quinta-feira, junho 30, 2005

O Stalker - Capítulo 12

Clarissa acordou cedo no sábado, da noite sem balada. Resolveu jogar tudo para o alto, e não estudar, como fazia em todo o seu tempo livre. Sabia que Penza iria acordar tarde como sempre, e aquela linda manhã era só sua. Pensou que seria bom correr no parque com Renato, que lhe parecia diurno e saudável, com seu cabelo cortadinho, seu raciocínio claro, aquelas roupas quase completamente caretas, e o carro bom. Não tinha o seu telefone, senão ligava. Tomou um yogurte com granola, um copo d’água, pegou um dos carros econômicos de uso comunitária no abrigo na frente da casa, feliz por não ter que negociar com os outros naquele momento de baixa prioridade, e saiu. Lá pelas nove e quinze já estava se alongando na cerca da quadra de basquete do parque Villa-Lobos, aonde alguns manos do Jaguaré estavam tomando posse do campo, jogando vinte e um. Vestia um boxer de tecido sintético com elástico, uma camiseta soltinha e curta de algodão, com um top esportivo por baixo. O cabelo estava preso por baixo do boné com a característica caveira da Med, adereço que causava um bom contraste com o resto, e impunha um puta respeito. Saiu trotando com uma passada leve e ritmada de bailarina, respirando profundamente e devagar, concentradíssima na análise dos processos metabólicos em curso, que conhecia tão bem. Não fazia nenhum barulho e ultrapassava os caminhantes sem que eles percebessem qualquer sinal de sua aproximação. Percorreu todo o circuito de asfalto, a ligação de concreto, disposta a ir até o fim daquela desagradável extensão cimentada, que parecia uma pista de pouso. Já aquecida, acelerou um pouco o ritmo, aumentou um pouco a passada, e sua velocidade quase dobrou. Quando chegou ao fim da pista, resolveu contornar os campões de futebol, para pegar um trecho de grama confortável para a corrida. Quando contornava a quina do segundo campo, ouviu gritarem o seu nome, com aquela empostação penetrante e alta das comunicações do futebol: Clarissa! A dupla sibilância foi quase um assobio. Virou sem parar, e reconheceu o inesquecível e marcante amigo cafajeste de Renato, o Wagnão, vestido com um uniforme espalhafatoso de futebol de várzea, a postos para o rachão. Achou que valia a pena o contato. Fez meia volta trotando o mais devagar possível, chegou até uns dois metros dele, e ficou trotando no lugar, para que não tivesse que cumprimentá-lo por qualquer meio que implicasse contato físico. Depois dos relinchos de parte a parte, “E aí, dando uma ralada?”... ... “Tá em forma hein garota”, Clarissa parou de trotar, abanou-se com a mão para mostrar que estava suada, ainda evitando preventivamente o contato físico, e disparou: “Você tem aí o telefone do Renato?”, sem nenhuma desculpa ou explicação. “Tenho aqui na minha sacola, na memória do telefoninho, peraí que eu vou pegar”. Pelejou um pouquinho para achar papel e caneta, mas não ia negar nada àquele piteuzinho. Na hora de entregar o papel, quando ele se aproximou ela fez menção de ir embora. Ele aproveitou o sinal para segurar-lhe o braço e dar-lhe um beijo meio babado entre o rosto e o pescoço, com estalo prolongado e tudo. “Tchau menina se cuida”, “valeu, Wagnão”, e até que não tinha sido tão mau assim. Apertou aquele papelzinho como se fosse uma nota de cem dólares, e retomou a corrida em ritmo mais acelerado do que antes, turbinada pela pequena emoção do encontro e as possibilidades em tese infinitas daquele número. Correu até completar cinqüenta minutos, alongou-se na cerca da quadra de basquete, onde dois times mistos de manos e minas jogavam, pegou o carrinho e foi embora, ouvindo uma rádio pop.

Em casa, completou o café-da-manhã dividindo o jornal com seus irmãos. Pegou o caderno de cultura e saiu meio de fininho, rápido, e trancou-se no banheiro. Fez dois cocôs bonitos, de bom tamanho, brilhantes e escuros, expelidos sem qualquer resíduo, e não pôde deixar de ter algum orgulho de seu estado físico e seu metabolismo perfeito. Ao entrar no banho contemplou os pentelhos ruivos, que iam do escuro ao cobre, abundantes e crescidos, e pensou que estava na hora de apará-los, embora os achasse bonitos assim. Jamais se depilaria com cêra ou rasparia com uma lâmina região de pele tão sensível, que não tinha qualquer poro saltado ou marca, fora a textura de sardas ininterruptas. No chuveiro estava se sentindo incrivelmente bem. Deixou o cabelo secar solto e vestiu uma roupa larga de fibras macias, com uma toalha nos ombros. Ligou para sua melhor amiga, que era sua colega do segundo grau, e combinaram de ir a uma exposição importante na Pinacoteca. Depois do físico, a mente. Queria se sentir bonita, saudável, inteligente e culta. Passearam entre as obras incompreensíveis, na luz zenital do átrio coberto de vidro, e se fotografaram com uma máquina digital, aproveitando o ambiente que lhes parecia cosmopolita e espiritual. Alexandra perguntou como ia o Penza, e Clarissa disse que estava tudo ótimo. Não quis mencionar seu novo interesse potencial por Renato. Talvez fossem almoçar hoje, mas não tinha nada combinado. No caminho de volta, já lá pelas duas da tarde, Penza ligou convidando-a para almoçar na casa de seus pais. Foram as duas. Os almoços de sábado da casa da famiglia Penzarotti eram divertidíssimos, cheios de irmãos, cunhados, tios e primos, que discutiam acaloradamente sobre tudo, em volta de uma farta mesa italiana regada a bom vinho, com direito a café expresso, licor, grappa e amaretto no final. Lá pelas cinco horas, Penza tinha que ir embora para ir passar o som no lugar onde ia tocar, que era um pouco longe, talvez nem voltasse para casa antes do show. Alexandra deixou Clarissa em casa e foi embora. Ficaram de se falar mais à noite para uma eventual balada, mas Alexandra não tinha a menor intenção de ir ver Penza tocar, de novo. Em casa, sua mãe fazia tricô vendo um clássico do cinema, e o seu pai lia um livro na varanda que dava para o jardim dos fundos. Seus irmãos não estavam. Subiu e ligou para Renato.

Quando o celular de Renato tocou no criado mudo de Fernanda, Renato não tinha a menor idéia de quem podia ser. A sessão de sexo selvagem não havia sido nada má, apesar de os dois estarem meio pesados do almoção, o que foi compensado pela animação provocada pelo meio excesso de álcool. Fernanda nesse momento estava debaixo do chuveiro, enquanto Renato ainda nu assistia qualquer coisa na tv. Qual não foi sua surpresa quando identificou a voz sorridente de Clarissa, sugerindo que se encontrassem de bicicleta na praça Conde de Barcelos, a meio caminho da casa dele e dela. “Já?” perguntou Renato. “Agora” respondeu Clarissa. Renato vestiu correndo a fatiota de falso skatista, ainda cheirando a sexo, entrou no banheiro e avisou Fernanda - cheia de creme rinse na cabeça e impossibilitada de qualquer reação - que ia dar uma volta de bike para queimar o excesso do almoço, e voltava em uma hora, uma hora e meia no máximo. Depois pegava as crianças, ou se ela quisesse podia ir antes dele voltar. “Leva o celular” ela disse, como última chance de o monitorar.

terça-feira, junho 28, 2005

O Stalker - Capítulo 11

A semi-desconfiança de Fernanda de que algo errado estava acontecendo com Renato tornou-se uma quase certeza, e ela começou a armar-se para a luta. Com uma criança e um bebê para criar, não ia dar mole para quem quer que fosse. Não havia espaço para lamentar-se ou sentir-se rejeitada. Aquele filha da puta não merecia sequer um suspiro. Ela ouviu perfeitamente ele sussurando ao telefone, e percebeu que desligou apressadamente quando ela apareceu. Só podia ser mulher. Ou homem, só faltava o escroto ter virado viado, daí que ela ia encher ele de porrada mesmo. Seu estado de espírito era de carcereira americana em prisão iraqueana, de cassetete e coleira. Por fora era a lady de sempre, calma, feminina e ponderada. O seu plano iniciava-se com uma estratégia simples: marcação cerrada homem a homem e por zona. Afinal, como dizia sua avó, a ocasião faz o ladrão.

Sábado de manhã, quando Renato veio com o papo da bicicleta, ela opôs uma impossibilidade incontornável, planejadinha. Tinha depilação marcada no clube, e a Maria ia cedo para casa. Ela tinha pensado que tudo daria certo se ele fosse fazer bicicleta ou esteira no clube, e depois pegasse uma piscina com o mais velho, enquanto ela ficaria com o bebê no cabelereiro. Como recusar cooperação à sua mulher justamente para ela ficar bonita para o marido, para dizer o menos. Um clinche misturado a uma promessa erótica. Que pegada, garota! Renato ainda não desconfiava que estava monitorado. Depois, falando ao celular no trono, Fernanda deixou cair o dito na água, fez aquele escândalo, chorou dizendo que tinha um milhão de pessoas para falar, inclusive para a mãe dela avisando que não iam almoçar lá naquele dia. Ouvindo essa última frase Renato, por reflexo, ofereceu imediatamente o seu telefone, e partiram para o clube, com todo aquele complexo equipamento que o bebê exige, parecendo uma expedição antártica.

O poder de improvisação de Fernanda era admirável. Manipulava de ouvido, uma Mozart de saias. No caminho ligou para sua mãe, ratazana da mesma laia, e falava para Renato ouvir como se estivesse repetindo o que sua mãe dizia. Na verdade eram instruções em código. “Ah, quer dizer que o papai que ver os netinhos, e que se nós não formos almoçar tudo bem? Como, comprou um quadrado para o Rodrigo? Pegou aquele filme de karatê que o Renatinho gosta? Tá bom, lá pelo meio-dia e meia a gente passa aí.” Desligou e falou para Renato: “Vamos naquela churrascaria Argentina que você vive querendo ir? Vamos aproveitar amor.” São Renato chegou a achar que a esmola era demais, mas como esses planos superavam em muito sua expectativa para um sábado médio, entregou-se fácil aos prazeres obrigatórios do casamento.

No clube, Renatinho se entreteve com o vídeo-game portátil enquanto seu pai esfalfava-se correndo na esteira, ao lado de uma senhora visivelmente enojada com o suor que dele espirrava. Depois, tomou uma ducha e foram para a piscina. Lá encontrou seus amigos vagabundos, e ficaram ranqueando a mulherada que estava na piscina: “aquela de bikini preto eu comia, aquela lá, deitada, claro, aquela morena, sem dúvida, aquela... em último caso.” O tempo passou voando, e foram deixar as crianças na casa da mãe da Fernanda. O último arranque, carregando aquele monte de tralha pelo elevador, aquele papinho furado interminável, a sogra um pouco mais simpática do que de costume, e finalmente livres de avós e netos. O verdadeiro e famoso enfim sós. Renato estava vendido, não tinha ação, e resolveu relaxar. A coisa estava encaminhada e ele agora nada podia fazer.

No restaurante, Fernanda teve uma vontade súbita de tomar uma caipirinha antes do almoço, o que nunca fazia, e desafiou Renato a comer morcijas e chincholins de entrada. Não sugeriu que dividissem um prato, “para que comer tanto, só engorda e custa caro”, e não falou que uma garrafa de vinho só para dois era demais. Depois do almoço ótimo, alegou uma vontade irresistível de descansar, mas com a firme intenção de mostrar a Renato com quantos paus se faz uma canoa. Ia ser barba, cabelo e bigode.


O Stalker - Capítulo 10

O fato é que Renato e Clarissa tornaram-se comparsas, e para selar a ligação Clarissa outorgou-lhe o segredo do seu telefone, de casa e o celular, e disse-lhe que ligasse. Ou seja, queria ouvir a sua cantada. Renato estava nas nuvens. Ouvir a sua voz, suas risadas, falar um monte de bobagem e não dizer nada, grandes expectativas. Mas tinha que esperar até a noite. Passou o dia ouvindo o último dos barrocos e lendo o último dos barrocos, e achou que se sentia como o alegre Werther quando descobriu que era correspondido por Carlota. Sentiu ímpetos de abrir a sempre lacrada janela da sua sala que dá para a Avenida Paulista e gritar mais alto que os ônibus e o tráfego o nome de Clarissa, assim como Tarzã no alto da árvore, ou do penhasco, mas lembrou que era clandestino. E além do mais seria ridículo. Ligou às sete da noite, do escritório. Atendeu uma senhora com sotaque estrangeiro, educada e simpática, com recatada reserva, e disse que Clarissa chegaria só às oito e meia. Renato sentiu-se um facínora, corruptor de virgens indefesas. O que a mãe de Clarissa pensaria dele, casado e pai de dois filhos, querendo sua filhinha mal saída da adolescência. Teve que ir para casa, pois Fernanda não toleraria mais um atraso. Chegando lá, quando ela foi por as crianças para dormir, ligou para Clarissa do terracinho do apartamento. De novo atende a mãe de Clarissa. “Ah, Renato, o amigo da aula de inglês que ligou agora há pouco, um momento que vou ver se Clarissa pode atender”. Podia, e a conversa sobre nada fluiu solta como a de dois adolescentes. Renato falava baixo e próximo do bocal, para não ser ouvido, o que dava um tom íntimo à conversa. Falaram sobre os micos do dia, e Clarissa contou como escorregou e caiu de bunda em plena Cardeal Arcoverde. Trocaram informações, e Renato preferiu se esquivar da fixação de sua idade. Quanto aos compromissos, se Renato sabia que ela tinha namorado, e ambos os dois não estavam nem aí, porque ela perguntaria? Renato percebeu que Fernanda encerrara as funções e vinha atrás dele. Deu um jeito de desligar, rápido.

