sábado, fevereiro 25, 2006

Orgulho e preconceito

Fui hoje de manhã devolver os livros na biblioteca, dois Clarice e um Saramago, e a elegante senhora que me atendeu surpreendeu-se. Me olhando de lado por cima dos óculos, balançando afirmativamente a cabeça, pronunciou devagar, alto e claro, com um sorriso maroto: “Ah, Clarice Lispector!”. Pressenti mil significados ocultos nessa exclamação. Que mágica tem essa mulher. E para ler na praia, uma casa no morro com vista para uma linda baía, retirei, em homenagem ao amigo Fitzwilliam, meu consultor para assuntos de literatura inglesa, “Orgulho e Preconceito” da Jane Austen. Outro dia fui ver o filme, que apesar dos cenários, figurinos, trilha sonora (acho que são essas as indicações para o Oscar), e o excelente trabalho dos atores, em especial da linda Keira Knigthley, não me convenceu. E comecei a expor ao Fitzwilliam uma superficial e apressada teoria – como faço sempre – de ser a obra e Jane Austen conformista com a sociedade injusta em que vivia, idealizando o mundo dos ricos e reduzindo suas heroínas a maravilhas deslocadas que através do amor romântico ascendem pelo casamento ao olimpo burguês, que lhes pertenceria por merecimento em função de suas qualidades e talentos. Enquanto Fitzwilliam se contorcia de revolta contra minha crítica despreparada a uma de suas autoras favoritas, contrastei a submissão de Austen aos discursos inflamados do arrasador Shylock de Al Pacino, visto também por aqueles dias, que não deixa pedra sobre pedra não só contra o preconceito racial mas também da injustiça social da Veneza dos doges. Fitzwilliam me garantiu que o problema só podia ser do filme, pois Austen escrevia sobre o seu contexto social, que conhecia muito bem, com o objetivo justamente de denunciar as mazelas daquela burguesia com complexo de inferioridade em relação à nobreza, e aqueles personagens românticos que me pareceram dignos de um novelão mexicano são construídos no romance com uma densidade pscológica comparável aos de Machado de Assis. Despido de qualquer orgulho ou preconceito, vou conferir. Bom carnaval.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Uma generalização burra

Encostamos a ponta esférica da caneta sobre o papel, o que produz um ponto. Puxamos o ponto pelo papel, que vai deixando atrás de si um rastro de tinta azul grossa e viscosa. Desenhamos letras emendadas em palavras que por convenções podem ser retransformadas em sons que dão nome às coisas corpóreas e incorpóreas, suas qualidades, e ações e relações a que podem ser submetidas. Convenções foram se sobrepondo às convenções para reduzir as ambigüidades, que todavia permanecem. A palavra falada em conversa é muito mais precisa que a escrita, desde que haja interesse dos interlocutores em compreender, porque permite esclarecimentos imediatos das dúvidas surgidas. E a mensagem pode ser mais profunda e elaborada se for produzida previamente por escrito, para que o empilhamento das idéias em estruturas complexas fique estável. Onde queremos chegar com toda essa conversa? Planejar ações conjuntas com resultados proveitosos para suprir nossas inesgotáveis necessidades. Para realizar as ações que efetivamente suprem as necessidades não precisamos mais das palavras e as elaboradas construções que elas permitem. Comer, beber, trepar, celebrar, dançar, cantar, rezar, dormir, toda a sorte de atividades físicas, quase todas as artísticas, e mesmo simplesmente estar em boa companhia, nenhuma dessas ações que são o fim de tanto planejamento precisam de palavras articuladas em idéias. No máximo, interjeições, nomes, seqüências repetidas de palavras já reduzidas de significado em canções ou rezas, meros sons, como os produzidos por animais. Claro que jogar conversa fora sem planejar nada, sem nenhum sentido utilitário, também é uma delícia, uma necessidade que se esgota em si, e bem acompanha qualquer das atividades fim, a não ser quando atrapalha.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Emburrecendo

