domingo, julho 31, 2005

O Stalker - Capítulo 38

Clarissa voltou para a mesa alterada. O tédio tinha se transformado em pura excitação. A aparição sobrenatural de Renato causou um grande efeito nela. Naquele momento, sua vontade era mergulhar nos braços de Renato e cair fora da chatice em que se encontrava. Mas jamais faria isso com o Penza, o melhor namorado que tivera, que não tinha culpa nenhuma de ter aquele irmão mala. Quando chegou na mesa, algumas pessoas estavam ali rodeando o Penza e querendo falar com ele, que não fazia o tipo comum de músico de bar. Ele era jovem demais, estiloso demais, charmoso demais e seu instrumento aparentava ser caro demais, para um músico de bar. Fora o repertório, também chique demais. Além de alguns fãs de jazz, algumas moças bronzeadas vestidas em fino estilo praiano também começaram a rodear a figura. Clarissa sentiu que era hora de defender o território e passou a fazer o papel de primeira dama do Penza, o que fazia muito bem para o seu ego. Aquele príncipe tinha uma princesa à altura.

Pensava que Renato estava escravizado e faria tudo que ela quisesse, quando ela quisesse e se ela quisesse. Largou a mulher em São Paulo só para vê-la, sabendo que não tinha nenhuma chance. Era um pouco demais, um pouco esquisito, o cara deveria estar um pouco fora de controle para fazer aquilo, apesar de parecer tão calmo e sensato. Não lhe parecia certo. E ela ainda não obtivera as informações que ela achava essenciais para averiguar a firmeza do terreno. Fazer tudo aquilo não era normal. “Será que ele tem problemas?”.

Penza se empolgou com a atenção recebida, e teve certeza que haveria uma terceira entrada. Depois de duas horas tocando, estava naquele ponto em que não precisava fazer mais qualquer esforço. Tinha toda a liberdade do mundo, podia acelerar e reduzir o tempo à vontade para fazer caber qualquer frase que tivesse vontade de tocar. Ouvia a seqüência de acordes de cada tema em sua cabeça sem precisar tocá-los, e transitava do tema ao improviso sem risco de se perder, em alguns momentos se dando ao luxo de conduzir a harmonia com um walking bass, controlando o tema e contrapondo-o ao improviso, que fazia desmontando os acordes em várias melodias aparentadas com o tema. Sentia-se um Bach com suas variações, e estava em outro mundo, onde não havia mais ninguém. A audiência era a prova em espelho de que ele existia e era ele que estava fazendo aquela música excelente. Sentiu que não podia parar, para que a magia não se quebrasse, e depois de cinco minutos atendendo os outros com sorrisos e sem ouvir o que estavam falando, voltou correndo para sua guitarra, ainda em estado de absoluta concentração. Clarissa ficou solta novamente, e percebeu que para Penza, naquele momento, ela simplesmente não existia, e no transe em que ele estava, as outras mulheres não ofereciam nenhum risco. Pelo menos até ele parar de tocar. O senso de diversão falou mais alto e ela foi lá ter com o Renato.

Dessa vez, quando Renato percebeu a aproximação de Clarissa, desceu do banquinho para facilitar o contato físico. Não tinha jantado, só comido uma porção de lula à provençal, e passado tanto tempo, depois de tudo que já tinha bebido e com a excitação do encontro também estava num estado de consciência alterado. Antes de Clarissa encostar, aproveitou que o barman passava na sua frente e pediu dois Drambuie. Se ela não tomasse, tomava ele. Foi logo segurando os braços de Clarissa e tentando puxá-la para si. Renato sentiu que ela retesava os músculos rijos quando segurou os antebraços dele, mantendo à distância. A moça era forte, e ele teria que fazer muito mais força se quisesse agarrá-la contra a vontade. Clarissa deu risada e falou em seu ouvido: “você tá louco se acha que eu vou deixar você me agarrar aqui”. Renato de bate-pronto respondeu: “vamos lá fora”. Clarissa caiu na gargalhada e Renato emendou, mudando de assunto: “você quer um licor?” “Que é que é isso?”. “Drambuie, gosta?” E ficaram lá bebericando e falando bobagem. Clarissa sentiu que não havia clima para uma entrevista de projetos, sonhos e aspirações, e ficou só naquela deliciosa provocação.

Penza, a essa altura, estava começando a passar do ponto, atacando complicados e pouco palatáveis temas de bebop em alta velocidade, à medida que o restaurante esvaziava. Depois de dez minutos tocando uma algaravia que só ele conseguia acompanhar, na primeira pausa o dono do lugar foi lá e convidou-o a tomar um drinque com ele. Penza estava tomado mas não era burro, e aceitou. Clarissa já tinha dispensado Renato e estava lá a postos na mesa. Sua ausência não tinha sido notada. Tomaram licores e café, Penza guardou rapidamente o pouco equipamento que tinha, e foram embora.

Renato foi antes deles, e maldizia sua sorte com aquele amor impossível. Tinha conquistado a mulher da sua vida e não podia tê-la. Aquilo não estava certo. Sua vontade era fazer como os homens pré-históricos dos desenhos animados. Pegá-la pelos cabelos e arrastá-la para sua caverna, mesmo que tivesse que usar a sua clava. Mas isso também não estava certo. Ela tinha que vir de livre e espontânea vontade, e ele tinha certeza que ela tinha essa vontade. Era só uma questão de paciência e perseverança. No estado de excitação em que estava, não podia simplesmente ira para a pousada e dormir. Aproveitando estar oculto no carro filmado de Fernanda, resolveu descobrir onde eles estavam. Parou depois do morro, na primeira entrada do Camburi, apontou o carro para fora na posição de quem do Camburi entra na estrada e esperou, angustiado e incomodado com o que estava fazendo.

Dali a uns quarenta minutos viu o carro do Penza passando vagarosamente pela estrada. Ligou o carro, esperou que ele se distanciasse uns cem metros e saiu atrás dele. O carro de Penza sumiu na primeira curva. Quando Renato a contornou, viu o carro de Penza ainda na sua frente. Dali a um pouco, acenderam-se as luzes de freio do carro de Penza e ele virou à direita. Renato acelerou, e chegou a tempo de ver o carro de Penza sumindo lá na frente, na estradinha de terra. Renato foi devagar atrás dele, seguindo a poeira levantada pelo carro de Penza que batia nos faróis. De repente fez uma curva e viu que Penza freava o carro, e pela duração da freada percebeu que ele estava estacionando. Freiou forte ao mesmo tempo em que desligava os faróis, e estacionou de qualquer jeito. Abriu o porta-luva, que possuía uma luz interna, e se conhecia bem Fernanda encontraria lá uma lanterna. De fato, encontrou lá uma lanterninha chaveiro em perfeito funcionamento. Foi atrás deles, que estavam com uma lanterna só e caminhavam em silêncio e devagar. Renato seguiu-os com a lanterna desligada, tropeçando no piso irregular, no escuro completo da trilha ensombrada pela mata.

O Stalker - Capítulo 37

Não que Clarissa não gostasse de ver o Penza tocando jazz. Muito pelo contrário. A visão do músico entregue à sua arte, dedilhando com habilidade o bonito instrumento artesanal de madeira guarnecido com peças de metal reluzentes e o braço de ébano cravejado de madrepérola, marcando o tempo balançando o corpo e produzindo um som quente e redondo, cativava-a completamente. E ela ainda achava o Penza charmoso e sexy. Adorava o seu estilo largado com bom senso e originalidade, e o seu cabelo alto, enrolado e espetado. Os temas que ele tocaria, clássicos standards do cancioneiro norte-americano e alguns da bossa-nova brasileira, eram familiares e agradáveis. Mas o fim-de-semana estava decaindo vertiginosamente.

Chegaram em casa no fim da tarde, no auge do horário dos borrachudos, abundantes na mata mesmo no outono. Não havia repelente que chegasse. Danilo, que não parara até então de tomar cerveja, trancou-se no quarto certamente para cheirar mais uma, e ao sair, tratou rispidamente Cristininha, exortando-a a arrumar a casa de maneira no mínimo indelicada. Clarissa, que não desenvolvera nenhuma simpatia por Cristininha, por algum motivo que nem ela entendeu partiu em sua defesa, e enfrentou Danilo com argumentos inteligentes e ponderados. Danilo respondeu atravessado e quebraram um puta pau. Penza tentou por panos quentes apelando para piadinhas sem graça, e foi ignorado por Clarissa e Danilo. Cristininha, nervosa, pôs-se a arrumar a casa mecanicamente, o que irritou Clarissa mais ainda, pois percebeu que estava sozinha contra aquele idiota. Subiu ao mezanino, pegou sua toalha, sua necessaire e trancou-se no banheiro, disposta a ficar ali o tempo que fosse necessário para se acalmar e fazer sua longa toalete: fez cocô, tomou um banho demoradíssimo em função da pouca água que saía do chuveiro elétrico, lavando a cabeça com duas mãos de xampu e duas de condicionador. Penteou os cabelos minuciosamente, passou hidratantes e cremes por todo o seu corpo, pôs desodorante, escovou os dentes, passou fio dental, e ninguém ousou bater na porta. Quando saiu a casa estava um brinco e o Penza estava encordoando o seu instrumento, sentado no único sofá. Viu aquela menina linda enrolada na toalha subindo a escada de inclinação exagerada e aparência instável, sentiu a deliciosa mistura dos diversos aromas do xampu, sabonete e cremes, e ficou tentado a agarrá-la naquela hora. Mas não tinha muito tempo e não sabia como ela iria reagir depois da briga. Tinha que acabar de encordoar, afinar, dar uma passada no repertório que não apresentava já há algum tempo, afinar de novo várias vezes até a tensão das cordas estabilizar e organizar suas partituras de acordo com as entradas que faria. E o mala do seu irmão e a namorada que estavam trancados no quarto, podiam sair a qualquer momento e estragar a festa. Era melhor deixar para de noite. Clarissa depois de se vestir pegou a toalha e a necessaire de Penza, arremessou-as lá do mezanino ao sofá e mandou-o tomar banho. Ela ficou estudando na cama. Penza acabou de encordoar, afinou, tocou um pouco, afinou novamente, pôs a guitarra cuidadosamente no estojo e foi tomar banho, evitando molhar muito a mão esquerda para que os seus calos não ficassem moles, pois queria praticar mais um pouco logo depois de sair do banho.

Uma hora mais tarde, quando já se preparavam para sair, Danilo saiu do quarto e pediu para esperarem um pouco que os dois se aprontariam em um minuto e iriam com eles, pois estavam sem carro. Clarissa olhou feio para Penza, que fez uma expressão “não tem jeito, somos hóspedes deles”. Penza voltou a praticar, Clarissa a estudar, e esperaram mais quarenta minutos, até que Danilo e Cristininha ficassem prontos. Foram em silêncio no carro até o restaurante, que já estava meio cheio. Penza montou suas coisas junto à parede do fundo, decorada com um grande mosaico de pastilhas de vidro com motivos marinhos. Só uma cadeira, a guitarra, um suporte para a guitarra e um pequeno amplificador. A estante e as partituras, apenas para não ter perigo de esquecer, pois sabia tudo de cor. Conforme tinha combinado com o dono do lugar, jantariam depois da primeira entrada, dali a uma hora. Se desse tempo e houvesse público, Penza pretendia fazer três entradas de uma hora. Os três sentaram numa mesa bem próxima de onde Penza iria tocar. Clarissa estava entediada de antemão, pois não pretendia conversar com o casal. Pediu uma caipirinha de sakê com kiwi, no que foi seguida por Cristininha. Irritada, mudou seu pedido para sakê com uvas. Danilo pediu um uísque com gelo. O atencioso proprietário da casa, amigo do pai de Penza, sentou-se para papear com os jovens por alguns minutos, ao que Clarissa deu graças a deus. Enfim um pouco de vida inteligente. Conversaram sobre o tempo, a praia, o restaurante, os pais de Penza, o Penza e sua música, até que chegaram ao cardápio. Aceitaram as sugestões que ele fez depois de indagar a cada um o que gostava, dos aperitivos até a sobremesa. E ele disse que coordenaria o tempo na cozinha para o jantar chegar exatamente dali a uma hora. O restaurante encheu quase completamente, e estava um ambiente festivo e acolhedor. Embora no geral não prestassem muita atenção ao Penza, havia alguns ouvintes atentos. Tomaram os drinques, comeram aperitivos, acabou a primeira entrada de Penza e jantaram todos, acompanhando os pratos com cerveja. Penza comeu pouco e rápido, e voltou para a segunda entrada. Clarissa acabou de comer vagarosamente e tentou entabular uma conversa com Cristininha, sem sucesso.