Foram jantar, e Renato não conseguir fingir perceber que ela existia. Estava distraído, e não acompanhava sua descrição dos fatos do dia, as pequenas vicissitudes do trabalho na loja e com as crianças. Tudo aquilo que o interessara muitíssimo na conversa com Clarissa, em Fernanda não conseguia se concentrar, não que não estivesse tentando. Mas todos os departamentos do seu cérebro estavam tomados por Clarissa, todas as salas do seu palácio da memória estavam sendo lotadas e abarrotadas por informações hauridas do corpo e da mente de Clarissa, e esse processo demandava uma certa meditação para organizar os dados. Ao deitar-se ao lado de Fernanda para dormir, sentiu-se miserável, como Montgomery Cliff em “Um lugar ao sol”, amarrado à choraminguenta Shelley Winters e um mais choraminguento bebê, enquanto Elizabeth Taylor, em seus melhores dias, dava-lhe o maior mole em uma cabana de verão num lago. Levantou-se e foi sonhar acordado na sala. Gravou um CD, com algumas de suas músicas preferidas, que estavam ali à mão. Clarissa depois discordou um pouco do repertório, mas encantou-se com “you go on in your own sweet way”, lentíssima balada country tocada com guitarra havaiana, bateria de escovinha, órgão e contrabaixo rabecão, de um cowboy admirado da impossibilidade de influenciar o rumo de uma certa mulher: “you can lead a horse to water, but you can’t make him drink”.

“Tão perto e tão longe, e o que Clarissa vai pensar quando souber que tenho mulher e dois filhos?” perguntava Renato aos seus botões. “Como resolver esse impasse? Claro que não vou jogar fora um casamento legal desses, com dois filhões felizes, sem saber o que virá por aí com Clarissa, se é que haverá Clarissa”. Renato concluiu que estava pensando como uma mulher. Trairia Fernanda mesmo, não havia outro jeito. Tinha que experimentar. “E Clarissa?” Na hora certa entenderia a racionalidade e o imperativo da decisão, única possível em função do verdadeiro amor (Renato ainda achava ridículo usar essa palavra, e pior ainda com o adjetivo). O ruído branco da culpa que zumbia no fundo de sua cachola perturbada aumentou um ponto.

Clarissa por seu lado estava achando tudo ótimo. A conversa tinha sido uma delícia e prometia tudo. Interpretou o seu fim abrupto como uma mostra do caráter decidido dele. Valia a pena estudar a alternativa Renato, que caíra do céu sem qualquer relação com o resto do seu mundo. E ainda tinha Penza, o melhor namorado de todos. Quem sabe se Renato não poderia ser melhor ainda? Não chegaram a combinar nada, ainda bem, porque ela não saberia o que responder. E teria que ser não. “Onde já se viu, eu tenho namorado!”. Brava consigo mesma, foi deitar, e dormiu imediatamente, depois da longa toalete que fazem as mulheres, com um olho na televisão e outro no msn. Nada de balada hoje. Penza a tinha convidado para vê-lo tocar, num bar de hotel, pela milésima vez. Lá tinha um pouco a sensação de ser a dependente de um serviçal abaixo dos garçons. Claro que era só encanação dela.

Renato ainda não conseguia dormir, e foi ver tv , e depois de zapear um pouco parou numa dessas séries de pronto-socorro do canal a cabo. Imaginou Clarissa salvando vidas, a sua, e trepar com ela numa daquelas camonas altas de hospital, atrás daquelas cortininhas. Tinha perdido a oportunidade evidente de marcar alguma coisa com ela. Será que ela ia achar que ele era lento? No sábado teria que agir.

domingo, junho 26, 2005

O Stalker - Capítulo 9

Clarissa e Penza saindo do hamburguer medonho tiveram uma pequena altercação. Penza estava se achando depois da farra do show. Aquilo deixa qualquer um louco. Estava com o ego inflado do artista depois do aplauso no palco. É claro que ele queria sexo. Clarissa tinha achado legal, mas também não era nada assim para viajar. Para não dizer que ela achava aquilo um disparate, do ponto de vista comercial. E pôs o cd do Jack Johnson. Penza tomou para o pessoal. “É isso que você gosta, né, tinha esquecido” tentando ser sarcástico. Clarissa não disse nada. Penza percebeu que se ele quisesse sexo aquela noite, ele ia ter que ser mais cuidadoso. “Depois da nossa barulheira cai bem”, e pôs o carro no caminho da sua casa. Clarissa percebeu e reagiu na hora. “Penza, eu tenho que acordar cedo amanhã”. Daí em Penza baixou o palhaço, o galã, o poeta, o filósofo, o artista, o político, o advogado, o demônio, e fez todas as micagens e truques que estavam ao seu alcance, para arrastar Clarissa para cama. É claro que conseguiu. Ele estava bem aquela noite.

Renato, em casa, estava com cara de cu. O celular esquecido no carro, tocando até ficar sem bateria, e ainda a necessária martelada na história do futebol, de pernas curtíssimas, dizendo que o Wagnão tinha enfeitado o lance, que eram ingressos comuns, mas daí foram tomar umas depois do jogo. Fernanda achou melhor assimilar. Não tinha um verdadeiro motivo para desconfiar de nada, mas uma pulga instalou-se atrás da sua orelha, e começou a chupar-lhe o sangue. A doença do bebê era pura rotina, mas Renato prestou-lhe as homenagens pela qualidade da interpretação da Pietá. Renato relaxou, e vendo que a coisa parava por ali, livrou-se da culpa e da vergonha, e ofereceu-se para ficar com a criança para que Fernanda fosse dormir. Sentou na cadeira de balanço, que era usada para amamentação, com Rodrigo no colo, e pôs-se a sonhar acordado, balançando ao sabor da mini-saia de Clarissa. Tinha dado um passo. Provavelmente em direção ao abismo, pensou , e não pode conter uma meia risada.

Penza morava numa casa, como todos os seres barulhentos destinados a incomodar os vizinhos. Era uma casa em Pinheiros, num lugar não muito legal, numa ruazinha lá perto da Paes Leme. Reformada, foi dividida basicamente em duas partes. Um estúdio, que também era a sala de estar, com uma cozinha simples misturada com a técnica, e o quarto e o banheiro, no andar de cima. Era um bunkerzinho com portão eletrônico, parecia uma garagem de motel. Penza tinha vencido Clarissa só pela insistência. Ela não estava a fim de dar. Preocupada em voltar para casa, deitar numa cama no fim da noite, para depois ter que levantar? Ela preferiu ir logo para cima de Penza, e rapidamente, pá, camisinha, um, dois e Penza já tinha ido, e ela o fez se vestir e levá-la logo para casa. No escuro do carro ela sorria, pensando que também era um tesão fazer o cara gozar. Pussy power. Tocava um Miles Davis noturno, talvez o “Kind of Blue”.

Renato teve que tomar uma aspirina de manhã, e um pouco, pouquíssimo, um fio daquela culpa misturada com vergonha voltou, e passou a fazer parte do ruído branco da sua mente desde então. Fez o balanço da noite anterior e achou que tinha mandado bem. Agora, fazia parte do círculo social de Clarissa. Periférico, desvinculado de uma rede verdadeira, mas já um plano acima do colega da aula de inglês. Tinham vivido uma balada juntos, quer dizer, na mesma barca, e tinha sido legal. Estava impressionado também com o fato de ninguém ter perguntado quem ele era, de onde tinha surgido ele e tampouco quanto ao muito mais extravagante Wagnão, e lembrou do desprendimento dos jovens quanto a essas questões. Estava saboreando o gosto da aventura, que já tinha o próximo episódio engatilhado. A aula da noite.

Clarissa depois de mais um dia enfiada entre as misérias do corpo humano, foi para a escola de inglês decidida a passar um pente fino em Renato. Quem era aquele cara, que aparentava uns trinta, mas podia ter até uns vinte e seis, vinte e sete, que era assim bem proporcionado, para não dizer gostoso, e transpirava equilíbrio e conforto físico e material? E ainda era inteligente. Porque aquele cara estava pagando tanto pau para ela, ainda que de forma discreta, mas evidente? O cara está chegando muito perto de mim, muito rápido. Ele não se manca? Não vê que eu tenho um namorado? Clarissa estava acostumada a ser cobiçada por todos os homens com quem se relacionava. Em algum grau, sempre havia ao menos uma ponta de interesse erótico perceptível. É a carga da juventude feminina, levantar todos os paus por onde passa. Mas Clarissa pressentia que Renato queria alguma coisa mais, e ela queria saber o que.

Na aula de inglês Clarissa e Renato se comportaram como velhos amigos. Baixaram a guarda e não se preocuparam e ocultar um do outro o interesse mútuo, e estabeleceu-se uma ligação. Para Clarissa, sem direção ou objetivo. Para Renato também. Embora estivesse totalmente siderado por Clarisse, essa ligação de conversas e risadas era tudo o que ele queria e precisava no momento. Tinha que tomar muito cuidado. Afinal, aquela era a mulher da sua vida, sua Beatrice, e ele queria tudo. Voltando para casa, sentiu que a janela para o paraíso estava aberta, e tudo havia de ser astronômicamente calculado.

O Stalker - Capítulo 8

Antes de sair, com as coordenadas do convite Renato deu uma pesquisada na vida de Marcelo Penzarotti. Em meia-hora descobriu que tinha vinte e dois anos, era filho de um dos irmãos sócios de uma conceituada fábrica de mortadela, que estivera em dificuldades e endividada com bancos, até ser vendida a um gigante internacional do ramo de alimentos. O pai de Marcelo era bastante rico. Descobriu também, que Penza tinha estudado na Berkelee, em Boston, e tinha uma incipiente carreira de músico em conjuntos que tocavam de jazz à salsa, e alguns créditos por participações em álbuns instrumentais semi-independentes. Em uma busca conjunta com o nome de Clarissa, descobriu que os dois tinham estudado na mesma escola, contemporâneos com dois anos de diferença. Más notícias. O cara tem boas credenciais e um vínculo atávico com Clarissa.

Atrasou-se um pouco, e sete e meia, quando chegou no Valadares estava morrendo de fome, já tinha vencido o grelhado com salada do almoço, e encontrou Wagnão numa mesa inclinada na calçada, com mais dois caras. Foi cumprimentando rapidamente os três e sentando, e logo pegou o que parecia um ovinho de codorna empanado numa travessinha de inox engordurada, e enfiou na boca, mordeu e aquilo era pegajoso e borrachento e o sabor, o sabor tinha alguma parecença com um cheiro conhecido, perguntou com a boca cheia o que é isso e os três caíram na gargalhada depois de Wagnão avisar que era testículo de galo. Aquele gosto era de porra! Renato ficou bastante enojado, quase nauseado e começou a suplicar com gestos um copo pra lavar a boca com cerveja enquanto tentava mastigar aquele troço, e drenou um copinho americano de um gole só. Depois de mais três cervejas em quatro, Renato achou que esse ritual de virilidade era adequado para a ocasião e pediu mais uma porção de testículos de galo e de boi, que, comendo quentinho e acompanhado de grandes goles de cerveja até que não era nada mal. Além de Wagnão, compunham a mesa um advogado tributarista ensebado, com cara de comprador de fiscal, e um comerciante de veículos usados ali da área, possivelmente um receptador, ou fraudador de seguros.

