quarta-feira, setembro 27, 2006

Ainda sobre autoria

Um trecho ótimo do Jorge Furtado:

Aliás, quase todas as inovações nas estruturas da narrativa surgem na linguagem popular, o mesmo berço da língua. Os escritores só tem o trabalho de botar no papel, citando a fonte ou não. Guimarães Rosa aprendeu quase tudo com os sertanejos. Simões Lopes Neto, segundo o Aurélio, recebia "gente simples para longas conversas". Shakespeare, que eu saiba, nunca inventou uma história. E olha o que o Mário de Andrade escreveu quando foi acusado de "se inspirar" num livro do naturalista Koch-Grünberg para escrever Macunaíma: "Copiei sim. O que me espanta, e acho sublime de bondade, é dos maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, restringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos. Confesso que copiei, copiei as vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndicos, mas ainda, na Carta pras Icamiabas, pus frases inteiras de Rui Barbosa, de Mário Barreto, dos cronistas portugueses coloniais..." O genial de Mário (assim como de Rosa, Shakespeare e Lopes Neto) não está na "originalidade", adjetivo muito usado por quem desconhece o passado, mas sim no talento com que mescla conhecimento e "convicções audazes". Quem antes dele poderia terminar um romance com a frase "Tem mais não"?

terça-feira, setembro 26, 2006

Autores

O romance não morreu, mas que perdeu um enormíssimo terreno na circulação de histórias de entretenimento para o cinema, e a televisão, perdeu. Sei lá, chutaria uns 95 %. Antes do cinema não tinha jeito. Para apreciar uma história, tinha que ler ou ir ao teatro. O cinema demorou a substituir a leitura, por estar vendendo mais o deslumbramento das imagens animadas do que a história em si, suponho eu. O teatro também arrisco afirmar nunca teve o volume necessário para competir com os livros e folhetins, pela limitação física da montagem, quantos conseguem assistir. Mas o cinema atual tem um monumental poder de fogo, e consegue contar uma mesma história a centenas de milhões de pessoas em poucos dias. E depois vem outro, e outro, e outro, e o volume de produção é enorme, ficando difícil acompanhar todos os lançamentos interessantes. Engraçado é como mudou o foco da autoria. No cinema, a figura do autor está muito mais centrada no diretor, que é quem conta a história, do que no roteirista, que é quem prepara a história para ser contada, que não é necessariamente o criador da história. Esta constatação me fez pensar que no romance não é diferente. Só que no romance, no mais das vezes, o criador da história se confunde com quem conta. Mas não necessariamente, e nem mesmo tão freqüentemente como pode parecer. Muitos romances são criados a partir de histórias reais, disfarçadas ou não, como nos romances históricos, sobre lendas antigas vindas da tradição oral, ou a partir da colagem de vários elementos, incluindo histórias de outros autores. Não importa. A autoria não é do criador da história, ou da idéia ou do argumento. A autoria é de quem conta a história, a forma com que se conta a história. No caso da literatura, a exata ordem das palavras. No cinema, é daquele que determina como vão ser captadas e ordenadas as imagens e sons, ou seja, o autor das imagens e sons. O mais incrível é que qualquer história pode ser contada nas duas horas de um filme.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Fluxo da consciência

Fui visitar meu pai em sua casa de campo este fim de semana e li o “Lavoura Arcaica”, um exemplar presenteado a ele pela minha irmã, condições propícias para sanar mais uma lacuna da minha infinita ignorância. Um traço curioso do livro é por o complexo discurso em primeira pessoa do narrador na boca de um adolescente. Está na cara que é a recuperação reflexiva do adulto, um outro narrador oculto sob a figura do autor, do processo natural de rompimento com a família, o amor da mãe e a autoridade do pai, necessário à conquista da autonomia. Um lar tão bem construído sobre bons princípios e amor abundante, que o conflito necessário exige a violência do maior tabu, o incesto. Uma jóia de projeto, construção e acabamento, que não deixa de ter seus momentos de humor, como a descrição de uma cabra como objeto erótico.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Equinócio