Globeleza 2006


Chega de ler. Tantas leituras eruditas, em tão pouco tempo, queimaram o meu bestunto. O negócio agora é submeter a cachimônia a uma severa terapia de raios catódicos, novelas, bbbs e que tais. E naufragar no último círculo dos infernos globais, o carnaval ao vivo. Comendo bolacha doce sanduíche recheada de creme rosa e tomando caipirinha pronta. Isoporitos e chicken pop-corn. Vou comprar um rider. A doutrina zen da entrega total. Que venham os urubus.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Coração selvagem

Fiquei estupefacto com a leitura do “Perto do coração selvagem”, o romance de estréia de Clarice Lispector publicado em 1944, e provavelmente escrito um ou dois anos antes, durante o curso de direito da autora, terminado em 1943. Ela devia ter algo em torno de 22 anos.

Causou-me a impressão de um enorme esforço para comunicar-se com os semelhantes, num plano mais profundo ou elevado, a exigir a palavra escrita e a lentidão da leitura ruminada da vaca de Nietzsche para a transmissão de experiências pra lá de introspectivas, usando as mais delirantes metáforas que eu já vi.

Os longos parênteses que entremeiam alguns dos diálogos mostrando o descompasso entre a velocidade do pensamento e a conversa falada são surpreendentes, assim como a alternância de humores e sensações que cabe nesses poucos segundos de conversa, minuciosamente descritos, ou em outros curtos momentos do cotidiano.

A absoluta falta de complacência, condescendência ou compaixão com os personagens, em especial com Joana, que parece ser o alter-ego da autora, denota a vontade de dissecar sem nenhum pudor o interior dos humanos, e descobrir o que os impulsiona a rastejar sobre o planeta.

O livro termina com um discurso quase messiânico sobre o poder da palavra e a certeza de Joana que um dia será compreendida. Acho que a profecia se cumpriu, mas agora me assustam um pouco as mulheres que apontam Clarice como sua melhor tradutora.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Claustrofóbica

No claustro, a pedra estava lavada a jato, cheirando a pedra nova, branca, sapólio. Um sujeito com um esfregão e uma mangueira ainda friccionava alvejante nas paredes, antes quase negras, agora rosadas, e a luz oblíqua que entrava no quadrado circundado por arcos refletia-se muitas vezes dentro daquele cubo profundo, reduzindo as sombras à sua memória. O choque da lavagem dava um ar de novidade à lembrança dos fatos passados, tão renovados pelos fatos recentes que o levaram até lá. Sentou-se num dos longos bancos de madeira e apreciou o frescor da pedra lavada na tarde quente de verão. Viu e reviu os vários rolos de filmes rodados naquele cenário, a ponto de sentir que a qualquer momento uma daquelas cenas se repetiria na sua frente. Levantou, deu uma volta pelos corredores, olhando as fechaduras douradas e lustradas das grandes portas trancadas que ficavam nos seus cantos mais escuros. E foi embora assobiando uma melodia contemporânea àquelas memórias, errando uma ou outra nota.
Clarice por Portinari

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Sexy and seventeen

Comecei a ler o “Perto do Coração Selvagem”, e a edição que peguei em uma biblioteca, traz na orelha a informação de ter sido escrito quando a Clarice Lispector tinha 17 anos! Achei esquisito, e buscando por aí encontrei informações contraditórias quanto à sua data de nascimento. Encontrei 1920, 1925 e 1926. A fonte que me pareceu mais confiável, o arquivo da Casa Rui Barbosa, é baseado em documentos da própria e afirma 1920 como data de nascimento, e a autoria da obra no período da faculdade de direito, terminada em 1943. Deve ter sido escrito quando ela tinha 22, e não 17 aninhos. Não que não seja uma obra precoce, mas nessa idade cinco anos fazem muita diferença. Fiquei imaginando a razão da discrepância, e só pude aventar uma hipótese: durante algum período de sua vida, Clarice mentiu a idade. Cinco anos é uma mentira clássica. Viável e significativa. Clarice era uma mulher muito bonita, retratada por Portinari e De Chirico. Quanto mais bonita, mais vaidosa é a mulher. Devia quebrar muitos corações de poeta por aí. Separou-se aos 39 anos. O medo dos quarenta, solteira, deve tê-la feito retroagir. Mulheres mentem por esporte, mesmo quando não é preciso.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Uivando pra lua?