Durante quase uma hora e meia ficaram ali tomando cerveja e comendo testículos, falando de mulher e putaria e dando altas gargalhadas. Renato se sentiu um deles, e não gostou muito, mas por outro lado, a incorporação do cafajeste escroto era uma boa atitude para efeito do ataque haveria de fazer, corajoso e macho que estava, graças ao álcool da cerveja e os testículos. Lembrou Nietzsche afirmando que você é aquilo que come, traçando paralelos entre a alimentação de um povo e sua filosofia e cultura. Ali, comendo a comida do cafajeste escroto, junto aos cafajestes escrotos, ele era um cafajeste escroto. Apontou o relógio, pagou sua parte na conta com uma estimativa de sobra, chamou Wagnão e foram para o Sesc Pompéia, no seu carro, para não ter que vir buscar depois. Fumaram o baseado no caminho, largaram o carro no estacionamento e foram para a porta do teatro, lá no fundo da antiga fábrica. O lugar estava cheio de gente, um grupo totalmente heterogêneo e aos poucos era possível ir distinguindo as ligações do público com cada parte da banda, pelos sinais distintivos de cada tribo.

Lá dentro do teatro em forma de “v”, se visto em corte lateral, com o palco entre as duas pernas do “v”, só um dos lados da platéia estava ocupado. O lado oposto da platéia depois do palco estava fechado com uma lona. Mas a metade disponível estava bastante cheia. Renato subiu para a galeria, um longo corredor que parte do fundo do teatro na altura da última cadeira, passa pelo palco e vai até o fundo do outro lado da platéia, indo pelo lado mais perto da entrada e conseguiu chegar até o lugar acima do palco. Sentou-se num grande banco de madeira, debruçou-se no guarda-corpos, do lado de alguns canhões de iluminação. Estava praticamente suspenso sobre o palco. Começou a procurar Clarissa, mas não encontrou.

A luz da platéia apagou e um funcionário do Sesc descreveu sucintamente o projeto e a banda, e os músicos entraram, tomando seus lugares. Começaram tocando um groove funky ao estilo James Brown um pouco desacelerado muito bem tocado, intercalando comentários dos metais com harmonias vocais sem letra das meninas cantoras que faziam aquela dancinha caracteristica. Do lugar onde estava, Renato só tinha para ouvir o som do palco, pois estava atrás dos PAs voltados para a platéia. Penza fazia sua parte com discrição, estilo e competência. Um sujeito, possivelmente o mentor do projeto, com um sinal reduziu o volume da banda e apresentou o primeiro rapper, que entrou e falou suas rimas. Renato não acompanhou-lhe o raciocínio, mas o efeito geral agradava. Escrutinou mais uma vez o teatro, e às tantas viu Clarissa, linda de mini-saia e o cabelo comprido e ondulado solto, dançando no canto da platéia junto ao palco, do lado oposto de onde estava, com mais alguns mais animados. Não era o caso de ir até lá, pois não pretendia dançar. No segundo número, os dançantes, aumentados de número, começaram a ficar em frente a platéia, e alguns comerciários aposentados caídos de pára-quedas no espetáculo começaram a reclamar. Mas o som, de lento balanço dançante, e as palavras de ordem dos rappers empolgaram a audiência, que logo tomou conta de todo o espaço em frente ao palco, inutilizando as quatro ou cinco primeiras filas. Criada a situação de dança, Renato levantou e desceu até lá. Desinibido como estava, cumprimentou Clarissa, que parou de dançar, com um beijo, e ela foi bastante receptiva e simpática. Falou qualquer coisa sobre não ouvir direito do lugar onde estava, gritando e possivelmente não sendo ouvido. Voltaram sua atenção para o show, e Renato, para poder ficar por ali, começou a fazer o passo básico dos Jackson Five, imitando a coreografia das backing-vocals. Percebeu que estava na claque dos amigos da banda, e achou que ali era um bom lugar. Dominado pela música, deixou-se levar pelo ritmo e a dança, bastante a vontade. Até uma morena alta começou a brincar com ele, e assim foram até o fim, que foi com um Jorge Benjor cantado por uma das meninas, com participação apoteótica dos músicos da escola de samba. Apesar dos pedidos, não houve bis, e aí teve a oportunidade de conversar com Clarissa, que o apresentou a algumas pessoas que estavam por ali, inclusive a morena alta. O teatro foi se esvaziando, e o grupo onde estava Renato e Clarissa entrou para os camarins. Lá, na sala central, havia algumas garrafas de vodka e uísque, refrigerantes em embalagem de dois litros, e um monte de gente. Renato serviu-se de uma vodka com coca-cola, e estava procurando Clarissa, quando encontrou Wagnão conversando com uma das meninas cantoras, que o conhecia de outras paradas, como ele disse ao apresentá-lo. Quando viu, estava numa rodinha puxada por Wagnão para fumar um baseado no camarim das meninas. Penza e Clarissa estavam lá também. Clarissa não fumou. Logo vieram fechar o teatro e foram todos comer um medonho hamburguer num lugar ali perto. Renato por duas ou três vezes conseguiu conversas curtas com Clarissa, e conseguiu arrancar-lhe algumas risadas. Deixou claro o seu interesse com olhares e sorrisos.

Quando chegou em casa, por volta da uma hora, Fernanda estava acordada com olheiras, fazendo o tipo esposa abandonada com o bebê doente. Renato sentiu vergonha e culpa.

sábado, junho 25, 2005

O Stalker - Capítulo 7

Renato chegou em casa cedo, a tempo de tomar um banho e ir com o cabelo já seco para a aula. Nu no banheiro, constatou que os efeitos do programa intensivo de esportes e a dieta já eram perceptíveis. Estava com todos os músculos do corpo um pouco doloridos, nada incômodo, apenas denotando o trabalho feito. Assimilou o reforço positivo e reafirmou mentalmente seus propósitos de conquista e libertação, para os quais a boa forma era requisito. A única extravagância alimentar que pretendia se permitir era o álcool moderado e estratégico. No chuveiro lembrou da noite anterior e masturbou-se objetivamente substituindo Fernanda por Clarissa.

Quinze minutos antes da aula estava lá, preparadíssimo pois queria se mostrar inteligente, já sentado na carteira folheando o material. Chegaram dois dos três universitários, uma das donas de casa, e a conversinha besta não tinha ainda começado quando entrou Clarissa. Cumprimenta todos com um misto de acenos de cabeça e ois, retribuídos da mesma forma, e senta ao lado de Renato, que imediatamente começa a comentar da lição, o texto sobre a linha sucessória da coroa inglesa, e o bizarro da existência de privilégios feudais ainda hoje, e como é incrível que funcione razoavelmente bem e a estranha idolatria que os ingleses têm pela família real. “Opa estou falando demais” pensou Renato, e assim que ficou quieto Clarissa disse: “Ei, o que você vai fazer amanhã a noite?”.

Renato, como que fulminado por um raio, ficou atarantado e balançou a cabeça, e estava respondendo “nada” apenas com uma expressão perplexa misturada com um esgar de desprogramação, quando entrou Mr. King, good evening, e iniciou a aula sem perder um segundo. Todos os alunos já tinham chegado e Renato nem notara a chegada dos últimos. Clarissa tocou de leve no braço de Renato e fez um sinal de “depois nos falamos” e os dois desempenharam com eficiência quase competitiva o papel de alunos. Renato flutuava na cadeira, tentando afastar a tentação de que a pergunta tivesse qualquer implicação amorosa. Tentou ser pessimista: vai recomendar um programa na tv, me convidar para um culto evangélico na igreja do seu marido pastor, está procurando voluntários para distribuir sopão para os mendigos do centro, até que não seria tão mal, vai vender ingressos para a quermesse da igreja, e assim passaram lentamente os quarenta e cinco minutos da aula, até que Mr. King anunciou o coffee break. Ficou fácil para Renato, sentado ao lado de Clarissa e com um assunto interrompido, sincronizar seus movimentos com os dela enquanto se encaminhavam ao balcão de café, no saguão. Clarissa emendou, “é que o meu namorado, que é músico, vai tocar amanhã num projeto novo, super legal, no Sesc Pompéia, que mistura uma banda de jazz, que estará tocando funk, com uns rappers da zona leste, umas cantoras de um conjunto vocal de black music, tipo rouge, sabe, e um grupo de percussão de uns caras da bateria da Vai-vai, e como é uma coisa nova e teve uns problemas na divulgação, tá todo mundo distribuindo convites, mas só pra quem vai mesmo”. Renato lembrou do case de guitarra no Frevo, e se admirou de não ter pensado nessa possibilidade. Para prolongar a conversa, perguntou que apito tocava o namorado, quem tinha organizado essa coisa tão interessante, e apostava que ia ser super legal, e ela deu aquelas respostas de press-release e lhe entregou dois convites, para ele e para namorada dele ou um amigo, dando uma risadinha, haha, significando talvez “se você for gay tudo bem”, o que deixou Renato levemente irritado. Clarissa se afastou e foi captar platéia para o Penza com os outros alunos. Ficou na dúvida se não devia ter recusado para não se mostrar fácil e manipulável, mas teria sido impossível. O cara estaria no palco, e ele na platéia com ela.

No dia seguinte de manhã no escritório Renato ficou pensando com quem ele iria, e como despistaria Fernanda, que muito provavelmente toparia o programa, e sua mãe ficaria com as crianças. Abriu o jornal, e viu que teria jogo de futebol aquela noite, do seu time. O problema é que nunca ia ao estádio. Mas não tinha outro jeito. Ligou para a loja onde Fernanda trabalhava, uma loja de roupas femininas caras no Shopping Iguatemi, inventou que o “Wagnão, lembra do Wagnão” tinha arranjado uns ingressos vip, que ia ter acesso ao gramado, vestiários, tudo, e ela, que se impressionava com essas coisas, sentiu a hierarquia de prioridades e consentiu, não sem antes reclamar que “o Wagnão não dá nem para chegar perto, o cara é muito brega, faz o favor de não combinar de sair pra jantar com ele nem trazer em casa”. Renato desligou se sentindo muito esperto, e começou a dar tratos à bola de quem iria chamar para ir ao show com ele. Não podia convidar seus amigos oficiais, que iam achar esquisito sair assim sozinhos dois homens para ir num show esquisito no Sesc Pompéia, no meio da semana, e Renato não queria abrir seus planos para ninguém. Achava pouco provável encontrar algum conhecido nesse evento obscuro, e a operação poderia ser classificada como de baixo risco. Não queria ir sozinho pois ia parecer esquisito. Infelizmente não conseguiu pensar em ninguém que não fosse o Wagnão, que muito provavelmente iria. Tinha a vantagem de ser estranho ao seu círculo social e portanto não comentaria com ninguém, e ainda com certeza levaria um baseado, que tornaria a banda, provavelmente péssima, suportável. Entrar no clima e parecer estar se divertindo era importante.

Ligou para o celular do Wagnão, contou que ganhara os ingressos de uma gatinha, que ia ter um monte de mulher, que era um puta som e coisa e tal. Wagnão sentiu que Renato não falava toda a verdade, mas a ligação com o playba era importante para ele, e topou na hora. Combinaram de se encontrarem no tradicional boteco Valadares, ali pertinho, por volta das sete, para tomar uma cerveja antes e beliscarem alguma coisa, e por a conversa em dia. Renato desligou o telefone satisfeito pensando como o acaso estava lhe sendo favorável, e como estava aproveitando bem as oportunidades. Chegou a passar por sua cabeça que sua união com Clarissa estava programada por forças superiores, mas afastou a idéia pois era racionalmente cético e agnóstico.

sexta-feira, junho 24, 2005

O Stalker - Capítulo 6

Renato ali no fundo do páteo, camuflado contra a parede cinza, depois que Clarissa subiu para a aula, caiu em si do absurdo que estava fazendo. "Porra, caralho, porque catzo eu, macaco velho, bem situado na vida, estou aqui dando uma de tarado atrás de uma menininha que nem é tudo isso. Alguma coisa está acontecendo comigo. Acho encosto uma puta bobagem, tenho certeza que não estou sujeito a alucinações de nenhuma espécie, no pleno gozo de minhas faculdades mentais. Algum processo está acontecendo, em algum ponto fraco do meu corpo/mente." Continuava constatando um estado alterado, uma vibração e uma alteração de temperatura que atingia toda a sua epiderme na parte voltada em concha para o andar superior aonde se dirigira Clarissa. Era uma sensação de verdadeira abdução, acompanhada de uma pau-durência que fazia o seu pinto desenrolar-se dentro da samba-canção e elevar-se na calça espaçosa em direção ao local aonde se devia estar Clarissa. Pura vontade de agarrar, beijar, encoxar, fazer cócegas, arrancar a roupa , beijar, apalpar, apertar, lamber, chupar e falar um monte de cagada, meter, dar um monte de risada, e estabelecer uma infinita confiança com Clarissa. Uma ligação verdadeira e íntima.