Renato entrou no restaurante e sentou num banquinho do balcão do bar, junto à entrada. Pediu um drinque que já tinha tomado lá, que era uma espécie de caipirinha de uísque Cutty Sark, quase incolor, feita com limão e laranja em proporções iguais, e reuniu as forças que tinha para enfrentar Clarissa. Lembrou da “cláusula de invisibilidade”, conceito que vinha trabalhando já há algum tempo nas suas divagações, um direito que se arrogara no e-mail que selou o pacto platônico, de poder fazer todo o necessário para contemplar Clarissa, ainda que não pudesse falar com ela. Pensou que aquela estupidez já tinha sido rompida com o telefonema da hora do almoço. A coisa era simples. Estava louco de vontade de vê-la e veio de São Paulo só para isso. Qual o problema afinal? Que mulher não gostaria de tal prova de amor? A ligação romântica entre eles ainda existia, e o papo mole do telefonema provava isso. Clarissa não o negaria.

Decorrida meia-hora da segunda entrada Clarissa estava enlouquecendo naquela mesa com aqueles dois seres torpes, como uma criança entediada presa ao banco da igreja durante uma interminável missa. Resolveu sem aviso nem motivo dar uma volta para espairecer, talvez ir até o deck da entrada para ver o tempo, olhar o céu, e examinar os bacanas que quase lotavam o restaurante. Renato percebeu que ela vinha vindo e fez uma pose displicente com seu drinque no banquinho do bar. Quando estavam à distância máxima para a certeza do reconhecimento recíproco, abriram ambos o maior sorriso do mundo e começaram a rir. Clarissa abraçou-o e cumprimentou-o com um beijo na face, e disse ainda rindo: “Você é louco? O que é que você está fazendo aqui? Você não estava em São Paulo, às duas da tarde quando falei com você?” “Eu tava louco pra te ver. Não aguentei.” “Perdeu a viagem. Estou aqui com o Penza.” “Não perdi nada. Só te ver já valeu”. E retomaram a conversa íntima e fácil que sempre tinham, protegidos da visão de Penza e os outros pelas pessoas que estavam em pé perto do bar, conversando com as sentadas nos banquinhos altos. Quando acabou a segunda entrada Clarissa disse “tenho que ir”, e voltou correndo para a mesa. Renato ficou ali, flutuando sobre o banquinho, com a cabeça nas nuvens.

sábado, julho 30, 2005

O Stalker - Capítulo 36

O guia 4 rodas trazia pouquíssimas informações úteis, só os restaurantes mais óbvios, e nenhuma orientação de comida barata onde poderia supor que jovens fossem comer. Renato resolveu ligar para o corretor Marcelo Julião, a quem conhecia de verdade há muito tempo, e dar foros de verossimilhança à sua estória quando voltasse. O pai de Renato, no início de sua vida profissional, antes do asfaltamento da Rio-Santos, tinha negociado muitos terrenos nas praias que eram de famílias caiçaras. A família Julião era uma dessas, e o avô desse corretor, conhecido como seu Julião, era um dos poucos que tinha segurado as terras e conseguido vendê-las por um preço minimamente justo. Mesmo assim o pai de Renato ganhara muito dinheiro legalizando os terrenos, com a transformação da posse em propriedade, e vendendo-os aos empreendedores imobiliários depois de asfaltada a estrada, em locais onde hoje existem condomínios de luxo. E o seu Julião também ganhara bastante, pois associara-se ao pai de Renato, que não tinha o capital necessário para comprá-los. Renato em criança chegara a enfrentar a arrrebentação em canoa conduzida pelo avô de Marcelo, um sólido e curtido pescador. Pouco restara de caiçara em Marcelo, agora um experiente corretor de imóveis que conhecia como ninguém o mercado imobiliário da praia. O corretor, que por força da profissão trabalhara duro durante todo o sábado, estava iniciando uma sessão de boteco em Juqueí. Não eram exatamente amigos, pois sua relação sempre fôra profissional. Renato lhe disse que estava começando a pensar em ter uma casa na praia, e queria um panorama daquela área. Foi encontrá-lo lá no tal bar.

Marcelo estava com dois amigos, um arquiteto e um marceneiro, que ficaram interessados na possibilidade de negócio com Renato. Marcelo discorreu durante uma hora sobre as questões políticas do município, os problemas decorrentes da distância do centro, as insistentes tentativas de liberar a construção de edifícios de apartamentos, abastecimento de água, esgoto, coleta de lixo, falta de escolas, o afavelamento dos sertões das praias, as construções ilegais em áreas protegidas nos morros e áreas de restinga, o aumento da criminalidade, furtos, assaltos e tráfico de drogas, tentando convencer Renato que não teria outra opção senão comprar uma casa dentro de um condomínio fechado. Os tempos românticos haviam acabado. Comentou lançamentos e revendas, e brincou que com aqueles dois transformaria qualquer casa num palácio, em pouco tempo. Renato foi ficando aflito com o tempo perdido, e se arrependeu de ter acionado o corretor, no fim, hipocritamente simpático e chato como todo vendedor em ação. Durante o longo discurso de Marcelo, ficou imaginando que outra hipótese a ser explorada seriam os lugares onde pudesse haver música ao vivo, o que atrairia o Penza para tocar ou ouvir. Perguntou a Marcelo onde costumava haver músicos tocando. Marcelo indicou alguns lugares onde se tocava pagode, um ou outro onde pequenos trios, duos, ou um cara com um violão tocavam mpb-pop-rock, e Renato achou que não faziam o perfil do Penza. Num fim de semana de outono, pouca coisa acontecia nas praias. Não teve como se informar sobre restaurantes de surfistas, o que Marcelo acharia estranho vindo dele. Despediu-se, combinando vagamente de se falarem no dia seguinte para verem alguma coisa, e começou sua pesquisa, pelo Juqueí mesmo, já que estava lá. Sabia que teria que contar muito com a sorte.

Renato achava que seria pouco provável que Clarissa e Penza saíssem de Camburi para ir jantar no Juqueí, então fez um busca bem superficial pelas duas avenidas mais importantes. Lembrava vagamente que o carro do Penza, que havia visto na noite do Sesc Pompéia quando foram à lanchonete, era uma perua preta com alguns adesivos de marcas de instrumentos musicais, e tentava reconhecer o carro estacionado. Passou pela Avenida Mãe Bernarda, a da praia, e a grande transversal que saía da estrada. Havia poucos lugares um pouco mais cheios, e estava fácil estacionar o carro. Deu uma atenção especial a uma pizzaria conhecida lá perto da entrada, e uma volta num pequeno shopping quase em frente a ela, onde tomou um cafezinho e foi embora. Encostou o carro no estacionamento que atendia dois restaurantes da Praia Preta, e deu uma rápida xeretada, pois estavam com pouco movimento.. Entrou na Barra do Sahy, e percorreu a sua longa e única rua calçada, olhando os poucos restaurantes em funcionamento. Queria dar uma olhada em um restaurante barato que havia no larguinho do final, e outro que havia na ruinha de areia estreita que saída de lá, que sabia serem freqüentados por moçada. Para não perder tempo, descartou os restaurantes das pousadas. Resolveu dar a volta na Praia da Baleia pelo asfalto, pois a estrada esburacada era chatíssima, e só servia para chegar ao caro restaurante Acqua, onde dificilmente eles estariam. No asfalto, ficou na dúvida em voltar ao Camburi ou ir direto até Maresias, olhar lá na movimentada lanchonete Legends. Já estava cansado e desanimado, achando que não teria qualquer chance de ver Clarissa naquela noite. Na praia, no dia seguinte, seria muito mais fácil. Achou que o hamburguer do Legends cairia bem, e resolveu tocar para lá. Não conseguiria dormir muito cedo de qualquer jeito, e assim mataria o tempo necessário.

Desceu devagar a inclinadíssima ladeira do morro entre Camburi e Boiçucanga, ponto perigoso da estrada, e lá embaixo diminuiu ainda mais a velocidade para olhar os carros, até que viu, perplexo, uma perua preta empoeirada, com adesivos coloridos nos vidros laterais e na porta traseira, parada do lado direito da estrada, apontando para o oceano, entre o Cauim e o Gendai Beach, que ficavam do outro lado da estrada com um estacionamento entre eles. Parou seu carro e foi olhar a perua de perto. A placa era de São Paulo e os adesivos faziam alusões a produtos musicais e jazz. Só podia ser o Penza. Atravessou a estrada e entrou no estacionamento que ficava entre os dois restaurantes. Pescoçava o japonês por cima do muro, que estava já aquela hora meio vazio, procurando Clarissa, quando ouviu suaves acordes vindos do Cauim. Foi até o muro do outro lado e viu através da janela lateral do restaurante, num plano elevado que havia no fundo do salão, do lado oposto ao que se encontrava, o cabelo crespo e espetado para cima de Penza, que concentrado e de cabeça baixa, olhando para o instrumento, harmonizava um tema tranqüilo de jazz. Foi andando para o fundo do estacionamento para ter uma visão das mesas próximas a Penza, e viu a inconfundível cabeleira fulva e ondulada de Clarissa, que estava sentada bem na frente do guitarrista, junto com um casal.

quinta-feira, julho 28, 2005

O Stalker - Capítulo 35

Clarissa preparou um sanduíche de peru, queijo de minas, alface e tomate, pegou um suco de goiaba, e pensou no que faria. Possivelmente, Penza e os outros ficariam até umas cinco horas na praia torrando e bebendo, e comeriam alguma coisa por lá para enganar. Lá pelas dez da noite, depois de uma soneca para curar a bebedeira, sairiam para jantar e começariam tudo de novo. Ficou com a impressão que quando Penza se juntava com Danilo, desandava, confirmando seu juízo dos almoços da casa de Penza. Cristininha, então, se revelara um zero à esquerda. Como ela agüentava aquele drogado agressivo? Resolveu tirar sua soneca naquela hora, enquanto o sol estava forte, e iria para a praia mais tarde, para se encontrar com o Penza. Achava que ele devia ter ligado, mas para não causar problemas desnecessários, telefonou para ele. O telefone de Penza tocou ali na sala mesmo, dentro da sua bolsa de praia. Óbvio. Pegou seu livro, subiu para o mezanino, arrumou a cama, e deitou-se debaixo do mosquiteiro, olhando o janelão aberto que dava para a mata. Cansada como estava, leu meia página e adormeceu. Acordou uma hora e meia mais tarde, pegou o carro e foi procurar os três patetas. Estacionou a umas duas quadras da praia, e eles estavam ali, exatamente onde os deixara, já um pouco alcoolizados. Penza e Danilo em suas cadeiras de praia, e Cristininha deitada na canga, não deixando transparecer se estava viva ou morta. Penza foi simpático e atencioso, oferecendo a cadeira a Clarissa, abraçou-a, beijou-a, disse que estava preocupado com ela, a ponto de ir procurá-la em casa do jeito que fosse. Lamentou estar sem o telefone, ofereceu-lhe uma cerveja gelada, que Clarissa achou melhor aceitar. Ou juntava-se a eles ou aquilo seria insuportável. Ela e Penza saíram andando pela praia, e ele explicou-lhe que o irmão se complicava quando não tinha onda, pois não sabia o que fazer, como gastar suas energias. A tarde estava linda, e Clarissa voltou a achar o fim de semana ótimo. Agarraram-se ali no canto da praia, e ficaram com vontade de trepar. Clarissa pensou como fariam isso naquele mezanino sem nenhuma privacidade, e discutiu a questão com o Penza. Não tinham como ir antes para casa, pois estavam num carro só, e aquela hora, provavelmente Danilo e Cristininha quereriam voltar com eles. Ia ficar para depois. Na volta para onde estavam os dois, Penza deu a boa nova: tinha encontrado na praia um amigo da família que tinha um conceituado restaurante em Boiçucanga, e que o convidara para tocar. Jantariam por conta da casa, e ainda receberia um cachê razoável. Estava animadíssimo em apresentar os números solo que tinha tão arduamente trabalhado em Berkelee. Tinha umas três horas de repertório. Clarissa voltou a achar o fim-de-semana apenas bom.