A primavera está voltando, chega na cidade de São Paulo no dia 23, à uma e quatro da manhã. Gostei de ver que correspondendo à expectativa tradicional voltou a chover nos últimos dias, dando a impressão que os grandes ciclos climáticos estão razoavelmente nos eixos, apesar do decantado aquecimento do planeta. E com ela virão as flores e os amores, pra quem está atrás disso. Pra quem não está, outros caminhos devem se abrir, lavados pela chuva, ao som do trovão, São Pedro fazendo a faxina no céu.

quarta-feira, setembro 20, 2006

Redução

Uma das táticas fisiológicas usadas pelo corpo na luta pela sobrevivência é a redução do metabolismo em situações especiais. No frio diminui-se o próprio tamanho do corpo pela eliminação de líquidos – daí a vontade de urinar – para obter-se a redução da circulação de sangue pelos vasos sangüíneos periféricos, e assim perder menos calor, tentando manter quentes os centros essenciais, cabeça e tronco. Exatamente como as empresas em momentos de crise, que reduzem as atividades e proporcionalmente os custos, diminuindo despesas e mandando embora empregados. Talvez a estratégia valha também para a economia emocional. Pretende-se que a redução seja temporária, necessária até ser superada a escassez, sempre buscando-se a saída para a abundância.

terça-feira, setembro 19, 2006

Duas polegadas a mais

Minhas filhas adolescentes dividiam um computador, até que percebemos não ser mais possível o uso compartilhado de algo tão íntimo e pessoal, a mais profunda extensão da personalidade que posso conceber, prenhe da produção, a rede social, e os segredos e preferências de cada um. Acredito que a próxima evolução da proteção aos direitos da personalidade terá que dar inviolabilidade a tais máquinas, não sendo mais possível distinguir quanto de nós está dentro ou fora delas. Compramos um novo para uma que aniversariou, que foi por isso promovida de um monitor de 15 para 17 polegadas, e o seu mundo visível tomou outra dimensão. Dos cabalísticos 1024 x 768 para os não menos cabalísticos 1280 x 800, o retângulo para o qual ela passa horas e horas do dia e da noite olhando, seu espelho, seu horizonte, enfim, foi ampliado. Muda alguma coisa?

Não contem pras crianças

Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006 (entra em vigor 45 dias após a publicação, ou seja, no dia 6 de outubro).
CAPÍTULO III
DOS CRIMES E DAS PENAS
Art. 27. As penas previstas neste Capítulo poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, bem como substituídas a qualquer tempo, ouvidos o Ministério Público e o defensor.
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
Art. 29. Na imposição da medida educativa a que se refere o inciso II do § 6o do art. 28, o juiz, atendendo à reprovabilidade da conduta, fixará o número de dias-multa, em quantidade nunca inferior a 40 (quarenta) nem superior a 100 (cem), atribuindo depois a cada um, segundo a capacidade econômica do agente, o valor de um trinta avos até 3 (três) vezes o valor do maior salário mínimo.
Parágrafo único. Os valores decorrentes da imposição da multa a que se refere o § 6o do art. 28 serão creditados à conta do Fundo Nacional Antidrogas.
Art. 30. Prescrevem em 2 (dois) anos a imposição e a execução das penas, observado, no tocante à interrupção do prazo, o disposto nos arts. 107 e seguintes do Código Penal.

segunda-feira, setembro 18, 2006

O coronel

Gostei de uma frase que o assassinado Coronel Ubiratan gostava de repetir, citada por um de seus filhos em entrevista ao Estadão no sábado, algo assim como “a coisa tá ruim, morde o freio e agüenta”, denotando suas origens de cavalaria. Engraçado o cavaleiro tomar a perspectiva do cavalo. A expressão, vinda de quem está no alto da hierarquia militar, pode não ser exatamente uma auto-ironia, ou a identificação do cavaleiro com sua montaria, mas do subalterno com a animália. É uma interpretação maldosa. E a frase é curiosamente próxima daquela outra “tomar o freio nos dentes”, que significa a rebeldia do animal contra o cavaleiro. Será que tudo isso tem alguma relação oculta e invisível com o massacre do Carandiru?