Era uma certeza clara e objetiva. Mas, e a realidade? Renato sentiu que alguma coisa desconhecida e nova se apoderara dele, e a primeira hipótese que lhe veio à mente foi a de estar apaixonado, subjugado, escravizado, por uma certa gostosa. Pela intensidade, de ser vítima de um verdadeiro amor, se é que tal entidade cafona e brega realmente pudesse existir no planeta onde vivia. Nenhuma outra hipótese se apresentou. O último resquício de racionalidade disponível sugeriu a Renato estudar o assunto. E, a primeira coisa que lhe veio à mente foi o pai de todos, “Os sofrimentos do jovem Werther”, de Goethe. Na volta, levitando dentro do que lhe sobrara do terno espandongado e do sapato lanhado da maratona corrida naquele ambiente agressivo e sujo, entrou na Livraria Cultura para armar-se da experiência dos seus ancestrais de como enfrentar o dragão desconhecido que o dominara. O último tempero desse caldo de transporte e loucura que cozinhava Renato era a novidade de um estado alterado jamais experimentado, uma consistente e intransmissível alegria.

Renato topou primeiro com um tratado que lhe pareceu mais direto e prático, que lhe permitiria examinar a estrutura do estranho estado em que se encontrava, por um autor de grande autoridade na época em que esse tipo de intensidade foi inventado, a partir de casos trágicos como o do pobre Werther. “Do Amor”, de Sthendal. Em sua sede de saber, depois de passar pelo caixa sem dar espaço sequer para o questionamento da caixa da estranheza da aquisição, visivelmente utilitária, Renato ganhou a avenida e foi lendo pelo caminho. O índice apontou o capítulo XXIII, “das paixões fulminantes”, e Renato sentiu encaixar-se a primeira frase em seu cérebro como uma peça de quebra-cabeças, como uma enzima e sua proteína favorita: “Seria preciso mudar esse nome ridículo; no entanto, a coisa existe.” Uma dupla libertação. Não estava louco, era um processo normal, e a qualificação do estado era de fato constrangedora: Renato sofria de uma paixão fulminante. Não, não, não. Esse fenômeno era descrito só para mulheres, e decorria de uma predisposição. Quando o predisposto se apresentasse, correspondendo a uma expectativa já desenhada na mente da apaixonada, o violentíssimo processo era deflagrado, e o estado degradante se instalava. Renato não conseguia imaginar qualquer idealização anterior do amor verdadeiro por um certo modelo de mulher que pudesse fundamentar o conceito de Sthendal, que além disso era só para mulheres.

Não, não, não, não era nada disso, e irritado quase jogou o livro em uma lixeira na esquina da Alameda Rocha Azevedo. Sua confusão era total. Chegando ao escritório, a primeira coisa que fez foi entrar no banheiro, baixar as calças e tocar uma bronha, ali, de pé, aproveitando a loucura gerada pela visão de Clarissa no bebedouro, pura vontade de agarrar, beijar, encoxar, fazer cócegas, arrancar a roupa , beijar, apalpar, apertar, lamber, chupar e falar um monte de cagada, meter, dar um monte de risada. Percebeu que precisava de um plano não apenas para ver Clarissa, mas para criar uma oportunidade para que o seu coração puro, o seu verdadeiro amor, e o seu espírito elevado e divertido capturassem o coração de Clarissa assim como o seu havia sido limpo e fatiado. Depois se separaria da Fernanda.

Fernanda, assim que Renato entrou no apartamento aquela noite, percebeu que havia algo de diferente nele. Estava elétrico, agitado, parecia ter cheirado cocaína, o que ela sabia ser pouco provável, pois não era um hábito seu. Ele estava dominado pela obssessão de traçar um plano eficiente e inexorável que traria Clarissa para os seus braços. Fernanda não via nada disso, mas do jeito que ele a olhou, percebeu que se quisesse, haveria sexo aquela noite. Renato, bastante estupidificado, raciocinou que precisava estar afiadíssimo em sexo para a eventualidade de lograr seu sonhador e irreal intento, e assim, entrou no ringue para a luta tantas vezes repetida com a intenção de fazer Fernanda voar por cima das cordas e grudar no teto. Renato abriu um vinho bom, telegrafando com todas as letras que era uma noite especial, e, assim que as crianças dormiram - e ele sabia que não tinham muito tempo até que um deles acordasse - partiu para a ação, determinado a fazer Fernanda lhe ensinar tudo o que faltava aprender sobre o que de comum havia nas mulheres, se é que tal conhecimento pudesse ser ensinado. Estimulou-a a falar do que gostava, pediu para ver como ela se masturbava, tentando decorar a longa rota de círculos, ritmos e aproximações, ofereceu seu pau como instrumento para essa divertida tarefa, o que ela fez demoradamente, até exigir que ele enfiasse, e bombasse com força, e tirasse para que ela brincasse com ele fora de novo, e depois enfiasse novamente, e bombasse, e repetiram tudo várias vezes, até que ela gozasse. Depois, pediu que ela ficasse de quatro e mandou com violência e velocidade naquela confortável posição até ejacular, o que não demorou muito. Logo o bebê começou a chorar.

quarta-feira, junho 22, 2005

O Stalker - Capítulo 5

O plano brotou naturalmente durante o banho, segunda de manhã. "Óbvio! Saio do escritório um pouco antes do meio-dia, caminho pelo agradável plano da Paulista, naquelas largas calçadas cheias de gente, como um sanduba, dou uma olhada na Cultura do Conjunto Nacional, e vou procurar Clarissa na saída da faculdade." Vestiu um terno, pensando que Clarissa só o vira duas vezes, e assim, fora do contexto, de óculos escuros, não havia a menor possibilidade de reconhecê-lo. A distância era um pouco maior do que calculara mentalmente, e teve que apressar o passo e não parar pelo caminho, como chapeuzinho devia ter feito. A faculdade de medicina era lá na Dr. Arnaldo, depois do esqueleto do hospital da mulher. "Foda-se volto de taxi". Chegou e encontrou uma turba de jalecos brancos e fichários, e percebeu que não havia muita margem para ele estacionar por ali. Pensou em comprar uma pipoca, fingir que falava ao celular, iniciar uma pregação evangélica, quando viu uma ovelha desgarrar-se do rebanho e atirar-se Teodoro Sampaio abaixo. Clarissa.

Clarissa tem um metro e sessenta e dois, quarenta e oito quilos, pouco peito, pouca bunda, completamente recoberta de sardas que dão uma textura de areias do saara ao amanhecer à sua pele, olhos azuis um tanto esmaecidos e um cabelo loiro avermelhado, falando assim parece berrante mas na verdade é bem suave, cores do outono na Nova Inglaterra num dia nublado. Tem postura de estátua boa e caminha em alta velocidade com os pés em posição de gansa. Assim ensaiava Renato sua descrição, quando percebeu que era difícil acompanhá-la na rua.

Renato não estava assim tão fora de forma. Afrouxou a gravata, desabotoou o esgaga e acelerou o passo, a despeito da longa caminhada do escritório naquele sapato social de sola de couro. Mas a situação era tão próxima do que imaginara que não podia perder a oportunidade. Clarissa, de tênis, provavelmente estava atrás de um objetivo definido, milimetricamente encaixado no intervalo de almoço. Ela desceu a Teodoro Sampaio até a Oscar Freire, virou à esquerda e acelerou. Renato mantinha cola a uns quarenta ou cinqüenta metros de distância. Ela desceu o ladeirão chegando na Rebouças e parou no demoradíssimo sinal. Renato pensou que, se ficasse longe, perderia o sinal e também Clarissa. Mas não podia ficar assim tão próximo dela, pois poderia ser reconhecido. Atravessou a Oscar o mais lentamente possível, até posicionar-se para a travessia do lado oposto de Clarissa, quando pôde dar-lhe uma boa olhada de perfil, como quem olha o tráfego esperando a hora de atravessar. De repente percebeu que não poderia atravessar a rua daquele lado, pois o fluxo viraria à esquerda na Rebouças. Voltou para o outro lado da rua, rapidamente, enquanto o semáforo se invertia, e quase foi atropelado, mas conseguiu.

Atravessaram para os Jardins, bairro com estranho nome plural onde não existe sequer uma pracinha, enquanto Clarissa novamente acelerava, e ele começou a sentir o ácido lático causando seus efeitos nas panturrilhas e quadríceps. A moça mandou pau sem arrefecer até a Augusta, parando novamente no sinal. Bastante movimentada na hora do almoço, não havia qualquer risco de Renato ser percebido. Clarissa atravessou a Augusta e entrou no Frevo, e ali o espaço se tornava por demais restrito para que Renato pudesse ficar. Passou rápido e reto pela porta, e dali fez uma meia volta intencionando dar uma boa olhada pra dentro da lanchonete e ver Clarissa, antes de se mandar. Passando pela porta olhou de lado de dentro dos óculos escuros, fingindo estar olhando para frente, e viu Clarissa se esfregando em um sujeito alto, com cabelo enrolado comprido, isto é, armado como um arbusto para cima, que parecia fazê-lo enorme. Ao lado dele um estojo de guitarra, encostado no balcão, e em cima, um rabo-de-peixe drenado até embaixo, só com uma espuminha no fundo. Renato sentiu um forte frio na barriga, um raio atravessou-o duas vezes de alto a baixo, do cocoruto da cabeça até a sola do pé, e constatou que a parada era pior ainda. Levantou o braço até a altura da cintura e parou um táxi que passava, entrou e disse "Paulista" de cara amarrada.

Enquanto abraçava Marcelo Penzarotti e apertava seu pinto contra a barriga, estufada especialmente para esse fim, Clarissa pensava que era o melhor namorado que já tivera. Bonito, gostoso, divertido, inteligente, culto, sensível, charmoso, pena que quase todas essas qualidades estivessem ligadas ao seu pior defeito. Era um jovem e promissor guitarrista de jazz. Além do enorme e patente risco da carreira de Marcelo levá-lo a uma vida de privações e boemia, Clarissa gostava de jazz assim como pano de fundo, não como a água do aquário onde estaria mergulhada para sempre, a sua casinha de sapé. Ou sapê, como dizem os cariocas. Mas nesse momento da sua vida ela precisava apenas das qualidades, e procurava não pensar nos defeitos, que em nada a afetavam então. Afora o jazz. Mas ela estava apaixonada, e a volta daquela caminhada em subida íngreme não custava nada e valia muito a pena para agarrar e beijar o Penza, ao menos um pouquinho e apesar do bafo de chopp e cigarro.


Racharam um beirute, Penza tomou mais dois chopps, Clarissa um suco de laranja, e se despediram. Clarissa tinha pela frente uma longa sessão de tortura ortopédica, com slides nojentos e visitas a pacientes estourados com seus milhões de radiografias, ossos, hematomas e escoriações. Estava se sentindo suada e oleosa quando entrou no saguão da escola, depositou seu material no grande banco de madeira, segurou o cabelo com uma mão e tentou repor a água perdida na subida naquele mijinho gelado e frouxo do bebedouro. Renato estava ali a espreitá-la.

O Stalker - Capítulo 4

Era só uma questão de planejamento, pensou Renato, para localizar Clarissa, e pelo menos monitorá-la à distância. Só para exercitar seu talento detetive, afinal, já era sexta-feira, e pra ele a semana havia acabado. A bola estava com os advogados do Ceará, e ele tinha todo o tempo do mundo. Uma câmara na mão e uma idéia na cabeça. Clarissa. Como quem não quer nada, movido por uma leve curiosidade. A lista telefônica na internet não localizou nenhum só telefone com o sobrenome de Clarissa. No sintético profile não se mencionou idade nem estado civil. Não seria o caso de trocar tal intimidade de informações com estranhos, por mais que se quisesse falar inglês. Mas havia os fatos conhecidos, que se relacionados poderiam redundar numa redução de campo de pesquisa. Tinha a faculdade de medicina, o balé - mencionado como uma paixão antiga - o futebol, e mais nada. "Porque o inglês?", tentava Renato lembrar o que Clarissa havia dito na curta entrevista. "Porque eu já falo francês em casa", sim, foi o que ela respondeu. Sua família era belga, valões francófonos, e seu estranho sobrenome era "de Boever". Essa última referência era um verdadeiro beco sem saída. Informação inútil? Que nada. Lembrou de um amigo seu, um cara bem filha-da-puta, de quem ninguém jamais compraria um carro usado, e que conhecera na época em que fora obrigado, contra a vontade, ou melhor, contrariando o seu bom gosto, a trabalhar com a turma que negociava ações da Telesp e da Telebrás, muitas vezes utilizando procurações falsas dos antigos assinantes, o que acabou por meter a corretora num pequeno escândalo, causando-lhe um belo prejuízo. Ligou para o Wagnão. Aquele papo mole, de quem não se fala há algum tempo, piada pra lá e pra cá, Wagnão percebendo claramente que Renato precisava alguma coisa, saboreando o poderzinho contra aquele playboy que não muito sutilmente lhe esnobava e que certamente iria lhe pedir alguma coisa. Renato sabia que aquele verme faria qualquer coisa pra lhe puxar o saco, mas que uma hora haveria troco. Alguém a quem era melhor nunca dever nenhum favor. Bom, lixo a gente trata como lixo, lembrou, e foi direto ao ponto. Queria um telefone que não constava da lista, de um devedor da factoring - pro Wagnão tava bom isso - um sobrenome diferente, não devia haver muitos. "E aí, quando é que nós vamos tomar umas de novo" e coisa e tal, blá, blá, blá, não era o caso de oferecer cenzinho ou duzentão agora, e o Wagnão mandou, é prá já, mano. Na sexta-feira no fim da tarde Renato soube. O único "De Boever" da zona oeste de São Paulo, morava ali numa travessa da Passo da Pátria, rua tal número tal. Bingo! Sentiu uma mesquinha sensação de onipotência sobre a vítima, vítima? por que pensara nisso?... ... era só a garota gostosa de sua aula de inglês.