Renato pensou rápido. Junto com os gibis de Renatinho, comprou um guia 4 rodas. Ligou para o seu pai, e disse que tinha tido a notícia de um excelente terreno “galinha morta” na praia, queria ir lá ver o negócio e tinha que ser nesse fim de semana mesmo. Disse que estava indo para casa e pediu que ele ligasse dali a uma hora, que daria mais detalhes, deixando seu pai curioso. Guardou o guia no porta-luvas do carro antes de voltar para a casa dos sogros. Saiu de lá assim que conseguiu, e em casa ficou esperando seu pai ligar. Quando tocou o telefone, esperou que Fernanda atendesse e o chamasse. Daí ficou fácil fazer parecer que o pai o convocava para uma viagem de negócios à praia. Disse ao pai que podia ir sozinho, não tinha problema nenhum, que se encontraria com o advogado e o corretor à noite num restaurante, se hospedaria numa pousada, de manhã veria a propriedade e estaria de volta na hora do almoço. Era um encontro sigiloso, melhor não comentar com ninguém. Era necessário averiguar, apesar de estar um pouco cético quanto à realidade do que lhe dissera o corretor Julião, seu conhecido de longa data, neto de caiçaras que foram grandes posseiros daquela área. Se fosse verdade, havia possibilidade de ganho rápido. O vendedor estava acossado por credores que não sabiam ainda da existência da propriedade, pois não tinha título registrado em seu nome. Seu pai disse-lhe que não fechasse nada sem falar com ele. Apesar do negócio ser uma mentira, Renato irritou-se. De qualquer jeito, estava criada a urgência. Falando em dinheiro grosso, Fernanda aceitou. Lamentou mas disse que pediria auxílio de sua mãe para cuidar das crianças.

Renato fez uma malinha mínima e disse que ia com o carro da Fernanda, pois o seu estava na hora de trocar o óleo. Achou que era prudente ir com o carro que Clarissa não conhecia, que ainda tinha um filme nos vidros mais escuro que o do seu carro. Às quatro horas estava livre na estrada, excitado com a clandestinidade e a caçada que se iniciava. Acostumado a viajar com a equipagem de explorador antártico que as crianças exigiam, sentia-se leve só com a malinha jogada no banco de trás, como no seu tempo de solteiro. Sabia que podia não dar em nada, talvez ficasse só vagando por lá à toa, mas a mera possibilidade longínqua de comer Clarissa era estímulo mais que suficiente para a empreitada. Pôs o famigerado cd que gravara para Clarissa e sentiu vontade de gritar de novo “platônico é a mãe”, o que teria feito se estivesse pelo menos um pouco bêbado. Seu plano era simples e científico. Vasculharia os restaurantes da Barra do Sahy até Boiçucanga, à procura de Clarissa. Se a encontrasse, veria o que faria. Sabia que havia um problema. Tinha medo de assustar Clarissa com sua presença inopinada, pois ficaria óbvio que teria vindo à praia atrás dela. Quando se falaram ao telefone, tinha ficado claro que ela estava com o Penza, e não teria sentido nenhum ele aparecer por lá. Não tinha idéia nenhuma para suprir essa grande lacuna do seu plano, mas a sensação de liberdade e a adrenalina da caça, a vontade de pelo menos ver Clarissa na praia de biquini, eram irresistíveis para ele. Quem sabe ela não teria uma briga terrível com o Penza, e ele surgiria do nada como um salvador? Já tinha a estória do negócio pronta mesmo, que poderia ser usada também para explicar sua aparição, se bem seria difícil fazer colar. Porque não teria lhe dito antes? E assim maquinando e sonhando, dirigindo um pouco acima do limite na estrada sem trânsito do sábado à tarde, em menos de duas horas estacionava o carro numa pousada no Camburizinho. Conseguiu um apartamento e foi trocar a roupa semi-social adequada para uma reunião de negócios no litoral por uma realmente praiana. Pegou seu guia, papel e caneta, sentou numa mesa à beira da piscina, pediu uma caipirinha de vodka e começou a fazer o roteiro dos restaurantes. Por um momento sentiu-se ridículo, entornou o seu drinque e pediu outro. A sensação passou.

O Stalker - Capítulo 34

Nada de Clarissa. Nenhum e-mail, telefonema, mensagem instantânea, nada. Porque não respondeu ao e-mail, se perguntava Renato distraído, enquanto almoçava na casa da sua sogra, sentado na frente da própria que falava com ele. Não compreendia nada do que ela lhe dizia e no momento em que ela terminava a longuíssima frase Renato se tocou que teria que dizer alguma coisa sobre ela. A única palavra que entendeu foi a última que ela disse: “... Paris?” e ele percebeu que a entonação era de uma pergunta. Não soube o que dizer, concordou com a cabeça e elogiou a comida. Os convivas, os pais de Fernanda, sua irmã, o marido e Fernanda se entreolharam com espanto, e Fernanda interpelou-o: “Renato, a mamãe está falando com você!”, olhando-o como se ele tivesse cometido um homicídio. “Desculpe, D. Leonor, eu estava lembrando do meu acidente”, improvisou com ar de veterano de guerra lembrando do front. Começou a repassar mentalmente o e-mail tentando localizar qual teria sido o erro fatal. Teria sido a piada do “strip-poker”? Será que ela tinha achado que estava propondo sexo virtual, de ficarem os dois se masturbando simultaneamente cada um olhando o outro por uma web-cam, e falando obscenidades naquele microfoninho vagabundo, ou pior, teclando ao mesmo tempo? Como fariam com as mãos? Ridículo, só quem gosta disso é homem, está cheio de garotas que fazem isso para ganhar dinheiro, jamais daria certo para um casal platônico. E estava assim divagando quando o quase grito de Fernanda tirou-o do transe: “RENATO! O papai está pedindo o galheteiro!” Desculpou-se de novo, passou o galheteiro e voltou para o seu mundinho, pensando que medida tomaria depois do almoço para saber o que estava acontecendo.

Clarissa já estava na praia há quatro horas e nada do Penza. O sol estava calcinante e já não tinha mais nenhum proteção. Estava já queimada de sol, cansada e ainda salgada. Teve que se abrigar embaixo de uma árvore, entediada por não ter nada para fazer. Não ia embora porque o Penza chegaria a qualquer momento e estava sem ânimo para voltar a pé para o sertão. A praia agora estava cheia, e os surfistas, na ausência total de ondas, jogavam frescobol e azaravam as meninas. Clarissa já tinha sido abordada algumas vezes, mas aqueles seres monossilábicos decididamente não lhe atraíam, apesar do físico saradão. Quando viu o Penza de longe, branquelão com o cabelo espetado para cima, carregando uma cadeira de praia, junto com o Danilo e a Cristininha, logo percebeu que ele não trouxera sua bolsa, como aqueles itens essenciais para sua sobrevivência naquele ambiente hostil. Quanto mais ele se aproximava, Clarissa, já com a certeza da falha imperdoável, mais irritada ficava. Foi em direção a ele, e sem cumprimentar ninguém fuzilou: “Penza você esqueceu minha bolsa!”. Danilo caiu na gargalhada, o que a enfureceu mais ainda. “Dá aqui a chave do carro.” Penza se ofereceu para ir buscar, mas ela, arrancando a chave da mão dele falou rispidamente. “Não precisa!” E foi embora pisando duro. Chegando lá, olhou para aquela bagunça com um certo nojo, pegou sua toalha e foi tomar uma ducha no chuveirão que havia lá fora. Debaixo da água abundante e fria, no meio da mata exuberante, naquele lindo dia de outono, Clarissa se acalmou e voltou a gostar de estar ali.

Logo no fim do almoço, Renato anunciou que sairia um minuto para comprar gibis para o Renatinho, alegando que “esse garoto não larga esse vídeo game”. Contra argumentaram que ele não sabia nem ler, mas Renato insistiu que qualquer coisa era melhor do que isso. Excitou a criança, pegou-a pela mão e foram os dois para a banca ali perto. Fez tudo isso só para que tivesse a oportunidade de ligar para Clarissa.

Quando Clarissa estava acabando de se secar, tocou o seu celular. Correu para pegá-lo lá dentro e logo reconheceu o número. Resolveu atender, pois estava achando que o Penza e aquele idiota do irmão dele não valiam um ovo podre. Era Renato, com sua voz baixa e íntima. “... Ah, você tá na praia, como é que está aí”. “Tá ótimo, está um dia maravilhoso”. “Que praia que é?” “Camburi”. “Que delícia...” E embalaram naquele papinho furado no qual já tinham bastante prática, enquanto Renatinho bagunçava as revistas. Renato já sabia o que precisava e o que iria fazer.

quarta-feira, julho 27, 2005

O Stalker - Capítulo 33

A casa onde iam ficar na praia era no Sertão do Cacau e pertencia ao irmão surfista do Penza. Viraram do lado esquerdo da estrada, num pequeno casario que havia numa ruinha de terra. Andaram um pouco, deixaram o carro lá, Penza deu uma lanterna a Clarissa e foram pelo escuro, com as malas e os mantimentos na mão. Clarissa conhecia o irmão do Penza dos almoços de família, mas nunca tinha ido até essa sua casa de praia. Depois de uma caminhada que durou bem uns penosos dez minutos por uma trilha no meio das árvores, chegaram. Danilo estava lá com a namorada Cristininha, e os recebeu efusivamente. Clarissa percebeu que ele estava completamente louco. A casa cheirava mofo e maconha e ele provavelmente tinha cheirado cocaína, o que dava para notar por sua exagerada loqüacidade e simpatia artificial. A casa era muito simples, mas tinha lá a sua graça. Um quarto, um banheiro, uma sala misturada com a cozinha e um mezanino em cima do quarto e banheiro, onde Penza e Clarissa dormiriam. Penza, Danilo e Cristininha fumaram um baseado e os quatro tomaram cerveja em lata, que parecia haver em grande quantidade naquela casa. Danilo tratava Cristininha de forma um pouco ríspida, o que irritou Clarissa, que imediatamente começou a se sentir desconfortável. Assim que deu foi dormir no mezanino empoeirado, com medo de bichos peçonhentos, e ficou ouvindo os irmãos conversando, bebendo e cheirando. Pediu para desligarem a música no que foi parcialmente atendida. Cristininha estava lá mas não abria a boca. Dormiu e nem viu quando Penza foi para a cama.

Quando Fernanda chegou em casa carregada de sacolas de compras, lá pelas nove, Renato já sentiu uma leve ereção, pois sabia o que ia acontecer. O vinho, do bom mesmo, já estava aberto há algum tempo em cima da mesa. Esquentaram o jantar no microondas, e tiveram lá o seu momento romântico. Renato se lembrava como aquilo começara e achava um pouco esquisito e doentio, mas adorava todas as vezes que acontecia. A primeira vez foi quando combinaram de se encontrar no shopping onde Fernanda trabalhava, e ele chegou já meio bêbado de um happy hour. Renatinho tinha um ano e vinham saindo muito pouco desde que o nascimento dele. Estavam felizes da vida. Renato foi tomado de uma irresponsável generosidade e foram às compras, escolhendo roupas para Fernanda com volúpia e prazer. Renato atiçava, fazendo elogios à sua beleza cada roupa que ela experimentava. Desde então, aquela mecânica se repetia em um intervalo de três a seis meses, mais ou menos, dependendo de como andavam as finanças de Renato, sem a sua presença, só com a sua autorização para Fernanda detonar o cartão de crédito até uma certa quantia, que ela sempre excedia em quase o dobro. Depois do jantar, Fernanda já relaxada pelo vinho foi experimentar as roupas que comprara para mostrar a Renato, e entre uma saia e um jeans, Renato comeu sua bundinha usando como lubrificante o óleo de camomila do bebê.

