
I'd rather be lonely
Then happy with somebody else
You might find the night time
The right time for kissin'
But night time is my time
For just reminiscin'
Regrettin' instead of forgettin' with somebody else
There'll be no one unless that someone is you
I intend to be independently blue
I want your love but I don't want to borrow
To have it today to give back tomorrow
For your love is my love
There's no love for nobody else