Sábado de manhã não tinha a menor dúvida do que iria fazer. Pegar a bicicleta - ou o camelinho, como ouvira de uma contraparte carioca - e investigar o castelo de sua rapunzel. Pura falta do que fazer, e vontade de dar uma boa pedalada, pois chegara à conclusão, conversando com o técnico do clube, que a natação queimaria calorias muito lentamente, em relação a outros esportes aeróbicos como o ciclismo, e principalmente a corrida. Fernanda, também descontente com os recentes pneuzinhos de Renato, incentivou o esporte. "Maria tem que ir embora cedo, por causa do batizado não sei de quem, mas eu fico aqui com as crianças, e assim você pode pedalar até o meio-dia. Depois vamos almoçar na casa da minha mãe". Negócio fechadíssimo, o atleta vestiu uma roupa mais para skatista do que ciclista e partiu para o Alto da Lapa. Tinha estudado o trajeto no guia, e sabia exatamente o caminho a fazer, tentando contornar as subidas do bairro. A distância era curta, pois entre a Vila Beatriz e o Alto da Lapa há apenas o Alto de Pinheiros e a Vila Leopoldina, caso se vá por baixo, ou só o Alto de Pinheiros, indo por cima. Em menos de quinze minutos, passava pela frente da casa de Clarissa de Boever. Era uma casa mais ou menos velha, ainda com a grade partindo da mureta de cerca de meio metro, de acordo com as posturas iniciais da City, que loteara o bairro, e ninguém mais respeitava. A residência estava em ordem. Os quatro automóveis estacionados, num abrigo apenas de cobertura, eram carros entre o popular e o sedan compacto, indicativos de uma sóbria racionalidade de consumo. Os simpáticos cachorros transmitiam uma impressão de funcionalidade, ao mesmo tempo em que a casa aparentava transbordar de habitantes. "Está na hora desses come-dormes tomarem o seu rumo", sussurava a sisuda construção. Mas que Renato sentiu um friozinho na barriga, ao imaginar Clarissa de camisolinha tomando café da manhã, isso sentiu.

Bom, já sabia onde morava Clarissa, qual era o seu telefone, o que fazia, quais os seus esportes, a sua origem étnica, o seu sobrenome, e pra quê? Por acaso ia convidá-la pra sair? Um cineminha, jantar e, tudo danto certo, um sexo gostoso, casual? Sentiu novamente algum constrangimento de ser tão primitivo.

Renato passou reto e foi embora. "Que catzo estava fazendo ali?", se perguntava. O que ele diria se encontrasse Clarissa numa situação de tão evidente invasão? A admiração por todo o pacote, a inteligência, a graça, a beleza, a eficiência profissional, tudo isso acumulado à enorme diferença de idade, à disponibilidade zero que ele tinha, papai mamãe e dois filhinhos, estampava a existência de dois planos não comunicáveis entre sua existência e a de Clarissa, separados por uma geração inteira, em diferentes estágios da vida, com referências conflitantes, nada a ver. Por mais inteligente, simpático, e bonito que tentasse ser, jamais teria nada a oferecer àquela garota que parecia conquistar com ritmo inexorável o seu lugar ao sol, e destinada, no amor, a um jovem brilhante e promissor como ela própria, se é que tal ligação ainda não tivesse se completado. Mesmo que a longínqua fantasia de Renato tivesse condições de vingar, que sentido faria separar-se de sua mulher naquele momento difícil de filhos pequenos, e que motivo poderia fazer Clarissa sequer cogitar de entrar em barca tão furada? O único objetivo viável, pelo menos em sua louca fantasia, e que poderia fazer sentido era o sexo causal, para ele uma lenda urbana tão inconsistente como o verdadeiro amor, pois experimentara o primeiro há tanto tempo e em estado tão alterado, que ficou arquivado na mesma prateleira das fantasias não realizadas, tamanha a incerteza das lembranças. Para Renato, nesse momento, Clarissa não passava de um brinquedinho novo, ainda na vitrine da loja, ou uma musa inatingível, pairando no Olimpo.

Bom, pelo menos as reflexões do passeio tinham servido para clarear os seus objetivos. Número um, a atração que sentia era real e importante, a garota era um tesão, porra, e dois, seu casamento naquele momento estava pesado e díficil. Depois de cinco anos enterrado em casa com crianças pequenas tinha chegado a um ponto insuportável. Renato se sentia completamente sufocado e aniquilado. Continuando sua racionalização já meio descontrolada e tendendo à idiotia, concluiu que precisava de sexo de verdade com uma mulher de verdade que não fosse Fernanda, e não bastavam mais suas visitas à putaria, com seus amigos mais bandalhos, aonde só tinha coragem de ir depois de completamente bêbado, para ficar exponencialmente bêbado. No dia seguinte a essas cagadas, ou melhor, no dia depois do seguinte, comentando à boca pequena a pisada federal, ninguém nunca tinha comido ninguém, apesar da imersão total naquele inferno de zé-do-caixão de mulheres lúbricas e transparentemente sanguessugas. Não havia no mundo lugar mais seguro para beber até cair, sem qualquer risco de gafe ou escândalo. O preço era a ressaca que sempre reclamava toda uma manhã livre de recuperação, e isso não era para qualquer um. Aliás, fazia bastante tempo que não fazia isso também.

Sem qualquer possibilidade de um romance sadio com Clarissa, Renato foi obrigado a assumir que tentaria apenas seduzi-la. Se conseguisse, daí veria o que fazer. Involuntariamente iniciou-se em sua mente uma retrospectiva de seu passado amoroso, como aquele clássico filminho da vida inteira antes da morte, e apesar da respeitável beleza ou singularidade das garotas da sua vida, incluindo Fernanda, jamais chegara próximo de qualquer coisa remotamente parecida com o verdadeiro amor dos romances, filmes, e revistas femininas baratas. Fernanda o arrastara para o altar por pura inércia, e ele se deixara levar porque, depois de alguns anos de um confortável namoro, não fazia mais sentido ir visitá-la. Como não havia qualquer motivo para o fim, acabaram se casando, e usufruindo do apoio que a comunidade dá aos jovens casados, indo brincar de casinha num apê muito bem montado, depois de um clássico casamento branco.

Todas essas idéias ridículas ficaram turbilhonando na cachola de Renato, durante o sábado, o domingo e a segunda, e na terça começou a dar tratos à bola de como deflagrar o processo de sedução de Clarissa, projeto de tão improvável sucesso como de dificil execução, que iria exigir de Renato toda sua amortecida criatividade. Faltava-lhe moeda de troca para oferecer a Clarissa, ainda que no seu narcisismo de primogênito mimado fosse bom o bastante para qualquer ser humano do sexo feminino que rastejasse sobre a terra.

segunda-feira, junho 20, 2005

O Stalker - Capítulo 3

A segunda aula.

Renato passou a quarta-feira tentando descobrir a razão da sua inquietude, ou melhor, constatando de quando em quando que estava fora de seu tédio habitual. Não sabia porque, mas estava mais agitado, espirituoso, disperso, e disposto a socializar com o pessoal do escritório, mais do que o normal. Distribuiu sorrisos e gracejos às secretárias e boys, e no almoço não lançou-se com a voracidade costumeira à comida. Até evitou os pasteizinhos. Da conversa com os sócios tomou para si a tarefa de desenrolar um problemático investimento incentivado pela Sudene, a aquisição de ações em leilão de uma companhia que fora próspera e sem qualquer razão aparente tinha-se esvaziado em pouco tempo, e passou a tarde ao telefone com advogados do Ceará e contadores. Ao longo da tarde foi prestando atenção na sua barriga, que vinha se avolumando já há algum tempo, o que lhe provocou um certo asco de si próprio. Saiu cedo do trabalho, lá pelas cinco e meia, passou em casa para pegar o kit natação e foi para clube. Nadou pausadamente, pois estava fora de forma, mil e quinhentos metros de craw, à razão de quinhentos metros a cada quinze minutos, e ficou um pouco dolorido. Teve ainda pique de passar na academia do clube, e preparar uma série direcionada à perda de peso, com pouca carga e muitas repetições. Não era a primeira vez que fazia isso. Saindo do vestiário, encontrou alguns vagabundos de clube amigos seus, tomou quatro ou cinco chopps com eles, contornou os tira-gostos e chegou em casa para o jantar. Brincou de papai, mamãe e dois filhinhos, ajudou a por as crianças para dormir, contou história, e foi dormir, cansado e feliz com sua vidinha besta, que não estava mais lhe parecendo assim tão besta.

Clarissa passou a manhã inteira em uma aula de dermatologia, “dermato”, como diziam lá, ouvindo uma aula expositiva sobre as vantagens e desvantagens das terapias à base de corticóides nas dermatoses não infecciosas, e o professor lhe pareceu um insensível escravo dos laboratórios e das estatísticas, nada disposto a perquirir os evidentes fatores psicossomáticos desse tipo de doenças, e da transitoriedade dos efeitos da terapia, a exigir o uso alternado de todos os corticóides existentes no mercado, cada um mais carregado de efeitos colaterais que o outro. A aula, com a classe dividida em grupos menores, ainda teve a exposição de slides incrivelmente nojentos, e culminou com a visita a alguns pacientes particularmente interessantes, cobertos de crostas purulentas e fedegosas. Impossível almoçar depois disso. A tarde foi preenchida com uma instigante optativa de dermato, específica sobre hanseníase, cuja única vantagem é que o hospital não atendia esse tipo de paciente, e assim, foi poupada da visita aos doentes, mas não das fotos desagradáveis. A aula acabou cedo, às quatro, e teve algum tempo livre para por suas anotações em dia antes de ir para o treino de futebol no centro acadêmico. Desempenhava com desenvoltura as funções de meia, graças à sua coordenação motora, seu senso de espaço, o cálculo mental de coordenadas móveis e a visão periférica, aprendidos no balé. O meio campo de futebol de salão tinha as exatas dimensões de um palco full-size. Não era lá muito boa de controle de bola, mas fazia passes inteligentes e marcava com a tenacidade que lhe era característica. O time depois do treino ainda tomou uma cervejinha misturada com soda limonada, enquanto era cercado pelo time masculino de rugby, formado por ogros para ela totalmente desinteressantes. Pegou o metrô para a estação Vila Madalena onde seu pai, convocado por celular, diligentemente a esperava. A volta foi semi-silenciosa como sempre.

Quinta-feira, às quinze para as sete, Renato chega na escola de inglês, vestido de um modo estudado que lhe parecia jovem e descolado. Entra na sala vazia, e fica imaginando qual seria a melhor estratégia para conseguir sentar ao lado de Clarissa. Achava que estava só a praticar o nobre esporte da conquista, usando seu cérebro de caçador. Essa perspectiva tornava tudo mais interessante, e dissipava a névoa do tédio do cotidiano, ou pelo menos era isso que ele pensava. Os alunos foram chegando, aquele papinho besta entre pessoas heterogêneas unidas pelo acaso com um tênue objetivo comum, que vão se aproximando e pensando, “bem, teremos que nos aguentar por um semestre, é melhor começarmos a nos entreter”. Todos estudando uns aos outros, a fim de negociar a distribuição do espaço psicológico do ambiente. Três rapazes mais jovens, dois inofensivos, outro que poderia oferecer algum perigo. Um engravatado quarentão, duas desperate housewives – que logo assim seriam apelidadas pelo resto da classe – também dessa idade, e mais uma jovem universitária. Todos chegaram, um a um e foram sentando. Renato vendo a cartela de bingo sendo preenchida pelos feijõezinhos, pra ver se Clarissa sentaria do seu lado. Tinha certeza que ela viria. Mas chegou Mr. King, fechou a porta e abriu os trabalhos. Chamada para fixação dos nomes, aquela lenga-lenga inicial, dois minutos depois, a porta se abre e entra Clarissa. Renato, pego de surpresa, sorriu espontâneante, ao mesmo tempo que o circuito do eye contact se fechava. Clarissa intuiu tudo e não deixou de ficar lisonjeada, dada a qualidade do teclado bem cuidado do rapaz e a visível naturalidade do sorriso. Renato por sua vez enrubesceu, por ter sido tão transparente, pondo a perder toda a sua estudada babaquice. A coisa acabou ali. A aula transcorreu normalmente, com Renato mais para o fundo da quadra, sem tentar nada mais do que manter a bola em jogo. No fim era o mais certo, pois embocou involuntariamente uma de cara, e deixou que a relação de colega fosse se estabelecendo. Discutiram a situação do oriente médio, e Renato foi capaz de ilustrar a mecânica das forças econômicas envolvidas, tomando cuidado para não parecer professoral, falando quase ostensivamente para Clarissa, o que a posição das cadeiras abrandava, e Clarissa não parecia se importar ou se intimidar nem um pouco. Na hora do café, as desperate housewives ficaram juntas, Clarissa se juntou à outra universitária, e Renato teve que se esquivar do engravatado quarentão, pois achava que iria queimar o seu filme, e tentar se aproximar dos três rapazes. O quarentão, que não era bobo nem nada, ligou-se às mais velhas. Renato não teve uma oportunidade natural de se juntar aos três jovens, não quis dar mole, e acabou tomando seu café sozinho. Ponto perdido. De volta à aula, Mr. King cumpria com maestria o seu mister, e ia promovendo um diálogo vivo, no qual as idéias pareciam mais importantes do que a língua. Renato passou a gostar da voz de Clarissa, e a forma clara e objetiva com que expunha suas idéias, sem arroubos de criar polêmica ou fazer graça. Na hora de ir embora, boa noite, boa noite, e chispa cada um pro seu lado, sem qualquer chance para o acaso.