Clarissa acordou lá pelas oito, livrou-se do Penza que a agarrava dormindo, encoxando-a de pau duro, afastou o mosquiteiro, pôs um biquini e um short, seus tênis de corrida, um dinheirinho no bolso e pegou seus oclinhos de natação. Besuntou-se de protetor solar, comeu uma granola com leite e banana, deixou um bilhete para o Penza levar a sacola de praia já preparada com livro, canga, protetor, pente, etc., e chispou para a praia. Estava um lindo dia e a mata de manhã, com passarinhos coloridos e jaqueiras com perfume enjoativo, estava linda. Atravessou trotando uma meia favelinha, a Rio-Santos, e foi passando pelas ruas empoeiradas de terra até chegar na praia. Não tinha nenhum vento, e o mar estava calmo, liso como um espelho, praticamente sem nenhuma onda, e a praia ainda quase totalmente vazia. Tirou o tênis, o short, enfiou num saquinho de tela que levara num bolso do shorts, jogou num canto junto à cerca de bambu da frente de uma casa, pôs os oclinhos e nadou a praia inteira, primeiro em direção sul, contra a corrente, e depois em direção norte. A volta demorou pouco mais de dez minutos. Saiu do mar, comprou uma água de coco numa barraquinha que acabava de ser montada e sentou-se na areia, deslumbrada com a beleza da praia.

terça-feira, julho 26, 2005

O Stalker - Capítulo 32

Fernanda ainda não sabia nada sobre a vida dupla que Renato vinha levando, mas tinha certeza que havia algo errado, e só podia ser outra mulher. Mas nada havia de concreto, a não ser os telefonemas do terracinho, que não eram nada conclusivos. As poucas atrasadas de Renato não significavam uma alteração drástica de comportamento, pois aconteciam de quando em quando, atribuídas ao excesso de bebida com os amigos. Quando inquirido sobre a última noite que fizera isso, foi o que previsivelmente alegou. Quando ela insistiu, perguntando onde tinha ido, ele afirmou com a convicção desafiadora dos inocentes que não importava, e que ela não tinha nada com isso. Ela percebeu que ele queria a desavença, e resolveu, por hora, tirar o time de campo, e arrependida de ter puxado o assunto, ficou de orelha em pé.

Renato tinha aproveitado muito bem o seu infortúnio para desviar o foco dos motivos da crise instaurada imediatamente antes, e vinha sustentando que a alteração do seu comportamento se devia ao acidente. Via o mundo agora sob outra perspectiva, dizia, e estava procurando um novo rumo para sua vida. Não tinha comentado nada com Fernanda sobre a forte possibilidade de receber uma grana alta, porque contava com ela para viabilizar sua separação, caso tivesse a felicidade de conquistar Clarissa de forma duradoura. Antevendo as vacas gordas que se aproximavam, passou imediatamente a ser mais liberal com dinheiro, com o cuidado de não alterar significativamente o seu padrão de vida para não complicar o jogo mais tarde. Na tarde daquela sexta-feira completou sua pequena adega com vinhos um pouco mais caros do que habitualmente, achando que sua mulher tinha poucas condições de os avaliar. Telefonou para Fernanda na loja, e autorizou que ela gastasse uma certa quantia em artigos supérfluos que já há algum tempo ela dizia estar precisando. Esse tipo de extravagância sempre deflagrava um joguinho amoroso do casal, e Fernanda ficou animada com as compras e a possibilidade de trazer Renato para perto de si novamente.

Clarissa ainda não respondera o seu e-mail, e ele nada podia fazer. Estava sentindo alguma repugnância de si próprio por ter ido tocaiá-la na escola de inglês, e esperava que ela não tivesse percebido a sua presença, apesar de ter notado que ela olhara de relance para o carro na hora em que subia a escada da entrada. Arrependeu-se de ter invocado a cláusula da invisibilidade no seu último e-mail, e achou que isso poderia espantá-la. Resolveu que diria que tinha sido uma piada, e explicaria com o paralelo do livro de Julio Verne, achando que o joguinho cerebral pudesse ser um bom assunto. E por falta de coisa melhor para fazer foi até a delegacia para ver se alguma coisa tinha sobrado da sua bicicleta, para retomar os seus esportes e ter de volta o ótimo pretexto para ir até a casa de Clarissa. A sua fisioterapeuta já tinha autorizado o uso da ergométrica no clube, e em pouco tempo estaria pedalando nas ruas novamente. Na delegacia da Lacerda Franco, preencheu uma extensa papelada, e depois de uma hora e meia lhe entregaram os restos da bicicleta, que não estava tão estragada como imaginara. O quadro, o mecanismo do câmbio, a roda e freios traseiros, podiam ser aproveitados. Em vez de ir direto para casa não resistiu e deu uma passadinha pela porta da casa de Clarissa. Em casa, Fernanda ainda não tinha voltado das compras, e Renato preparou um uiscão, pôs um disco do Bach inglês para criar um clima, e pôs-se a ler “Ligações Perigosas” de Choderlos de Laclois, para aprimorar sua técnica de ataques epistolares.

Clarissa nesse momento estava com o Penza na estrada, indo para um fim-de-semana em Camburi. Tinha lido o e-mail de Renato, e achado um pouco pesado e complicado. Sua dúvida quanto a ser ele naquele carro parado na porta da escola de inglês aumentou, e ela ficou com a sensação de estar entrando numa bela roubada. Estava feliz da vida por estar com seu namorado ótimo, em um programa ótimo, com metereologia favorável, apesar do jazz barulhento e chato que tocava. Preferiu não discutir com o Penza para mudar o cd.

domingo, julho 24, 2005

O Stalker - Capítulo 31

A primeira coisa a fazer era responder o e-mail de Clarissa. O peixe fisgara, e agora tratava-se de lutar com paciência, força e calma, para trazê-lo para o barco, sem deixar escapar o anzol ou romper a linha com um movimento brusco ou errado. Achou que o melhor caminho era ser completamente sincero, como ela propunha. Mandou o e-mail que Clarissa só leria à noite, depois da aula de inglês:

“Clarissa

Depois de quarenta dias trancado em casa, em mau estado físico, com dores, e humilhações decorrentes da falta de autonomia, sem que você respondesse os meus e-mails, fui ficando preocupado com a idéia de nunca mais te ver. Então, fui baixando minhas expectativas de realidade e aumentando as fantasiosas, como você deve ter notado. A proposta de mantermos uma ligação à distância esta de pé e é verdadeira. Aceito o contrato em todos os seus termos, porque não posso recusá-lo. Meia Clarissa é melhor do que nenhuma. Mas você não pode imaginar o meu grau de frustração ante sua declaração na porta do banheiro. Ainda bem que você evaporou instantaneamente. Reagi muito mal, e prefiro não dizer o que fiz, mas se você quiser saber eu conto. Depois da imperdoável omissão do meu estado civil – que nunca me foi perguntado, mas não importa – não haverá mais segredos, nem os fatos que eu imagine que você queira saber serão evitados, para o bem e para o mal. Assim interpreto a sua última cláusula. Vamos nos comunicar além da confissão, jogar nosso strip-poker aberto, sem espaço para o blefe. Continuo a dizer que eu quero tudo, e tudo que você quiser você terá, dentro dos limites delineados pela existência dos meus filhos, quanto ao tempo que um pai deve dedicar à sua criação, e os recursos necessários. Não tome essa afirmação como uma proposta de relacionamento de longa duração, pois não é, e seria ridiculamente prematura. Nem nos conhecemos ainda. Digo isso apenas para que você não considere a nossa ligação como um beco sem saída. Temos todo o futuro que quisermos, se quisermos e quando quisermos. Mas se eu pareço insistente, é porque eu acredito, eu sinto, eu tenho uma fé irracional de que a parceria com você é a oportunidade de uma vida. Não me pergunte o porquê, eu não saberia responder. Mas sempre bastará que você estale os dedos, que eu desaparecerei e remanescerá da nossa ligação apenas a curva estelar mencionada pelo Frederico. Jamais admitiria ser um incômodo. Ainda interpretando os termos fixados por você, caso eu sinta um impulso irresistível de contemplar sua singularíssima pessoa, farei todo o esforço necessário para isso, ainda que eu concorde em não nos cumprimentarmos. Não posso aceitar é a sua afirmação de nosso amor já está realizado. Mas essa discussão fica para depois, mesmo porque tenho dificuldade de aceitar esse conceito, que eu não compreendo.

Renato”

Fernanda tomara a iniciativa de cancelar a matrícula de Renato, e receber o reembolso parcial das mensalidades, apoiada numa impossibilidade de freqüência irrecusável, o acidente de Renato. Mas Clarissa deveria continuar freqüentando. Renato, ao sair do trabalho, foi fazer campana na entrada da escola, para ver Clarissa passar. Chegou um bom tempo antes da aula, e deu algumas voltas no quarteirão até encontrar uma vaga com uma boa visão da entrada, e uma razoável distância. Lembrou de levar uma máquina fotográfica para tirar fotos de Clarissa, mas achou que já bem entrado o outono, às sete da noite não haveria luz suficiente, daquela distância para fotografá-la.

Clarissa, enquanto se dirigia para escola de inglês, tinha descido do ônibus e caminhava os poucos quarteirões que faltavam, admirando o lindo crepúsculo e pensando que não seria nada mal estar na praça com Renato. Somente quando já estava subindo os degraus da entrada é que notou o carro dele estacionado a uns quinze metros de distância, do outro lado da rua, e pôde ver um vulto dentro, que correspondia ao seu porte. Achou que só podia ser um carro igual ao dele, mas a idéia de que ele pudesse estar seguindo-a não foi nem um pouco agradável.

sábado, julho 23, 2005

O Stalker - Capítulo 30

Renato amanheceu pensando em uma das condições impostas por Clarissa, que o preocupou particularmente. Se a relação platônica interferisse na vida terrena seria rompida, isso significando que não poderiam nem se cumprimentar, mesmo se se encontrassem por acaso. Lembrou de um Julio Verne que lera na adolescência, “Tribulações de um chinês na China”, que conta a estória de um entediado milionário chinês, para quem a vida não tem mais sentido devido a uma desilusão amorosa, e contrata um assassino para matá-lo. A condição do contrato perverso era que ele não poderia ser desfeito nem se o contratante quisesse. Desfaz-se o desencontro amoroso, fruto de um engano, e a aventura se desenrola com o casal fugindo do implacável perseguidor. As condições de um e outro contrato eram simetricamente opostas. O de Clarissa, se romperia pelo simples contato. O do chinês, não se quebraria nem com a súplica desesperada. E havia outro efeito especular entre os contratos. Enquanto o chinês não podia se deixar ver pelo assassino, para que esse não lograsse seu terrível dever, Renato poderia circular livremente diante de Clarissa sem que ela pudesse reclamar, nos termos da cláusula por ela mesma proposta, desde que não lhe dirigisse a palavra. Concluiu que isso podia ser explorado de alguma forma.

Chegando ao escritório, resolveu tentar uma última cartada, e mandou-lhe um e-mail: “Como despedida, e para celebrar o contrato, que tal vodka e caviar no fim da tarde, na Praça do Pôr do Sol?”. Estava um dia lindo e ele achou que seria um convite irresistível: sofisticado e caro em homenagem à moça; descompromissado e aventuroso, por ser ao ar livre, e não num restaurante, remetendo ao encontro que ela marcara na Conde de Barcelos; fugia da obviedade do champagne, evocando a misteriosa Rússia, e com teor alcoólico suficiente para vencer qualquer resistência de Clarissa. Uma combinação simples e perfeita. Ficou tão empolgado com o plano que teve a pachorra de digitar toda a longa frase em uma mensagem de celular, pois ela talvez não checasse os e-mails durante o dia.