terça-feira, setembro 12, 2006

Estréia e festa



Parece que o a. vai.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Posesión del ayer

Sé que he perdido tantas cosas que no podría contarlas y que esas perdiciones, ahora, son lo que es mío. Sé que he perdido el amarillo y el negro y pienso en esos imposibles colores como no piensan los que ven. Mi padre ha muerto y está siempre a mi lado. Cuando quiero escandir versos de Swinburne, lo hago, me dicen, con su voz. Sélo el que ha muerto es nuestro, sólo es nuestro lo que perdimos. Ilión fue, pero Ilión perdura en el hexámetro que la plañe. Israel fue cuando era una antigua nostalgia. Todo poema, con el tiempo, es una elegía. Nuestras son las mujeres que nos dejaron, ya no sujetos a la víspera, que es zozobra, y a las alarmas y terrores de la esperanza. No hay otros paraísos que los paraísos perdidos.

J.L.Borges, Los conjurados.

É um poema sobre as perdas. Ao perder a visão, Borges perdeu as cores, mas pensa cores impossíveis que não pensam os que vêem. Sobre os versos do poeta, possivelmente um amigo, interpreta-os com a voz do outro, preenchendo com ela a sua ausência. O pai morto está sempre ao seu lado. “Só é nosso o que perdemos” é o mote do poema. Mas não se perde o que nunca se teve. “Nossas são as mulheres que nos deixaram”. E estamos livres dos alarmes e terrores da esperança.

segunda-feira, setembro 04, 2006

O fio da fábula

O fio que a mão de Ariadna deixou na mão de Teseu (na outra estava a espada) para que este se enfiasse no labirinto e descobrisse o centro, o homem com cabeça de touro ou, como quer Dante, o touro com cabeça de homem, e o matasse e pudesse, já executada a proeza, desemaranhar as redes de pedra e voltar para ela, para o seu amor. As coisas aconteceram assim. Teseu não podia saber que do outro lado do labirinto estava o outro labirinto, o do tempo, e que num lugar pré-fixado estava Medéia. O fio perdeu-se, o labirinto perdeu-se também. Agora nem sequer sabemos se nos rodeia um labirinto, um secreto cosmos ou um caos imprevisível. O nosso bonito dever é imaginar que há um labirinto e um fio. Nunca daremos com o fio; talvez o encontremos e o percamos em um ato de fé, em uma cadência, no sono, nas palavras que se chamam filosofia ou na mera e simples felicidade.



J. L. Borges, "Os Conjurados".

Esta imagem do Minotauro no fundo do labirinto, e Teseu a descer com a guia do caminho de volta, de Ariadne para Ariadne, pra mim tem o significado do enfrentamento do civilizado com o selvagem que habita em nós, o desejo físico que tanto nos perturba, o mesmo que a fábula do rei Kong. Em outro plano talvez também o egoísmo e a violência. Posso chutar que o corpo de touro e cabeça de homem do monstro de Dante é por causa disso, o ênfase do selvagem na parte inferior do corpo.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Saga

“A monarquia morreu... Deixemo-la na podridão silenciosa do seu transe, que nem a lira dos bardos entoará por ela sagas épicas, nem a boca dos áugures há de rezar-lhe outros responsos que não sejam desdenhosas vaias por não ter sabido defender-se (Fialho, Saibam Quantos, p. 14, ed. 1912).” Do Caldas Aulete. Saga é uma palavra de origem escandinava que significa a tradição histórica. Epopéia é o poema que narra, por assim dizer uma saga de ações grandiosas e heróicas. Se qualificarem assim suas façanhas, e você não é Ulisses, Erik, o viking, ou Vasco da Gama, você estará sendo tratado com ironia.