A partir desse momento, para Renato todo o resto do tempo se tornaria apenas um intervalo entre uma aula de inglês e outra, embora ele ainda não tivesse se dado conta disso.

domingo, junho 19, 2005

O Stalker - Capítulo 2

Home, sweet home

Renato voltou levitando pra casa, sem querer admitir, ou mesmo perceber, que já tinha sua alma aprisionada por Clarissa. Mas quando entrou em seu apartamento na Vila Beatriz, perpassou-lhe um calafrio. Um choque da cabeça aos pés, acompanhado de um arrepio ao longo da coluna dorsal, do saco até a nuca. Pela primeira vez sua vida de casado lhe pareceu uma verdadeira prisão.

Em casa tudo em paz. O seu prato já feito com esmero estava na mesa, ao lado de uma travessa de salada, o galeteiro, e a meia garrafa de vinho sobrada da noite anterior. Só por no micro-ondas e comer. Estava tão imperceptivelmente transtornado, que resolveu comer frio mesmo, enquanto sorvia sofregamente o vinho já um pouco oxidado.

As crianças dormiam e sua esposinha Fernanda estava confortavelmente refestelada na cama, assistindo a novela. Renato, relaxado pelo vinho, agarrou-a com vontade, falando bobagens engraçadas com convicção, rompendo qualquer resistência que pudesse ser engendrada pela mulher rodando em modo preguiçoso. Foi a primeira vez que comeu-a pensando em Clarissa, e o fez com empenho e capricho.

Mas não conseguiu nem cogitar dormir. Pos o pijamão, uma camiseta velha e um short de algodão com elástico, e sentou no computador, sem qualquer objetivo. Enquanto a máquina se punha a funcionar, o filho mais novo deu uma acordadinha, querendo chorar. Ele foi lá, virou o bicho, cobriu direitinho, deu um beijo de boa noite e voltou ao computador.

Clarissa por sua vez, voltou muda pra casa com seu pai, lá no Alto da Lapa, ouvindo a rádio cultura. Tocava uma peça brasileira contemporânea, com a orquestra canhestramente tentando emular obscuros ritmos populares do norte, com um fraseado atonal. Depois de anos brigando nesse momento da última volta pra casa, os dois tinham aprendido a ficar calados. Ela não agüentou e mudou rádio para uma rádio de tecno e pop, que sabia que ele não tolerava. Algumas ele gostava, mas não gostava de admitir.

Em casa sua mãe estava refestelada na cama vendo a novela, e seu irmão e sua irmã trancados nos respectivos quartos, em atividades obscuras e secretas, que variavam do tráfico de drogas ao estudo de filosofia clássica. O único indício do que podiam estar fazendo era a trilha sonora, que vazava pela porta. Comeu um prato de granola com iogurte e frutas, pensou que era carboidrato demais para comer à noite, e foi dormir, não sem antes fazer a longa toalete que fazem as mulheres, com um olho na tevê e outro no programa de mensagens instantâneas, pra ver o que estava rolando. Onze horas estava dormindo, pois tinha que acordar às seis e meia.

Renato agora xeretava as últimas notícias do portal do seu provedor, abriu algumas manchetes de novidades esportivas, com pouco interesse. Começou a procurar Clarissa. No google, achou apenas o resultado do vestibular, informação que já conhecia, e a escola secundária onde estudara. Essa inofrmação podia ser explorada. No msn e no orkut nada. A moça prezava sua privacidade. Mais uma qualidade que ele valorizava. Dentro do esperado, apenas confirmando a pequena e prematura admiração já instalada.

O sono veio de repente e forte, e ele quase correu para se jogar na cama, deitando-se de costas para a mulher, como sempre, e dormiu pesadamente por volta da uma hora. Acordou às oito, e em vez de lembrar da chatice que tinha pela frente no escritório, como sempre, lembrou de Clarissa com aquela sensação de lembrar que a bicicleta nova do aniversário ainda estava lá, ao alcance de sua mão. Na verdade tinha que esperar até a próxima aula. Todas essas sensações eram muito tênues, e Renato não tinha porque lhes dar qualquer importância.

Foi tomar café e a casa já estava em pleno funcionamento, a babá com as crianças, a empregada arrumando não sei o que, e Fernanda já havia saído para a academia. Banho, barba, roupa, café da manhã com o jornal, e rua.

O trampo

Cumprimentos de cabeça e acenos para os porteiros e vizinhos do prédio, o trânsito de sempre, já amainado do rush das nove, a rádio cultura que sempre ouvia não foi suficiente para o seu estado de espírito alterado e pelejou nos sinais até conseguir pegar um cd no fundo do porta-luvas com a música grunge da sua época de faculdade. Chegou no escritório na região da Paulista, num prédio do fim dos anos 70 já meio decadentão. A instalação do escritório, apenas semi-atualizada, era da época do auge da corretora da qual seu pai era um dos sócios, e que já a algum tempo não tinha mais autorização para funcionar nas bolsas, e operava, basicamente com dinheiro próprio, como uma empresa comum no mercado secundário de balcão não organizado. Um dos sócios fazia uma agiotagenzinha sob outra pessoa jurídica, de factoring, o que incomodava um pouco Renato, que achava aquilo um pouco brega.

Mas lá se sentia em casa. Como o escritório de Zeno, o personagem de Ítalo Svevo, lá praticamente não se trabalhava. Tomavam decisões de negócio lendo jornal, falando no telefone, e conversando entre si, principalmente na hora do longo almoço, que era feito no escritório pelo velho garçon que estava lá desde que a corretora fora grande e importante, e servido na sala de reuniões.

Espaço não faltava, depois da palpável diminuição da população do escritório, um grande conjunto obtido numa jogada de sorte do seu pai, ou de genial inteligência como ele gostava de fazer crer, e portanto Renato tinha uma ampla e confortável sala, que era uma extensão da sua casa, e onde misturavam-se totalmente os elementos de sua vida privada e profissional.

Clarissa nesse momento estava em sua terceira aula. No terceiro ano da faculdade de medicina, sua vida era um trem sem parada. Era o que ela gostava, desde pequena. Talvez tenha sido nas aulas de balé clássico que forjou a invejável disciplina, nove anos de duas a três horas de balé por dia, mais os festivais e apresentações em fins de semana, feriados e férias. A dor, as bolhas, os calos e joanetes, eram perfeitamente suportáveis, assim como a repetição sem fim das longas seqüências coreográficas, que tinham que ser decoradas, executadas, e limpas, para ficarem em ponto de bala.

Isso tudo acumulado com notas altas no colégio, uma fama de CDF que pouco a incomodou, e opção pelo curso com vestibular mais difícil, cuja escolha não mais sabia dizer se tinha sido apenas por esse motivo. Trabalhava como se quisesse expiar alguma culpa secreta, ou estivesse galgando as escadas do paraíso. Todos se admiravam de sua infinita e inquebrantável motivação. E lá ia ela firme como uma mula andina decifrando os segredos do funcionamento do corpo humano em todas as suas instâncias, para saber como curá-lo.

sábado, junho 18, 2005

O Stalker - Capítulo 1

O STALKER

Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais, se foi mal disfarçada, negarei até o fim.

O tema.

A espinha dorsal da trama que se seguirá, é a figura do “stalker”, aquele cara esquisito que persegue uma mulher de forma mais ou menos velada, e que acaba por se mostrar, e importunar a perseguida das mais diversas formas. Um amor corrompido, patológico, metódico, quase um esporte ou uma segunda profissão.

Típico da era da informação, agora que qualquer um pode ser mais ou menos rastreado por google, orkut, msn, e outras redes de informações de pessoas, o “stalker” quase sempre começa a sua descida aos infernos do seguro conforto do seu lar, ou do seu escritório, roubando tempo ao patrão.

As partes

Vamos chamar nosso herói Renato, o mais auspicioso dos nomes, o que equivale a dar-lhe a habilidade de renascer depois de cada queda. A idade da qual nunca devíamos ter saído, entre trinta e quarenta, pode ser começo dos trinta. E ainda, deuses que somos, bafejar-lhe a sorte formando-o inteligente e bem proporcionado.

Renato tem tudo. Papai, mamãe e dois filhinhos, bem instalado na comunidade, uma boa poltrona na platéia do teatro da vida. Um sobrenome para ele poderia ser Carneiro. Um cara teimoso e cabeçudo? Vamos ver o que sairá da cachola desse cara que acaba de nascer pronto.

Renato decide que alguma coisa lhe falta, e vai estudar inglês. Como conquistar o mundo sem falar inglês? Fluentemente, como exigem os arautos das oportunidades. Uma rápida busca na internet de referências confiáveis das escolas disponíveis na sua área, e Renato opta por uma que garante professores nativos. Foi assim que tudo começou.

No primeiro dia da aula da aula de inglês ela já estava lá, indistinta, no meio daquele grupo de nove pessoas. O professor era nativo de Hong-Kong, não falava português, o seu inglês era no mínimo um pouco anguloso, e qualquer um apostaria que o seu cantonês – ou qualquer que seja a língua que se fala lá – era ruim.

Mas o chinês, que respondia pelo improvável nome de James King, tinha lá o seu charme, e desenvolvia o método da escola com desenvoltura. Orquestrava a classe avançada com categoria, lançando o debate e estalando o chicote a cada erro, prontamente corrigido, sem que se pusesse a perder o ritmo da conversa.

Renato logo notou Clarissa. Sabendo-se condenado a permanecer num lugar chato por um tempo qualquer, como um ônibus, uma fila de repartição, a primeira coisa que Renato sempre fez foi dar uma escaneada na área para localizar a garota mais interessante. Considerava esse o foco adequado para sua perene e interessada observação do gênero humano.

À primeira vista, Clarissa não era tudo isso, mas era sem qualquer dúvida a pessoa mais interessante naquele círculo. E nela Renato imediatamente pôs toda sua atenção, dissimulando o máximo possível a intensidade do seu interesse, exibindo somente o necessário para deixá-lo claro, no limite aceitável para uma educação cosmopolita.

Mas, o que deixou Renato imperceptivelmente embasbacado, foi o brilho da mente de Clarissa. Clarissa era cleaver, smart, fast, e tinha um refinado sense of humour. Esmerou-se no pingue-pongue. Usava toda a sua possibilidade de concentração para que as suas intervenções, se não engraçadas, fossem ao menos inteligentes.

Clarissa era muito mais jovem que Renato. Ele tinha trinta e três, e ela vinte. Treze anos, uma adolescente inteira entre eles. Além do mais, Renato era papai, mamãe e dois filhinhos, um ainda de fralda. E ele era um simples observador, quase um ornitólogo, totalmente teórico e jamais, em todos esses cotidianos esforços concentrados, partira efetivamente para a ação.

A aula começou com a apresentação de cada um, um profile panorâmico, e assim, Renato ficou sabendo mais do que devia sobre Clarissa, e ainda, quando o professor possibilitou uma pergunta de um aluno para outro, Renato conseguiu perguntar a Clarissa – pois ninguém ainda havia lhe feito qualquer pergunta – em qual faculdade de medicina ela estudava, embora ele já tivesse quase certeza da resposta. “USP”, cuspiu delicadamente a moça. Ante a brevidade da resposta, Renato sentiu que havia espaço para pedir esclarecimentos a respeito do sobrenome estrangeiro de Clarissa.