Clarissa também acordou pensando no estranho contrato, tentando entender suas próprias razões para entrar nessa história. Lembrou que ela tinha ido atrás de Renato, depois de obter seu telefone com o Wagnão no parque. Considerou que já tinham trepado, então não podia mais ser só aquela coisa babaca do cara que come só para fazer mais uma marca na carabina. E ela tinha se identificado profundamente com as dúvidas de Renato sobre a existência e a natureza do amor, aparente ou verdadeiro, e os seus aspectos psicológicos e fisiológicos. A admiração que ele dizia ter por sua inteligência lhe parecia sincera, e a agradava muito. Os quarenta e-mails que lhe mandara durante sua convalescença revelaram uma vida interior rica e inspirada, com observações valiosas sobre o mundo e os humanos, coloridas por referências de cultura logicamente articuladas, e não meramente gratuitas, principalmente sobre a singularíssima pessoa, como ele dizia. Surpreendente para um tipinho como Renato, sem nada digno de nota. Uma profissão besta, puro ganha-pão, uma confortável vidinha pequeno-burguesa com seus filhos e a mulher traída, e só. Não seria um cara frustrado procurando diversão? Teria sonhos e ambições de fazer algo de bom da sua vida ainda? Concluiu que era isso que ela precisava descobrir. Quando recebeu a mensagem no meio da aula, ficou impressionada com o convite sedutor e hesitou até o fim da aula. Mas lembrou que já havia vacilado uma vez, e achou que as conseqüências do encontro, se acontecesse, seriam bastante previsíveis. Estava na hora de mostrar que tinha personalidade, senão Renato folgaria para sempre.

Pouco depois do meio-dia o telefone de Renato vibrou indicando o recebimento de mensagem, e ele reconheceu, agitado, o número de Clarissa. Estava lá a mensagem: “nao. fechado porta banheiro. telefone nao pode. bjs.”

Pecus mata a cobra, e mostra a cobra morta (e não o pau, como uns e outros)

Ante a incredulidade geral de que Clarissa, nos seus vinte anos, poderia ter escrito o e-mail do capítulo 29, e a despeito de eu ter insistido, sem convencer ninguém, que jovens lêem Nieztsche e fazem esforço para parecerem eruditos, dei um google por "amizade estelar", o nome do aforismo contido no "Gaia Ciência", ao que consta dirigido a Wagner, e achei uma PROVA no blog de Luís Ene, de que tal fato é possível na vida real, que sempre supera a ficção: "Amizade estelar" FOI citado por uma mui jovem "princesa agridoce", como disse o blogueiro do seu primeiro amor, preparando a dispensa do rapaz. Vejam que incrível. Obrigado, Luís Ene, quem quer que você seja e onde quer que esteja, agora sou seu amigo estelar: "Li este texto pela primeira vez há muitos anos, no tempo longínquo do meu primeiro amor, e foi precisamente a minha agri-doce princesa de então que me o ofereceu, de certeza na antevisão que pouco tempo depois iria partir o meu coração."
E antes que alguém diga que o conceito não se aplica à hipótese de Clarissa, em defesa da minha heroína digo que, se no caso de Wagner e Nietzsche a amizade estelar implicava numa total ausência de contato, mesmo por correspondência, pois estavam rompidos, a transposição é razoável no caso de Clarissa e Renato, ao chamar de amizade estelar o relacionamento amoroso sem sexo. Mais correto seria talvez, "amor estelar", nesse sentido gravitacional.

sexta-feira, julho 22, 2005

O Stalker - Capítulo 29

Clarissa pensou o dia inteiro o que iria dizer no seu primeiro e-mail a Renato. Queria fasciná-lo com as nuances e delicadezas da sua história íntima, de como descobrira todas as gradações das ligações amorosas, da amizade ao sexo selvagem, passando pelo amor verdadeiro e indo até a desilusão total. Sim, porque ela era uma mulher que a despeito de sua pouca idade já tinha vivido tudo isso.

Na noite daquela quinta-feira, depois do dia atribulado de uma boa aluna da faculdade de medicina, Clarissa, após sua longa toalete e verificação de mensagens – nenhuma de Renato – sentou-se com a coluna ereta, ombros para trás e peito para frente, e pôs-se a escrever, decidida a fazer jus às mensagens que recebera:

“Renato,

Não sei porque concordei em embarcar nessa loucura de construir uma ligação platônica com você, pelo que eu entendi uma tentativa de conexão de intelectos sem nenhum limite de expressão e com um estanque e incontornável isolamento físico, já que qualquer perspectiva que tivéssemos estaria impedida por nossos relacionamentos. Primeiro, entendo que seja absolutamente necessário que haja entre nós uma sólida confiança mútua na manutenção desse segredo. Segundo, pressuponho que apesar dos fortes sentimentos que você diz ter por mim, devemos considerar que o nosso amor, se é que podemos chamar assim, já foi consumado. Aquela noite j
amais se repetirá e deve ser o outro fundamento de nossa ligação o fato desse amor ter sido correspondido e se realizado. Não sei se conseguiremos sustentar esse paradoxo, semelhante ao da amizade estelar descrita por Nietzsche, sendo estranhos um para o outro aqui na Terra, mas permanecendo ligados por uma gigantesca curva invisível, uma órbita sideral, em atração gravitacional. A terceira condição necessária é que se não conseguirmos nos manter nesse mundo das idéias, e nossa relação começar a interferir na nossa vida terrena por assim dizer, ela será rompida. Se nos encontrarmos por acaso, deveremos sustentar que não nos conhecemos, e sequer nos cumprimentarmos.

Em cumprimento ao nosso pacto, não usarei jamais o verbo confessar, pois estarei falando com você como falo a mim mesma. Prepare-se para me conhecer do avesso.

Clarissa”

Clarissa disparou o foguete com a mensagem a Renato, situado de agora para sempre em outra galáxia, e foi dormir, tentando racionalizar alguma justificativa para si própria dessa estranha ligação não constituir uma traição a Penza, e facilmente concluiu que era como uma amizade epistolar com um homem de um país distante, com a carga erótica neutralizada, ou ao menos controlada, pela expectativa satisfeita.

Renato acordou de ressaca e deprimido, e passou o dia arrasado com o seu lamentável comportamento da noite anterior, culpado por trair Fernanda de modo fútil e por não ter comido direito a morena alta, de quem nem se lembrava o nome. Mas estava orgulhoso da sua eficiência na conquista, duplamente verificada, o intelecto de Clarissa e o corpo da morena, mesmo sabendo que esse orgulho era estúpido. Ainda acreditava que era possível virar o jogo, agora que tinha uma possibilidade concreta de equacionar sua separação. Quando pensou nisso, teve um momento de lucidez, e rememorou os vários anos de bons momentos com Fernanda. Reconheceu que era uma mulher bonita, independente, excelente companhia, mãe dedicada, irrepreensível gestora da casa, a quem ele certamente não merecia. Considerou-se um idiota.

À noite mantiveram uma trégua silenciosa, Fernanda de cara amarrada e Renato tentando demonstrar desdém. Quando conseguiu a privacidade necessária da insônia, achou e abriu o e-mail de Clarissa e ficou impressionado com a ousadia da garota, de tê-lo pego pela palavra dessa maneira. Será que ela acreditava mesmo nessa baboseira ou estava, como ele, apenas disfarçando sua intenção real? De qualquer forma, avaliou que ela tinha mandado muito bem, apesar de demonstrar uma certa infantilidade em querer parecer culta e inteligente. Mas ele também vinha fazendo a mesma coisa.

quinta-feira, julho 21, 2005

O Stalker - Capítulo 28

Dessa vez Renato achou melhor não chamar o Wagnão. Armou um happy-hour com alguns amigos do mercado – o que aliás não era nada difícil – no Mercearia, numa travessinha da Nove de Julho já perto da Faria Lima. Era um programa que fazia com alguma freqüência e que Fernanda tolerava, pois creditava alguma importância social e profissional à turma, a despeito de Renato chegar invariavelmente bêbado, e às vezes muito tarde, pois lá costumavam tomar uísque. Depois do que passara, Renato merecia algumas regalias de convalescente. Eram quase todos casados, e o número variava entre três e oito homens, que mantinham um pequeno ritual: telefonavam para as esposas do bar, e circulavam os telefones, de modo que todos cumprimentavam todas. Nada se falava, mas era uma prova de que estavam juntos numa mesa masculina. Renato gostava muito dessa turma já antiga, alguns se conheciam desde a adolescência, e embora a conversa fosse um pouco previsível, invariavelmente davam muita risada.

Pelo que se informara, o show do estranho projeto de Penza iria tocar num bar/restaurante/casa de show de nome italiano na Rua Girassol, na Vila Madalena. A banda tinha se livrado dos rappers e dos sambistas, e se firmara como uma banda de samba-rock/soul, formada pelo combo de Penza mais as meninas cantoras. A função começaria por volta das onze e meia. Renato não queria chegar cedo nem bêbado, por isso atrasou-se ao máximo para o happy-hour e bebeu o mais devagar possível. Mesmo assim, três horas de uísque são três horas de uísque. Por volta das onze, depois de um último telefonema para Fernanda, avisando que a coisa iria se prolongar mais um pouco, desligou o celular e foi para o outro boteco.

Clarissa estava bstante cansada, apesar de ser ainda terça-feira, pois vinha da aula de inglês. Teria tempo para dar uma boa descansada e ir ao show do Penza. Em casa, estranhou a ausência da mensagem cotidiana de Renato, e concluiu que ele tinha simplesmente se cansado, ou desistido. Tanto melhor, pois aquela brincadeira já estava ficando um pouco esquisita. Sabia que ele estava bem, praticamente recuperado, pelas notícias minuciosas das mensagens, e isso era confortável para ela. Dormiu com a facilidade de sempre, acordou com o despertador, envergou uma roupinha simples e sexy de primeira-dama da banda e resolveu ir com o próprio carro, para evitar a rapidinha com o Penza. Nada contra, mas podia passar sem essa e tinha que se garantir para o dia seguinte. Estimava o fim do show por volta da uma e meia, e não queria deixar o Penza assim sozinho, exposto, vulnerável a tantas garotas vorazes, que, diferente do bar do hotel, certamente estariam por ali.

Renato largou o carro com o valet, e entrou no tal lugar, que era comprido e estreito, com um palco baixo no meio desse corredor, na frente do qual havia uma pequena pista. Estava já bastante cheio, mas não havia um canto onde pudesse se posicionar para estudar o ambiente e preparar o ataque. Atravessou o bar para dar uma mijada, assuntando, e não viu ninguém conhecido. Voltou e foi direto ao bar, perto da entrada, comprar uma cerveja. Quando estava virado para o balcão reclamando a bebida, ouviu uma voz conhecida gritando seu nome de modo escandaloso. Era o Wagnão, acompanhado de uma das meninas cantoras, que ele havia conhecido aquela noite no Sesc Pompéia. Melhor do que ficar ali, solto, perdido, pensou Renato, e logo engataram num conversa animada. Discutiram a evolução da banda e o crescimento do papel das garotas, comentaram o acidente de Renato, o que lhe conferia uma estranha aura de autoridade, e ninguém lembrou de perguntar o que ele fazia ali, o que foi ótimo. Chegaram as outras cantoras e outras pessoas que Renato não conhecia, formando uma roda mais ou menos dispersa, incluindo a morena alta que lhe dera um mole no outro show, e lembrava dele. Graças ao Wagnão, estava novamente inserido na turma da banda. Mas nada de Clarissa.