Chama a carrocinha.

















Foto: Bill Smith

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Mulheres...

Acabei a “História do Cerco de Lisboa”, do Saramago, que além de discutir a própria formação de Portugal, um plano no passado e outro no presente, contém uma original história de amor, do qual o cerco é também metáfora, como se vê da fala proferida por uma mulher: “Claro que estamos em guerra, e é guerra de sítio, cada um de nós cerca o outro e é cercado por ele, queremos deitar abaixo os muros do outro e continuar com os nossos, o amor será não haver mais barreiras, o amor é o fim do cerco”.

Aproveitando o gancho li “A cidade sitiada”, da misteriosa Clarice Lispector, na sua prosa poética e metafísica. Nós homens estamos sempre a dizer que é difícil, senão impossível, entender as mulheres. Tentar entender Clarice é entender porque é tão difícil entendê-las.

E ela faz as aves dizerem “Ah!”

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Bocca chiusa

“Bocca chiusa”, como todos sabem, é “boca fechada” em italiano. A criação da notação musical é comumente atribuída a um monge beneditino, Guido D’Arezzo, no século X. Não sei se vem daí a tradição do uso das indicações de interpretação em italiano, mas certamente vem do pioneirismo dos italianos na música formal. “Bocca chiusa” é a maneira de cantar de boca fechada, para a qual, em inglês se usa a palavra “humming”, que também é utilizada para zumbido. Em português, que eu saiba, não existe termo equivalente.

Lembro de uma aula na sexta série, em que enlouquecemos a professora de inglês “humming” em uníssono, como se fôssemos uma esquadrilha de bombardeiros. Conforme ela se aproximava, os que estavam próximos silenciavam, mas o resto da classe continuava. Saiu chorando da classe.

A técnica foi usada na revolta dos marinheiros que antecedeu o golpe de 64, liderada pelo sinistro cabo Anselmo. Os marinheiros cantando o “Cisne Branco” em bocca chiusa comoveram a tropa do exército que foi prendê-los, que acabou com eles se solidarizando.

Boca fechada não só não entra mosca, como também dá pra fazer muita coisa assim.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Big mouth strikes again

Perder a oportunidade de ficar calado é das piores sensações que existem. A certeza irracional de ter prejudicado a marcha natural e favorável dos acontecimentos vazando comentários sobre meras expectativas e possibilidades; pondo palavras não ditas na boca dos outros; proferindo afirmações categóricas; mencionando conhecidos comuns não existentes; julgando apressadamente os outros; cometendo citações capengas de memórias; contando piadas sem graça; comentários inadequados ao contexto, e tantas outras modalidades de excessos possíveis. A famosa incontinência verbal. Você sabe muito bem do que eu estou falando. Um dia, quando estivermos bebendo juntos, te conto tudo.

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

12,5% é muito?

Guido Boggiani, em “Os Caduveo”, questiona se essa tribo de artes refinadas, modo afetado de falar e complexas regras de etiqueta seria uma civilização em estágio ascendente ou estaria caminhando para a extinção. Aventa a possibilidade deles serem aparentados dos Incas andinos, o que demonstra com semelhanças nas artes, teoria não aceita pelos antropólogos posteriores. Conclui pelo declínio. É estranho um povo atingir um grau notável de desenvolvimento e não conquistar a escrita. A conseqüência é trágica. Uma geração problemática, sujeita a uma grande guerra, um êxodo ou uma epidemia, que acarrete uma falha na continuidade da transmissão oral pode por a perder uma enorme herança cultural, a própria identidade da nação. Outro dia, ao ler sobre a questão da demarcação das terras indígenas por ocasião da infeliz declaração do presidente da FUNAI, de terem sido dadas terras demais aos índios, fiquei pensando se os índios sabem realmente quem eles são, depois de quinhentos anos de esfrega genocida. Ou será que eles não se lembram mais? Ou têm que aprender quem são lendo as descrições antigas que fizeram os brancos?