Renato, por sua vez, teve alguma dificuldade em explicar em inglês que trabalhava num nicho do mercado de capitais conhecido como rapina, mal vista porque oportunista e agressiva, mas reconhecidamente útil pois limpava o mercado de títulos abandonados, esquecidos, nascidos de incentivos fiscais malversados, debêntures de falências evitadas, negócios que deram errado enfim, socados debaixo de tapetes, comprados a preço de banana, e liquidados no limite do achaque, por inescrupulosos advogados de dentes arreganhados. Renato embonecou o demônio, e omitiu a origem familiar do negócio, por que sentia que isso o diminuía de alguma forma.

sexta-feira, junho 17, 2005

Domingo, meio-dia, Ibirapuera




Vai tocar o músico mais sólido do planeta, WYNTON MARSALIS, com a banda do Lincoln Center Jazz Orchestra. A melhor execução de um dos melhores momentos da música, o jazz clássico até o bebop, antes da descontrução atonal do jazz moderno. Não tem erro. Segunda e terça, a preços salgadinhos na Sala São Paulo, um delírio de teatro, com o confortabilíssimo estacionamento. Bem no meio da crack-o-land.

quinta-feira, junho 16, 2005

Como é que você se chama?

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Fora a gafe de encontrar a pessoa e não lembrar o nome, principalmente daquelas que você tinha a obrigação de saber, há muitas outras questões nominais, paranominais, patronímicas, pseudônimas, apelidísticas, heterônimas, e anormais. Ninguém gosta de ter confundido o seu nome com um parecido, assim como maria com marina, ou wilson com wilton, com nilson, sei lá. Nem tampouco que o escrevam errado. Fazem questão de suas letras dobradas, dablius e ipsilones, e outras idiossincrasias ortográficas. Daí vem as bobagens. "Não, o meu correia é sem "i" e com circunflexo." Como se isso não passasse de um acidente de cartório. Correia ou corrêa, os correias que me desculpem, mas é uma coisa só. Aquela cinta de couro pra amarrar as tralhas no lombo do burro, ou aquela de borracha reforçada com malha trançada que transfere rotações debaixo do capô do seu possante. E daí. Pouco se me dá que o muar claudique. Ou então o netto com dois "t". Neto já é um apêndice esquisito. Com dois "t" então, e alçado à condição de sobrenome, é uma grande distorção. Netto Júnior, quer melhor nome de radialista? Luiz com "z", você nasceu antes da reforma ortográfica de 71 ou 43, sei lá (?), senão seria com "s". Mas tem os movimentos na direção contrária. Nomes alemães, neerlandeses, tchecos, enfim, de línguas cujos sons, para os lusófonos (esta é f...), não correspondem à grafia. Reuteman vira róitman. Heleninha Róitman. Gróisman (o acento ajuda, não é?). O importante é essa coerência com a prosódia lusófona (de nofo, fon fon). Ou italiana. Tem as paolas que gostam de ser chamadas de paôlas, embora a pronúncia em italiano seja paula. Que salada. Ou insalata. E os apelidos ao longo das décadas. Encontra o colega de ginásio e grita "e aí Gosmento, seu filho da puta, como está essa força! dando muito o rabo ou comendo as menininhas... hahaha ... Gosmento, Gosmentão... tá gordo em seu viado, comendo pra caralho, continua enchendo a cara todo dia, nojentão?". Muito adequado para um circunspecto "pater familias" grisalho. De um modo geral não gosto de apelidos, não gosto que me apelidem e não chamo ninguém pelo apelido. Tonho, eu chamo de Antônio, com maíuscula, cincunflexo e tudo. Esse é o nome. Claro que há exceções, talvez até em número maior que a regra, quando o apelido vira o nome da pessoa. E por aí vai. É um assunto sem fim, como os nomes exóticos nordestinos, os patronímicos dos romances russos, ou a forma com que os antigos, antes da separação da igreja e o estado, quando os filhos eram registrados somente com os nomes de batismo da igreja (como é óbvio) e escolhiam os sobrenomes que mais lhe agradavam pelo som ou qualquer outro motivo - quase sempre o nome mais rico - e assim "customizavam" ou "minivanizavam" o seu próprio nome. Era comum irmãos com o sobrenome totalmente diferente. Parentescos perdiam-se e criavam-se assim. Com os muitos casamentos consanguíneos, dava uma mistureba total. E por aí vai. Que ninguém se sinta ofendido nos seus brios de letras dobradas e quejandos. Nada contra ninguem, só acho esquisito.

quarta-feira, junho 15, 2005

Bauru e Boccherini

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Hoje dei uma gazeteada e fui ver o Quarteto da Cidade de São Paulo na Galeria Olido, comemorando os duzentos anos da morte do compositor e violoncelista Boccherini. Antes, fast food de qualidade no Ponto Chic. Há muito tempo não ia lá, e o bauru continua ótimo. Mas é total a falta de charme do boteco, que poderia reproduzir um dos anos trinta ou quarenta com autoridade, em vantagem aos inúmeros fakes que estão por aí. O concerto gratuito, meio-dia e meia, na sala do antigo Cine Olido com seu imponente vestíbulo de mármore, que agora é da Secretaria Municipal da Cultura, estava quase lotado. A sala recebeu um bonito tratamento acústico, com grandes placas coloridas no teto e madeiras nas paredes, um belo palco completo, sonorização de primeira. O público fazia um pouco de barulho com suas sacolinhas de plástico, aplaudia na hora errada, mas adorou a música. O simpático violista Marcelo Jaffé explicou as obras, contextualizando-as na história e geografia de forma sintética e abrangente. A acústica da sala é excelente, e a fala mansa do músico era ouvida com facilidade em qualquer lugar. O quarteto é incrivelmente bom, e depois de uma introdução com Boccherini, atacaram de Camargo Guarnieri, muito bonito, nada complicado ou chato, e para finalizar, voltaram ao Boccherini em um quinteto com um violão. A peça espanholada é vibrante - aprendi que o compositor, depois de peregrinar pela Europa, radicou-se na Espanha - mas o acréscimo do violão microfonado pôs a perder a maravilhosa sonoridade do quarteto e sua dinâmica refinada. O único problema do teatro é que a grana da prefeitura não deu pras cadeiras. Entrei no apagar das luzes, e quase fui pro chão numa cadeira quebrada, acho que ainda uma original da inauguração do Cine Olido, que deve ter uns cinqüenta anos. Na saída, pra contrabalançar, dei uma geral da galeria do rock, que continua o máximo. Tempo total, duas horinhas. Programa bom e barato.

terça-feira, junho 14, 2005

Lei do reboque

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Na linha das grandes classificações de humanos, dá pra dividir o mundo dos motoristas entre os que instalam gancho de reboque no carro sem ter o que rebocar, e os que não instalam. Tá cheio de gente que põe aquele fálico apêndice na traseira do veículo só para intimidar os que vêm atrás, como quem diz: “cuidado aí o meu, se você encostar em mim você vai se dar mal”. Os carros de hoje têm os pára-choques escondidos embaixo de frágeis cascas plásticas, mas que são bastante flexíveis. Assim, se você der uma encostadinha plástico com plástico, faz “boinc” e não acontece nada, nem um risquinho. Agora, se você der uma encostadinha no gancho do reboque, aquele troço tá aparafusado na parte rígida do carro, sem nenhuma elasticidade, então, muito provavelmente, você vai estourar a parte plástica do seu pára-choque, o que vai lhe custar várias centenas de reais – em torno de um barão inteiro. Fora a amolação de levar o carro ao conserto, ver se usa ou não a franquia, e coisa e tal. É evidente o desequilíbrio causado nas relações entre motoristas desconhecidos entre si pelo uso do maléfico artefato. Os legais ficam em desvantagem. É a velha lei do Gérson, ou melhor, Lei do Jefferson, que está lá inventando história neste exato momento. Aposto que ele tem gancho de reboque no carro.

segunda-feira, junho 13, 2005

Olha a onda aí



Depois da farra dos comentários chegou a hora do post. Porque não recortar e colar? Você acha que pode ter algo mais a dizer do que todas as idéias e canções e poemas e artigos e obras de arte e 8 bilhões de referências do deus gugol? Vai ser único lá na via láctea. O que pode ser único é a troca de idéias. Fazendo a engenharia reversa da megasena, seis idéias quaisquer, juntas, têm 1/53 milhões de chance de serem reproduzidas como uma unidade. Considerando a quantidade de blogs existentes, já na casa de várias dezenas de milhões, mesmo tal tarefa não é tão difícil. Procurar o eco, montar uma rede de gente com a mesma coisa na cabeça. Por exemplo a Daslu. Quantos posts e comentários se fizeram e estão se fazendo sobre o raio da Daslu. E do Santo Antônio, que é hoje. Tem que haver um efeito qualquer desconhecido desse esforço de formigas operárias. Quantos blogueiros para fazer um pensador? É a circulação enlouquecida das idéias. É coisa nunca vista. Aí tá chegando, tá vindo, tá subindo... É onda pra pegar e se jogar. É a minha. Vou remar pra ver onde vai dar! Agora remar tudo pra não dropar atrasado! Vai! Rema! Ôô aê aê... Fui peguei to em pé catapulta pecus voa pra cima e pra baixo procurando só acelerar pra passar a sessão curva pra fora acabou.

domingo, junho 12, 2005

My funny valentine

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Writer(s): rodgers/hart
My funny valentine
Sweet comic valentine
You make me smile with my heart
Your looks are laughable
Unphotographable
Yet you’re my favourite work of art
Is your figure less than greek
Is your mouth a little weak
When you open it to speak
Are you smart?
But don’t change a hair for me
Not if you care for me
Stay little valentine stay
Each day is valentine’s day

Essa linda canção da famosa dupla da Broadway, alçada à condição de standard do cancioneiro popular estadunidense, o mais difundido do mundo, chegou a nós identificada com o trompetista Chet Baker, a triste figura do pretty boy vindo dos milharais do meio-oeste, que conquistou a Costa Leste com sua corneta, e envelheceu jovem velho como um retrato de Dorian Gray, entregando sua alma àquele do qual não se pronuncia o nome num pacto cuspido com heroína. O autor de uma biografia de Chet que li um tempo atrás comenta quão estranha é a letra, que ressalta as risíveis fraquezas do/da Valentine daquele que a canta, e mesmo assim não quer que nada mude. Nada simples. Vi um filme, produzido e estrelado pela Neve Campbell, dirigido pelo Robert Altman, "The Company", no qual essa canção aparece em várias versões, uma cantada por Elvis Costello. Dá a impressão que a canção está sendo superexposta e está se esgarçando. Há um ponto do qual não há mais retorno, em que isso mata a canção.

sábado, junho 11, 2005

Circa 1980




Fomos acampar no feriadão. 4 ou 5 casais solteiros. Mapa do IBGE, Fiat 147, saindo de madrugada, Dutra, Paraty, traineira, vilinha caiçara inacessível e bucólica. Barraca debaixo da castanheira/chapéu de sol, perto do riacho com cachoeirinha. Comidas feitas na boca do bujãozinho. Um dos casais tinha problemas. O rapaz convidou primeiro uma outra, que fez que ia mas não foi. Na última hora, a que foi, puta da vida. Na trilha para a praia virada pro mar aberto, encontramos uma cobra em cima duma pedra. Metade da fila passou e outra voltou. Passei pelo cantinho, olhando pra jararaca na altura do peito (claro, sou o herói absoluto e gabola). Os casais se misturaram. Na beira do oceano, o desafio de ficar pelado todo mundo junto na praia pré-cabralina. Índios. A turma que ficou enterrou cervejas semi-frias na areia, segundo orientação dos caiçaras, mas todos esqueceram de deixar o gargalo pra fora. Perderam. À noite depois de fugir com minha cara metade antes pra barraca, mais tarde entrou o casal com problemas, e deitou do nosso lado. Às tantas acordo quando alguém enfia a mão no meu calção, provavelmente um adidas de algodão de elástico, e mexe em mim com a familiaridade de quem tem um. Fiquei tão chocado que achei melhor fingir de morto. Por um momento tive o terror de que fosse o meu amigo. Mas era a menina puta da vida. No fim do feriado, enquanto esperávamos a traineira pra ir embora, um caiçara matou um porco a tiros de cartucheira, num cercado embaixo de uma castanheira/chapéu de sol. Tava na cara que o negócio dele era anzol.