Começou o show, e a banda, agora compactada e bem ensaiada, estava excelente. O repertório um pouco óbvio de clássicos da música negra, como Kool and the Gang, o glorioso Chic de Nile Rodgers, James Brown, Jackson Five, e outros, entremeados com Jorge Benjor, Tim Maia, Brylho, era irresistivelmente dançante, e a pista balançava. Todos da tal rodinha foram dançar junto ao palco, e Renato, irritado com a ausência de Clarissa, e com fortes dores na perna de tanto ficar em pé, foi se encostar numa mesinha daquelas de ficar em pé que havia no fundo da pista. A banda tocava “Menina mulher da pele preta” de Benjor, quando a morena alta veio sambando lindamente para perto de Renato, e perguntou gritando no seu ouvido se ele não dava mais aquele passinho que ela tinha visto no Sesc. Renato caiu na risada, e entabularam uma conversinha mole, nenhum dos dois entendendo bem o que o outro estava dizendo. Depois de umas duas ou três músicas, Renato percebeu, com o coração disparado, que Clarissa tinha chegado, e se infiltrava no meio da multidãozinha, tentando chegar junto ao palco. Disse à morena que já voltava e tentou alcançar Clarissa, que se enfiara no meio da turma, lá na frente. Renato foi até o bar, que estava com a multidão menos densa, pegou mais uma cerveja, e foi se infiltrando pela frente da gentarada, tentando chegar onde ela estava, mas viu que não era possível. A turba pulava muito, e ele certamente iria se machucar. Desistiu, voltou para o bar e passou por trás da pista em direção ao banheiro, que era no extremo oposto à porta. Tinha uma filinha de três caras na sua frente, e ele esperou uns minutinhos, até conseguir entrar e se aliviar. Quando saiu, deu de cara com Clarissa, que estava ali na porta. Cumprimentou-o sorridente, “que bom que você está legal, hahaha”, e sem nenhuma preparação, soltou a bomba: “Eu li todas as suas mensagens, e topo a coisa platônica. Vamos ver o que acontece. Mais tem que ser sério.” Renato ficou desesperado, puto da vida, e mil pensamentos dispararam ao mesmo tempo, enquanto ele virava um longo gole de cerveja, sem saber o que fazer. As histórias de gênios e suas maldições, “cuidado com aquilo que deseja”, “onde essa mulher está com a cabeça”, “platônico é a mãe”, e quando terminou o trago e abaixou a cabeça, Clarissa tinha desaparecido.

Renato estava transtornado, e as idéias estranhas não paravam de brotar: ganhar e não levar, vitória moral, roubar e não carregar, e por aí afora. Seu enorme esforço de persuasão tinha sido evidentemente frutífero, mas o justo prêmio lhe fora negado. “Platônico é a mãe” martelava o bordão esquisito na sua cabeça, enquanto a banda do Penza mandava mais um balançante hit antigo com sabor de novidade. Voltou à sua posição no fundo da pista, e a morena alta chegou novamente junto rebolando. Atacou-a com vontade, sempre pensando “platônico é a mãe”, e logo a estava agarrando. Tomaram mais algumas cervejas, e Renato conseguiu arrastá-la embora, assim que o show acabou, antes que se formasse a fila para pagamento da comanda. A garota era lá da Freguesia, e Renato, a pretexto de levá-la pela marginal, embicou o carro embaixo do neón verde do Astúrias, sem qualquer aviso à garota, que caiu na besteira de dar uma risada amigável. Renato riu também, e pediu um apartamento do mais barato, sem piscininha. A perigo como estava, bêbado e puto da vida, comeu-a com alguma crueldade, falando coisas sujas o tempo todo, e a garota pareceu estar na dúvida se achava aquilo bom ou ruim. Quando ele acabou, ela falou que achava que tinha sido um erro e que queria ir embora, com o que ele concordou imediatamente, embora pretendesse dar mais uma com calma e maldade. Levou-a até em casa sem fazer qualquer esforço para melhorar o clima péssimo. Na volta, a cento e quarenta por hora na marginal, abriu os vidros do carro e gritou várias vezes o bordão que não lhe saía da cabeça, “platônico é a mãe”. Chegou em casa com fortes dores nos seus ossos recém colados, e nos músculos ainda não inteiramente reconstituídos, sentindo-se degradado em todos os sentidos. O quarto estava com a porta trancada, e o sofá cama da sala de tv, fechado, estava com a roupa de cama dobrada em cima, sem travesseiro, o que achou menos mal do que enfrentar a mulher.

terça-feira, julho 19, 2005

O Stalker - Capítulo 27

Por volta das onze horas da manhã, Renato vestiu-se e foi trabalhar, destinado a encerrar o longo período de quarentena. Tinha que estar formalmente bem, apto para o trabalho, para poder justificar o seu premeditado desaparecimento noturno. Primeiro a obrigação, depois a diversão, pensou mal empregando o ditado. Foi recebido efusivamente no escritório, e no almoço, aberto um vinho para comemorar seu restabelecimento, puseram-no a par das novidades. O negócio do Ceará tinha sido considerado inviável, e a contratação dos advogados gasto de boa cera com mau defunto. A operação fora abortada. Em compensação, um negócio de compra de debêntures de uma grande companhia falida que tinha um crédito gigantesco contra o governo, adquiridos alguns anos antes a troco de quase nada, estava em vias de propiciar lucros milionários à empresa. O mercado não acreditava que fosse possível o recebimento de um crédito em uma ação de mais de trinta anos contra União decorrente da revogação indevida de uma concessão de mineração por motivos políticos, já julgada em última instância pelo Supremo Tribunal Federal, mas cujo pagamento havia sido questionado por uma ação do Ministério Público por suspeita de corrupção e por isso impedido, estava finalmente liberado. Bastava a companhia levantar o dinheiro, pagar os poucos credores que restavam, e os debenturistas e acionistas. Advogados especializados já haviam sido contratados para arrancar o pagamento dos controladores, e estavam em vias de ingressar com violentíssimas liminares e ações de prestação de contas impossíveis destinadas a paralisar o recebimento para obter acordo rápido, muito embora as negociações para evitar os litígios já andassem bastante adiantadas. Os números eram tão grandes que podiam dar-se o luxo de perder milhões, para lucrar outros tantos instantaneamente. Renato, destinatário de pequena parte dos ganhos, ganharia uma bela bolada com essa operação, sem ter que fazer absolutamente nada. Seu pai e os outros sócios maiores, que já eram um pouco mais que remediados, poderiam tranqüilamente se aposentar em excelente condição.

Imediatamente o ser do mal que habita todos nós começou uma cantilena demoníaca no canto mais escuro da mente de Renato. Ele e Fernanda eram casados no regime da comunhão parcial de bens, e assim, embora ela não tivesse direito às quotas da corretora que Renato tinha, adquiridas antes da união, se os lucros fossem distribuídos – e essa era a intenção dos sócios, que queriam extinguir a empresa para cada um cuidar da sua vida – passariam a integrar o patrimônio pessoal de Renato. Fernanda teria direito à metade. O casamento precisava ser estourado com urgência. Renato ficaria com o grosso da grana, poderia manter Fernanda e as crianças no seu padrão atual, e comprar o passe de Clarissa. Pelo menos por algum tempo, pois o dinheiro não seria suficiente para que ele mantivesse o circo funcionando só com a renda. Precisaria sacrificar o capital, o que era temerário, ainda mais com a perspectiva de perder a posição na empresa. Ficaria desempregado. Louco e cego como estava, era o suficiente para desvencilhar-se da armadilha em que se encontrava. Depois daria um jeito.

O lado bom começou a gritar lá do seu lado, a lembrar Renato dos filhos que adorava e iria deixar à mercê da Fernanda, e sabe-se lá com quem ela se ligasse. Que era uma loucura queimar sua grana nesse projeto de separação, antes de resolver o rumo que tomaria sua vida profissional. Que Renato tinha uma carreira de mérito discutível, e todos os seus relacionamentos de trabalho eram marcados pelo estigma do filho. Que poderia acontecer algum percalço e a operação não vingar, como tantas outras que não haviam se realizado durante toda a década que trabalhara lá, em que viu a vertiginosa decadência da corretora não mais corretora. E, por último, e o mais importante, era óbvio que Clarissa nada queria com ele, pois há mais de um mês recebia as suas mensagens e as ignorava, jogando-as fora talvez até antes mesmo de abri-las. Essa última advertência gritada a todo volume dentro da mente de Renato ficou ecoando na sua cabeça bêbada e oca no fim do almoço.

Os velhos companheiros, eufóricos com o álcool e a perspectiva próxima de ficarem realmente ricos, sequer se deram ao trabalho de atribuir o estado semi-catatônico de Renato à convalescença do acidente. Só o seu pai notou algo de estranho com ele. Talvez a mistura de álcool com os analgésicos e anti-inflamatórios tivesse gerado a sombra no semblante do filho, que se dissipou quando ele decidiu-se a dar sua cartada naquela noite, e brindou, animado, à abertura de mais uma garrafa de vinho.

segunda-feira, julho 18, 2005

O Stalker - Capítulo 26

Clarissa ficou incomodada com a primeira mensagem de Renato, que lhe pareceu uma fonte de problemas. Aquilo não poderia acabar bem. “Onde já se viu, casado, com dois filhos!” Não ela não precisava daquilo. Já tinha o Penza. Se bem que o Penza andava meio esquisito. Andava não, era. Muito atencioso, simpático, amoroso, mas estava na cara que não queria nada com compromisso. O Renato dava a entender que cortaria um braço por ela. Isso depois que ela já tinha dado para ele. Será que era verdade? Aquele cara mais velho, adulto, com a vida já definida, mas ainda moço e bonito, arrastando um caminhão por ela? E ela lá queria compromisso, com vinte anos? Queria. O pior é que queria. Mulher adora compromisso. Estabilidade. Não assim no sentido material, porque ela tinha a vida toda pela frente, e não alimentava nenhuma dúvida quanto ao seu futuro. Ainda que não ficasse rica, não havia porque temer. E o Renato estava bem, ou pelo menos parecia, mas não era nenhum milionário. E se ele se separasse para ficar com ela, haveria dinheiro para sustentar mulher e filhos? Não, Clarissa queria e precisava estabilidade de relacionamento, uma ligação profunda e duradoura. Será que ele poderia ser o homem da sua vida? O sexo tinha sido ótimo. Não, não, era evidente que era um erro, não aceitaria o absurdo, e não se falava mais nisso. E depois da decisão tomada, nada mais demoveria Clarissa de seu propósito, construído com força de vontade e disciplina inquebrantáveis.

Tomada a decisão e afastado o problema, não havia nenhum problema em ler as mensagens de Renato, que foram chegando sistematicamente todos os dias. Ela lia com prazer. “Nossa, que imaginação tem esse cara! Será que eu sou tudo isso?” E com o passar das mensagens, ela sentiu que as expectativas de Renato foram diminuindo. Parecia que ele estava deixando de acreditar que aquelas duas noites pudessem se repetir, e ia se tornando cada vez mais platônico. E quanto mais platônico ficava, mais furiosa sua imaginação se tornava, e mais ela gostava de ler as mensagens. Viajava para longe, lendo as mensagens de Renato, que iam ficando cada vez maiores. No começo, tinham dez linhas. Depois, passado um mês, já estavam com uma grande página de caracteres pequenos. E ela, encastelada no seu silêncio inexpugnável, foi acompanhando o cotidiano fisicamente besta e dolorido de Renato, trancado em sua casa, enquanto sua mente vagava sem limites por terras e lugares estranhos, oceanos furibundos, altas montanhas, estradas sem fim e florestas selvagens, inspirado pelos melhores descritores das aventuras e desventuras do amor de todos os tempos. Clarissa era sempre uma heroína, como a mais luminosa das sereias, a ninfa que melhor dançava, ou a índia mais violenta. Por duas ou três vezes, durante esse mês e pouco, Clarissa foi arrebatada de tal forma pelos delírios de Renato que acabou se tocando demoradamente.

Lá pelo quadragésimo dia, veio a última mensagem, que resignada e melancólica abdicava da posse plena e física de Clarissa e propunha um relacionamento meramente intelectual, para compartilharem, de forma sincera e profunda as impressões que tinham e teriam do mundo, das pessoas, do cotidiano, dos objetos de cultura, do trabalho, as loucas fantasias, e até, com alguma dor, mas o que não podia ser excluído, das ligações amorosas dos dois. A proposta pareceu a Clarissa um ato suicida e desesperado. Renato estava enlouquecendo. O que estava pretendendo? Manter uma vida paralela e imaginária com ela, num mundo artificialmente construído? Um mundo de verdadeira ficção, onde o amor impossível pudesse se realizar? Era tão absurdo e radical, a idéia de uma vida a dois louca e sem limites, de ligação total, sem censuras e confiança mútua e completa, de dois eficientes intelectos juntados pelo o acaso, o destino, ou como quer que se chame o fator misterioso que promove os encontros e desencontro dos amantes, animados pela única condição de jamais se encontrarem, que Clarissa ficou intrigada. Será que a louca proposta não poderia ser rica e produtiva, a experiência de uma vida, que valia a pena ser tentada? Claro que implicava numa terrível traição aos companheiros dos dois, mas, do lado dela, será que o Penza se importaria, ou sequer perceberia a amizade virtual? Clarissa concluiu que não tinha ainda a resposta a todas estas perguntas, e guardou com cuidado a idéia estúpida e revolucionária de Renato em algum canto de sua mente organizada, para decidir mais tarde.

Renato decidiu partir para a ação, ante o angustiante silêncio de Clarissa, depois dessa última mensagem desesperada, destinada, mais pelo absurdo da proposta, a provocar uma resposta e um contato com Clarissa, para que pudesse ter a oportunidade de abordá-la cara a cara. No dia seguinte haveria um show do “Estranho Projeto de Penza, o Corno”, como resolvera Renato nomear o espetáculo, em um pujante bar/casa de shows da Vila Madalena, e lá ele tinha certeza que encontraria Clarissa.

quinta-feira, julho 14, 2005

O Stalker - Capítulo 25 (atenção, leia o 24 abaixo antes)

Renato teve alta e foi para casa, enfrentar quarenta dias de estaleiro. O mês originalmente prometido havia sido espichado pelo médico na última hora, aproveitando que ele já estava um pouco melhor, com o moral mais alto, acostumado ao seu novo estado de múmia. A humilhação era total. Mas em pouco tempo conseguia se locomover, ainda com muita dificuldade, com o auxílio de uma bengala. O banho era uma operação complicadíssima, feita com o auxílio de uma cadeirinha de rodinhas com uma tampa de privada no lugar do assento, depois de sobremumificar-se com plásticos. Usava a tal cadeira também para cagar. Limpar a bunda era bastante difícil com o tórax imobilizado, e a tarefa era feita com pouca precisão. Quando estava por perto, Fernanda dava o acabamento com as toalhinhas de papel úmidas de trocar fralda. O braço esticado batia nos batentes e nas paredes, e estava sempre dolorido. A despeito dos analgésicos e anti-inflamatórios, à noite sentia dores terríveis na perna quebrada, por causa dos músculos esmagados.

Renato estava dominado pela idéia fixa de reconquistar Clarissa. Depois de muito pensar, começou a acreditar que o melhor meio era se insinuar na sua mente, de uma maneira que ela não teria nem como nem porque evitar. Mandaria-lhe um e-mail todo dia, o que afinal, já tinha dado muito certo. Nenhuma mulher, por mais raiva que tivesse, deixaria de ler uma carta de amor carregada de infladores de ego, geradora de vaidade e tesão, vinda de um cara com quem uma nova e potente ligação havia sido abruptamente interrompida por fatores externos. A mensagem teria que ser curta, dez linhas no máximo, inteligente, apaixonada e bem-humorada, ou o mais próximo que conseguisse disso. Se ela respondesse, ótimo, estava no caminho certo. Se ela não respondesse, tudo bem, continuaria mandando seus petardos. Se ela pedisse para parar, ele saberia que era mentira, como da primeira vez. Achou melhor nem pleitear o contato telefônico, pois não teria mais como ir conversar no terracinho, na cara da Fernanda, e quando ela não estivesse em casa, Clarissa também não estaria. Através das mensagens instantâneas, além da dificuldade de pegar Clarissa em casa, não teria nem o tempo nem a agilidade para mandar alguma coisa que prestasse.

O primeiro e-mail que mandou continha o discurso desenvolvido no hospital. Foi digitado com dificuldade à tarde, enquanto Fernanda estava no trabalho. Clarissa não respondeu. Renato quase enlouqueceu com o seu silêncio. Esse foi o pior, pois tinha que necessariamente enfrentar a questão do seu impedimento e contorná-la. Mandou outro, mantendo a compostura, reclamando sua atenção com ironias leves, com o cuidado de não ser acusatório e cobrador. Sabia que o maior erro seria acuar sua presa. Tinha que cevá-la até que ela voluntariamente saísse de sua toca e viesse se enfiar na armadilha. Desenvolveu uma prosa leve, em que descrevia o seu cotidiano bunda com humor e sem auto-comiseração, ao mesmo tempo manifestava o sonho acordado de ter ao seu lado a médica mais gostosa do mundo. Lembrava passagens do seu passado, descrevendo as pálidas sensações que provocaram as mulheres que a antecederam, em comparação com as duas noites que mais valeram a pena na sua vida, a da praça e a do motel. Transmitiu mil sensações subjetivas dessas duas noites, nas quais Clarissa sempre aparecia como um ser mitológico, uma sereia no fundo do mar, ou uma super-heroína no espaço, uma índia na floresta, e por aí afora. Citava passagens selecionadas dos livros que andava lendo e desenvolvia teorias próprias sobre o processo psicológico e metabólico do amor, palavra que usava na falta de outra menos esgarçada, que as línguas humanas ainda não tinham sabido desenvolver. Fazia planos evidentemente impossíveis, para deixar claro que eram meras fantasias inconseqüentes, e nenhuma carga de realidade pesasse em Clarissa. Renato vivia entre suas dores e desconfortos num estado de sonhar acordado, maquinando essas mensagens que eram sua única diversão, nas quais concentrava toda a sua energia, criatividade e disposição. E tinha bastante orgulho da qualidade que achava que tinha atingido, o que o motivava para prosseguir na prazerosa atividade.

Três ou quatro vezes nesse período recebeu visita de amigos, cinco ou seis vezes de parentes diversos, oito ou nove de seus pais, e quase todo dia sua sogra estava lá, muitas vezes quando Fernanda nem estava em casa. “Passava” para deixar ou pegar alguma coisa, para dar um beijo nos netinhos, isso ou aquilo. Renato se sentia um pouco vigiado, mas durante as tardes, quando Fernanda estava no trabalho, fechava-se na sala-de-tv/escritório e a sogra se intimidava em o perturbar.

Clarissa não respondeu nenhuma só mensagem. Não deu qualquer sinal de vida. Nenhuma das mensagens tampouco voltou, e Renato concluiu que ela as recebia, e inevitavelmente lia. Quem não leria? Renato ligou algumas vezes para o seu celular, mas ela nunca atendeu, e ele também não deixou qualquer recado. Tinha muito medo de parecer obsessivo.

O seu estado físico melhorava dia a dia, e ao trigésimo dia tinha tirado o gesso do tórax, e substituído a imobilização do braço por uma que formava um “L” convencional, apoiado numa simples tipóia. A perna também ganhou um saltinho, e sua locomoção melhorou muito. Ao quadragésimo dia, o médico descumpriu a promessa e liberou apenas o seu braço, que estava atrofiado e macilento. Cinco dias depois, foi a vez da perna, também em condições precárias. Agora viria o inferno da fisioterapia, e a volta às ruas. Renato não aguentava mais ficar em casa, ver televisão, sonhar acordado e se masturbar. Tendo de volta sua plena locomoção, Clarissa não teria como dele se esquivar. Estava mais que na hora de comê-la de novo.

Pecus vai à praia



E adianta o Capítulo 25 do Stalker. Domingo à noite, o 26. Não pule o 24 aí embaixo.

O Stalker - Capítulo 24

Clarissa acordou pensando em Penza. Apesar dos recados de parte a parte, não tinham se falado desde o domingo. Mas não ia ser agora. Na escola só pensou em Renato, ali perto, um paciente frágil entre tantos, impotentes nas mãos dos médicos, dependendo de mil imponderáveis para sobreviver, moluscos sem cascas despegados das rochas ao sabor das correntes. Nada a ver com aquele cara que parecia ser movido por uma força superior, e tinha feito tudo aquilo meio sem ela querer, e sem forçar nada. Ou será que ela tinha arrastado ele, desde o início, num plano inconsciente, uma sistemática de sedução, como fazem as mulheres por esporte? Sim, mas não era para acabar assim tão rápido numa piscininha de motel. Teve que racionalizar para não sentir nojo.

Acabada a aula, comeu um sanduíche rapidinho, escovou os dentes com eficiência robótica, e foi para o hospital. Teve a boa idéia de envergar o avental, para poder assuntar a situação sem ser notada. O quarto coletivo era uma sala grande com divisórias de cortinado, com quatro leitos. Tinha perguntado para a enfermeira do andar o número do leito, e não percebendo ninguém com Renato entrou na sua alcova e estacionou junto à cama. Renato dormia, ainda atrelado ao frasco de soro onde injetavam toda a medicação. Mediu com olho clínico a extensão dos danos no material humano, do qual provara a excelente qualidade. Pelas características da imobilização viu que não era nada grave. As escoriações talvez deixassem a pele rajada aqui e ali, inclusive no rosto, mas provavelmente não sobrariam sulcos nem quelóides. Renato estava inteiro. Teve uma ponta de curiosidade de examinar-lhe o pau mas pareceu-lhe um pouco mórbido, próximo ao vilipêndio aos cadáveres que costumavam fazer os alunos nas aulas de patologia.

Ficou um momento na dúvida se o acordava ou não, mas concluiu que tendo só uma hora não podia desperdiçá-la. Acordou-o dizendo seu nome suavemente, prolongando as sílabas. Renato percebeu imediatamente a voz de Clarissa e acordou sobressaltado. Abriu os olhos e deparou-se com a visão daquela sorridente moça sardenta com olhos azuis, dizendo seu nome. Lembrou-se da fantasia que tivera de comer Clarissa numa cama de hospital e deu risada. Clarissa inclinou a cabeça para o lado e franziu o rosto numa expressão interrogativa digna de um cocker spaniel, e deu risada também, sem saber porque. “E aí, tava dormindo?” Renato, rápido, “sonhando com você”, brincou, e mais risada. “Cê tá legal?” “Agora estou ótimo”, e por aí foi a bobeira. Clarissa não sabia o que fazer, e nem cogitou de interrogá-lo naquelas circunstâncias. Aproveitou que as gazes das escoriações estavam com a aparência um pouco suja, e resolveu trocá-las. Foi buscar o material necessário, e descobrindo o lado direito todo de Renato, foi descolando delicadamente com a ajuda de soro todas as gazes já impregnadas de pomada misturada com secreções linfáticas, enquanto Renato gemia baixinho. Depois foi untando a pele em carne viva de Renato com pomada cicatrizante, como quem tempera uma leitoa para o forno: com amor. A tarefa durou uns dez minutos. Quando estava acabando de cobrir com gaze os ferimentos, tocou o telefone, e Clarissa atendeu: “Alô?”“Por favor é do quarto do paciente Renato Carneiro?” “Sim, quem quer falar?” “É a esposa dele.” “... Um momento...” “Renato, sua mulher.” Pôs o telefone na mão dele, virou as costas e foi embora, disposta a nunca mais falar com ele. Renato tampou o bocal e chamou: “Clarissa!” Nada adiantou.