Melinda & Melinda



Fui à maravilhosa sala Uol ver o último Woody Allen, Melinda e Melinda. Você para o carro no Pão de Açúcar, compra algumas coisinhas para o finde e o estacionamento é grátis. A sala é enorme e não tem lugar ruim, porque a tela é da largura da sala, e entre a primeira fila e a tela há um bom espaço. Nunca se fica muito perto nem de lado, se bem que sempre sobra bastante lugar. O som é bom, a poltrona é boa e tem um cafezinho expresso. E o homem do projetor é artista! O filme acaba com um estalar de dedos significando a transitoriedade da vida, que é bem uma preocupação de velho e o Woody já não é mais nenhum garoto. Pois bem, no exato momento do estalo, vem um plano preto, e entram os créditos e a música, aquelas letras brancas e o jazzinho de sempre. E no exato momento do estalo, o projetista acende a luz do cinema, multiplicando o efeito! O cara fica lá o filme inteiro esperando o momento do seu número, e não tem nenhuma resposta, mas ele tem certeza que os mais atentos vão perceber "sua interação com a obra de arte" (haha). Parabéns para o projetista ou lanterninha ou sei lá quem faz o truque (talvez o gordo que recebe as entradas). Ah, e o filme é um Woody Allen clássico: Nova Iorque, casais em reações de afinidades eletivas (oh, casamentos; oh, não, traições), só que sem sua atuação, dissolvida nos vários personagens. A super trilha sonora, a simplicidade, o baixo orçamento e o resultado consistente. Coisa fina que a gente consome desde garoto.

sexta-feira, junho 10, 2005

Nietzsche desmontável




"Sê ao menos meu inimigo!” Assim, fala o verdadeiro respeito, o que se não atreve a solicitar a amizade. + Deveis procurar o vosso inimigo, deveis fazer a vossa guerra e fazê-la pelos vossos pensamentos! E, se o vosso pensamento for vencido, que a vossa retidão lance, ainda assim, um grito de vitória! + Dizeis que a boa causa santifica até a guerra? Eu vos digo: a boa guerra (feita com pensamentos) santifica qualquer causa = a má guerra é aquela na qual o objetivo é a completa destruição do adversário; a boa guerra, supostamente criada por Zeus, é aquela na qual o desafio não é superar o adversário, e sim superar a si mesmo, tomando como referência um adversário, ou inimigo, que seja reconhecidamente superior (em termos pré-homéricos).

quinta-feira, junho 09, 2005

Colisão de mundos

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Cometi um erro ao constituir o blog com nome fictício não humano, Pecus Bilis, e ainda fazer um poste “manifesto” justificando o anonimato. Tivesse inventado um nome comum, como “João Marques”, ou “Edinho Nascimento” e ficasse quieto, ninguém estaria querendo descobrir quem eu sou, o que aliás não tem nenhuma graça. Até de jogada de marketing já fui acusado, só por querer minha identidade oculta, para poder me expressar sem nenhuma censura. Fora o erro de avisar o que estava fazendo, acertei na mosca. O meu duplo físico já teria ficado muitas vezes constrangido com vários fatos ocorridos na minha curta e intensa vida de blog. Estou acuado. Em casa, suspeito que a família já descobriu a existência do blog, o que já me tenta a deletar pelo menos alguns dos postes. E aqui, o suspense do anonimato está gerando um razoável potencial de decepção, que ocorrerá com a revelação inssossa. Como no episódio do Seinfeld “The pool guy”, em que George tenta impedir que Elaine saia com Susan, porque como é óbvio, segundo Kramer, caso isso aconteça, George’s worlds will collide, e o universo se desmoronará.

quarta-feira, junho 08, 2005

Frankamente



Confesso ter ficado um pouco decepcionado com a reação apática à patética e tosca, bisonha e bizarra literatice produzida por este réptil viscoso, intitulada “um pele fina sobe o morro”, que não mereceu nenhum “hummmm”, ou “diferente”, ou pelo menos “brilhante”. Jaboticaba nele! Contaminado pelo ambiente favorável, baixei a guarda e dei mole para a tentativa de ficção, que é a doença mais perniciosa do mundo do blog. E eu quero mais é que todo mundo discorde. Pra coisa fazer sentido de uma rede de troca de informações úteis, que valha a pena ser freqüentada, o vínculo com a realidade é essencial, é o que distingue o interessante do delírio estúpido. Sem querer cagar regra. É claro que uma escorregada de vez em quando não faz mal, ou a patinação total de quem sabe o que está fazendo. Mas o poste padrão do blogueiro comum é um comentário da realidade. Do grande mundo do jornal, ou da sua vidinha privada. Acho que os da vidinha privada têm mais possibilidade de vingar do que os comentários sobre os grandes fatos do mundo, que já são esmiuçados por profissionais bem pagos. E nesse quesito, quem marca gol de letra todo dia é a gloriosa “franka”, que mostra como é boa a sua vida ao saborear os eventos do todo dia, com sua família, amigos, clientes, fornecedores, estranhos, blogueiros, e quem mais estiver por perto. Pontual como o trem das onze, desova todo dia uma sodinha deliciosa de três minutos de leitura. Tenho pescoçado por aí, como quem vê alguma coisa na calçada passando na avenida a 60 por hora, fragmentos de uma discussão sobre a natureza do blog. Pra mim é uma linguagem, na acepção que lhe dava o Círculo de Viena (aquela turma que se reunia nos cafés pra encher a cara discretamente comendo merengues, em cadeiras de palhinha), assim como é a matemática, uma ciência, ou uma arte, como o cinema, ou uma língua, como o aramaico, para encurtar explicação e evitar discussão sobre o que é linguagem. Daí fica fácil perceber que o blog é uma linguagem que é usada em conjunto com outras linguagens, como toda linguagem, yada, yada, yada, blah, blah, blah. A “franka” sabe falar esse idioma, e é uma artista sem precisar da ficção, só com aquilo que está por ali, ao alcance da sua mão.

Pê-esse: Calma, eu sei que há vários outros estilos de blogs úteis...

terça-feira, junho 07, 2005

Você já ouviu



Tati Quebra Barraco cantando Boladona?

Boladona - Tati Quebra Barraco
(Márcio)

Na madruga boladona,
sentada na esquina.
Esperando tu passar
altas horas da matina
Com o esquema todo armado,
esperando tu chegar
pra balançar o seu coreto
pra você de mim gostar

Sou cachorra sou gatinha não adianta se esquivar
vou soltar a minha fera eu boto o bicho pra pegar

Sou cachorra sou gatinha não adianta se esquivar
vou soltar a minha fera eu boto o bicho pra pegar

Boladona ...

Um pele fina sobe o morro

O inimigo oculto, invisível, terrorista. Guerra suja. A água servida escorria pela vala, que graças à grande inclinação permanecia desimpedida de detritos sólidos, salvo uma ou outra maçaroca de lombrigas mortas expelidas pelas crianças barrigudas, enganchada nas margens fundas, com algum lixo espalhado. O morro estava deserto e silencioso. Não se via ninguém, portas e janelas dos barracos fechadas. O calor e o peso do coturno, do colete à prova de balas, do capacete de aço, do fuzil e da pistola, do rádio e da munição, durante a escalada de trezentos metros de desnível, até o cocoruto, onde ficava o campinho de futebol, aumentavam a cada passo. A subida teria que ser parcelada em quatro ou cinco tiradas. A ação era coordenada com quatro outros pelotões que subiam as outras quebradas. O coração na boca de nervoso e de cansaço. O ar sempre insuficiente para o esforço. E o suor que empapava a roupa e fazia a arma escorregar na mão. Depois da segunda parada, mal tinham recomeçado a subir, uma batida funk a toda a altura estoura do meio dos barracos, se misturando ao ruído surdo do helicóptero que acompanhava a ação, rondando o morro como uma mamangaba gigante. Uma voz sinistra, grave, ritmada e agressiva começa a martelar palavras de ordem contra os invasores do morro, que representam o sistema opressor contra o qual é urgente resistir. É matar ou morrer, nada a perder, fudido por fudido truco. O medo e a raiva aumentam juntos. Que sistema o caralho, seus bandidos vagabundos, seus traficantes de merda. O pescoço já estava dolorido de olhar pra cima. Puta desvantagem estar embaixo. O rapper continua a rosnar. Continuam subindo, devagar e sempre, até pararem na última encruzilhada para o último descanso. O funk continua com o batidão mas ficou pra trás, e não incomoda mais. No fim do último trecho, a certeza da proximidade do confronto. Agora fodeu! Não tem mais o que esperar. Como planejado, os cinco pelotões atingem o campinho ao mesmo tempo, e se espalham de forma ensaiada e eficiente, com as armas destravadas e prontas. Ocupam meio campo pelas bordas, em formação, prontos a varrer com tiros qualquer coisa que resista à ocupação. Ninguém aparece. Vasculham o cocoruto do morro e nada encontram. Recebem a ordem para descer. Na descida, a força de retaguarda que foi plantada vai se aglutinando aos ponteiros. O funk continua bombando, no meio dos barracos, e o rapper recitando suas rimas abolicionistas.

segunda-feira, junho 06, 2005

Teu fim está prestes, burguês

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Enquanto o mundo desmorona à minha volta, como sempre, resolvo parar tudo e postear. Antes de bloguear, o meu tempo livre mental era utilizado principalmente para pensar nas questões de trabalho, no chuveiro, no trânsito, no esporte, em todo lugar. Agora, de vício novo, só penso no que vou postear e comentar nos postes alheios. Nem que seja só um postezinho pequeno. Só mais um comentarinho...

sábado, junho 04, 2005

Rins e fígados

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Fui ver um puta peção, como diria o blogueiro (não gosto dessa palavra) belga Stjin, que raciocina com muita clareza em português apesar de ter ainda alguma dificuldade com os gêneros. “Um circo de rins e fígados” do Gerald Thomas a preços módicos no Sesc Pinheiros. GT, pra mim, sempre foi não vi e não gostei. Nunca tinha visto nada mesmo, pois do que falavam eu fiz uma imagem de que era uma enrolação incompreensível cheia de referências eruditas e um cenário bonito e pedante, ao som de música minimalista. Mas ficava intrigado como um cara tão ruim podia cooptar gente tão quente como as Fernandas, e montar óperas no mundo inteiro, associado a artistas importantes como o Philip Glass. Depois do episódio da bunda do municipal do rio, li algumas das suas colunas na Caros Amigos (aquela revista que tem uma página tão grande e uma letrinha tão pequena que dura um mês no revisteiro do banheiro), e não pude de deixar de nutrir alguma simpatia por GT. Algum tempo atrás li a coluna do Marcelo Paiva (que apesar de ter fraturado a de osso tem uma bem inteira no estadão de sábado) falando super bem da peça. Depois, o ânimo esfriou um pouco com o comentário da mãe da Franka, que não entendeu algumas das piadas. Ontem acabei indo. O Sesc Pinheiros impressiona pelo luxo, apesar de não ser uma arquitetura emocionante, piorada por granitos de banco e uma certa cara de hotel flat cinco estrelas. O público, boa parte com cara de paulistanos que querem parecer nova-iorquinos (não me perguntem o porquê, não saberia sustentar a torpe acusação, é um jenececuá que denuncia, talvez seja apenas gente culta e viajada), mas que encaixava na fôrma do preconceito que eu tinha. Um café expresso bem tirado, com um docinho de nozes jóia, a 1,50, viva o sistema S. Entramos no teatro enorme inclinadão e com o palco meio exposto, baixo, que sai de sua caixa e invade a platéia, tudo tomado por neblina espessa e gelado. Cenário simples e despojado, excelência técnica de microfones e som, iluminação e trilha sonora que intensificam a ação com precisão, denotando domínio da linguagem do teatro por esse macaco velho e experiente. Realmente como disse o GT, um comédia rasgada, com longos momentos do teatro inteiro gargalhando a bandeiras despregadas (clichê absolutamente incompreensível que fez um pop-up de um canto obuscuro do meu palácio da memória). Peça a serviço do ator, que comparece com seu nome real (ou artístico sei lá), Marco Nanini, expondo as vicissitudes do homem moderno na pele do artista de persona pública, em contraponto com o homem comum João Paradeiro, ambos sufocados pela era da informação, que nos aproxima com uma grande lupa das grandes questões mundiais e de estado, e no sentido inverso da lente faz nos enxergarmos como insetos insignificantes sem condição de intervenção. As vísceras do ator são também ampliadas e exageradas até o grotesco, culminando sua corrupção com um crime muito bem escolhido, auge do macabro mas sem provocar nenhum dano real, ou seja, a sua questão interna. Além de Nanini e Paradeiro, participa da tragédia-comédia a musa do ator, que tem com ele uma reação bastante desgastada. Um coro de tragédia grega acompanha a ação quase o tempo todo, assumindo em conjunto vários papéis institucionais, e assim construindo a “armação suspensa de um fingido estado natural”* na qual habitam “fingidos seres naturais”*, um mundo intermediário entre a ação e o espectador, onde a tragédia acontece. GT facilita as coisas pra nós também com uma voz oculta, o propríssimo deus ex machina da tragédia euripidiana (que conta a história para a platéia para que ela possa apenas vivenciá-la), que no caso parece ser a voz do autor dialogando com seu ator e mastigando o texto para a platéia e para ele. Em suma, um puta peção.

*Nietzsche, Friederich, O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, 1ª edição, 1993, Cia. das Letras, São Paulo, p. 54.