Ambos os dois ficaram arrasados, por motivos diversos. Por mais que Clarissa tivesse se preparado para confirmar sua suspeita, ter a informação diretamente da mulher de Renato, sem que ela soubesse que estava falando com a putana que tinha comido seu macho (T.Q.B.), foi demais para ela. Renato tinha preparado, revisto, ensaiado e decorado um discurso em linguagem romântica, para revelar o seu segredo pérfido a Clarissa, aproveitando a moldura pungente do acidentado, mas não teve coragem de quebrar aquele clima tão especial. Ficou com a sensação de ter perdido, novamente, a janela da oportunidade. Bom, mas se ele tinha consertado a situação uma vez, o faria de novo. E repassou mentalmente o seu arrazoado:

“Clarissa, desde que eu te conheci, na primeira aula de inglês, fui tragado, sem perceber, pela sua singularíssima pessoa (ele tinha simpatia por essa expressão de Augusto dos Anjos, muito adequada ao ambiente médico). Não é que eu tenha tentado resistir, mas a sua figura, a atração que eu senti pela sua inteligência e senso de humor, foi rapidamente me dominando ao longo dessas duas últimas semanas, me contaminando completamente como uma infecção aguda, e então eu realizei que eu nunca tinha me apaixonado de verdade antes. A ponto de usar essa palavra ridícula. Não entendia o que estava acontecendo comigo, e fui me informar. Li os clássicos românticos, estudei as enzimas produzidas por esse estado de meia loucura que nem a ciência, nem os filósofos, nem os artistas conseguem explicar de maneira satisfatória. A intensidade para mim foi tanta, que eu fui obrigado a por de lado tudo que para mim havia de valioso antes de te conhecer. Você passou a ser minha única prioridade. E além do tesão absoluto, tenho uma enorme e espiritual vontade de estar perto de você, Clarissa, aproveitando a sua pessoa por completo. Depois das duas noites que ficamos juntos, a da praça e a do motel, isso tudo só fez crescer. Carrego assim nas tintas não para te assustar com essa intensidade obsessiva, mas só para te preparar para a desagradável informação que eu tenho para te dar: estou comprometido até o talo com uma outra mulher, com quem tenho dois filhos pequenos. Eu sei que fui egoísta e canalha, mas eu justifico o meu crime com o estado de necessidade, uma questão de vida e morte. Eu não tive escolha, mas você tem. Se você achar que temos um pequeno futuro, seja de uma noite a mais, uma semana, um mês, um ano ou dez, você o terá, quando quiser.”

Deise entrou no cubículo e viu Renato com a expressão enlouquecida de um Van Gogh e atribuiu-a ao trauma do acidente. Quando foi trocar as ataduras, viu que elas tinham acabado de ser feitas, e o serviço era de excelente qualidade.

quarta-feira, julho 13, 2005


terça-feira, julho 12, 2005

O Stalker - Capítulo 23

Renato acordou no meio da noite, ressoando em sua mente uma passagem da “Educação Sentimental” que tinha produzido nele grande impressão, sem que soubesse exatamente porque. “Depois pensava em coisas monstruosas, absurdas, tais como surpreendê-la, de noite, com narcóticos e chaves falsas – tudo lhe parecia mais fácil do que afrontar-lhe o desdém”. A frase estava lá, bem armazenada no seu Memory Mall, como apelidara Renato o pomposo Palácio da Memória dos padres, tratando de atualizar o conceito. Frédéric era o lobo em pele de cordeiro. O livro inteiro, corrido num período de alguns anos, o herói sustenta ser o seu amor puro e platônico, admirando tão perto quanto possível e tão distante quanto necessário o seu amor impossível, convivendo com a família da sua amada de forma absolutamente respeitosa pois a certeza da virtude da Sra. Arnoux o desencorajava a tentar qualquer coisa. Ao mesmo se achava um bundão por não fazer nada. E esse santo autoflagelado com a disciplina e o cilício, esse pecador imundo, em uma única frase perdida lá na página 194 da edição dos Clássicos Garnier, deixa escapar o disfarçado e sufocado instinto criminoso. O caráter doentio do suposto amor.

Naquele leito de hospital, arrasado e punido, Renato sentia ter cometido crime semelhante, ao aplicar o estelionato em Clarissa pura e exclusivamente para comê-la. Não seria essa lenga-lenga de amor uma mera justificação racional para amenizar a dupla traição do seu crime, enganando Clarissa e Fernanda ao mesmo tempo? Ali, sozinho, no meio da noite, naquele quarto coletivo do hospital público, cheio de dores, suores e coceiras, estava perdido e abandonado. Dispensara a companhia de Fernanda e de sua mãe, porque não havia condições mínimas de conforto para elas, e não se justificava uma remoção, pois mais uma noite já iria para casa. Melhor ficar parado e acelerar a recuperação. Estendeu a mão e tocou a campainha. Apareceu Deise, que estava no plantão, e ele não sabia o que pedir a ela. Deise interpretou que Renato queria urinar e estava com vergonha de pedir ajuda. Bom, ele estava com aquele colete e o braço engessado em direção ao teto. Chegou perto, inclinando o corpo e jogando os peitões para cima dele, e perguntou baixinho com sua voz infantilizada e muito profissionalmente, se ele queria ajuda para urinar. Renato nada respondeu, mas Deise deve ter entendido um meio movimento ou meio gemido como assentimento, e pegou uma daquelas bandejas com bico, o “papagaio”, levantou sua camisolinha, pegou delicadamente seu pinto e encaixou-o no local. Renato aliviou-se – realmente há horas não mijava – e ficou sinceramente agradecido pela sensibilidade de Deise. Relaxou e dormiu.

Wagnão cumpriu diligentemente o seu mister. Telefonou naquela noite mesmo para Clarissa, mandou-lhe um e-mail, procurou-a nas mensagens instantâneas, sempre dizendo ser urgente e que tinha notícias de Renato. Conseguiu atingi-la naquele momento da longa toalete, entre as mensagens instantâneas e a tv, quando ela checou o e-mail novamente à procura de uma carta de amor de Renato, sem admitir para si mesma que o fazia. Clarissa ligou na hora para o Wagnão, que fez mil rodeios e suspenses, contou uma versão totalmente estendida e preenchida com detalhes inventados do acidente, entremeando as frases com minhas lindas, princesas e outros vocativos sensuais, exagerando o drama com entonação de radialista. Com facilidade combinou que ela estaria, no dia seguinte, à uma hora, no quarto de Renato. Antes não seria conveniente, pois a mãe de Renato estaria lá, com as tias e não sei mais quem, e ele queria vê-la a sós. Clarissa não se sentiu à vontade para perguntar ao Wagnão se Renato era casado, pois se ela e Renato tinham uma ligação de adultos, seria ridículo que ela não soubesse a verdade, e é óbvio que se ele fosse casado e ela mantivesse a ligação a despeito disso, o Wagnão não tinha nada com isso. Desligou o telefone, e pensou que precisaria de trinta segundos para localizar Renato no Hospital das Clínicas, com um telefonema. E, apesar de estar excitada com a intensidade dos acontecimentos dos últimos dias, deitou e dormiu rápido e profundamente como sempre. Amanhã faria tudo o que tinha que ser feito.

segunda-feira, julho 11, 2005

O Stalker - Capítulo 22

Clarissa não teve resposta para o seu e-mail. Renato também não telefonou, ele que ligava todo dia. Para ela, não havia outro significado senão que Renato era casado, e tinha se dado por satisfeito em comê-la, vencendo alguma resistência. Tentou não ficar puta da vida, pensando no equilíbrio da situação. Ela tinha comido Renato, quando quis, porque quis, onde quis, por sua livre e espontânea vontade. Mas ela sabia que era uma racionalização. Estava se sentindo suja e usada, por uma questão de cultura. Eram sujas e usadas as mocinhas que se deitavam com homens casados. Sim era ridículo. “Em que século você está, Clarissa?”

Mas também essa qualificação dos fatos não se encaixava com o que tinha vivido com Renato. Nada lhe pareceu mais autêntico do que o desejo de Renato, no qual ela havia uma percebido outra dimensão, intelectual, um interesse por sua pessoa em sentido amplo, que era bastante continente. Não era só tesão. O tesão existia, é claro, e ela tinha provado toda a sua intensidade. Mas havia uma reverência, um respeito, uma admiração que fazia ela se sentir uma verdadeira princesa, que não podia ser um mero estelionato. Não existia ator assim sobre a Terra. E se Renato fosse assim tão bom, estaria de alguma forma manipulando as massas. Não, a coisa era real.

Encafifada, foi com grande expectativa para a aula de inglês. Das primeiras a chegar, estava ansiosa e com o coração levemente acelerado esperando Renato. Só que Renato não veio, e a aula lhe pareceu estúpida e infernalmente chata. Ela só queria sair dali e ficar cara a cara com Renato, para ver, nos seus olhos, se era real ou era blefe. Bom, podia ser real e ele casado, um amor impossível, roubado, impulsionado pelo mais louco desejo que supera a moral, transformando o homem num animal sem escrúpulos. Começou a pensar nisso e sentiu alongar-se o seu tubo vaginal, com a contração do útero, retraindo-se o colo e abrindo espaço suficiente para receber um pau duro socando ali. Clarissa compreendia e aceitava os impulsos metabólicos. Era cientificamente aceitável o comportamento de Renato, irracional e inconsciente, de querer inseminá-la. O que ela tinha mais dificuldade de compreender, e por isso a intrigava, era o tal aspecto cerebral, ou espiritual, que Renato emprestava à coisa.

Saindo da aula, lá pelas nove e meia, procurou o número de Renato entre as ligações recebidas e mandou de volta. Tocou um longo tempo, daí atendeu uma voz feminina. Era Fernanda. Clarissa imediatamente desligou, e teve a certeza da confirmação da sua suspeita. Só podia ser a mulher de Renato, o que a transformava na clássica outra, biscateira destruidora de lares, papel que a parte desagradável superava muito o seu aspecto lisonjeiro do ponto de vista do poder da sua sexualidade, capaz de transtornar um adulto pai de família e fazê-lo enlouquecer. Ainda que ela soubesse que homem nenhum pode ver uma garotinha bonita como ela, que já parte para cima. Por outro lado, ela é que tinha dado mole para o cara casado. Quantos filhos teria? Estaria a mulher grávida? Tinha que falar com Renato para por essa história a limpo, olhando na cara dele. “Que filho da puta!”

Renato acordou de manhã, bastante dolorido, pois os analgésicos não tinham sido renovados a tempo, no frasco plástico de soro, e tinha a boca seca. Enfim, sentia-se muito mal. Mas abriu os olhos, e Fernanda já estava lá. Instintivamente tocou a campainha, como se a enfermeira pudesse remover com as dores aquela mulher visivelmente ferida e agressiva ali na sua frente. Ao longo de toda a manhã, Fernanda incorporou a Pietá novamente e cuidou de Renato com a eficiência e o cuidado de uma mãe extremada, trabalhando ao lado da enfermeira na limpeza e troca das gazes das escoriações, que cobriam quase um quarto do corpo de Renato. Na hora do almoço Renato teve um momento de privacidade, e deliberadamente irresponsável pediu a Deise, que reassumiu o turno ao meio-dia, que ligasse para o número de Clarissa, que tinha decorado de tanto repetí-lo como se fosse o verso de um poema. Deu caixa. Pediu a Deise, depois, que ligasse ao seu escritório e obtivesse o telefone do Wagnão. Ligou para o Wagnão, contou-lhe o acidente na útil versão de dez segundos, deu todos os localizadores de Clarissa e pediu que lhe arranjasse um contato, com todo o cuidado, que tinha que ser na hora do almoço do dia seguinte, quando Fernanda e sua mãe fariam a troca da guarda, deixando-lhe mais ou menos uma hora para agir.

domingo, julho 10, 2005

O Stalker - Capítulo 21

Renato percebeu que havia se arrebentado mesmo, e não tinha nada em que pensar a não ser isso. Não conseguia se mexer, e não tinha exata consciência da dor que estava sentindo, no momento imediatamente posterior à ruptura de tecidos de diversas naturezas por todo o seu corpo. Percebeu pelos sons que se formava a tradicional rodinha em torno dele, estatelado no chão sujo, praticamente lambendo a sarjeta. Alguém falou “será que ele tá vivo?”. Outro, “não mexe nele, pode ter quebrado a coluna”. Ouviu, “alguém já chamou o resgate?”, “sim, já devem estar chegando”. Não conseguia sequer esboçar qualquer tentativa de resposta. Ouviu uma sirene se aproximando, perdeu um pouco do medo de morrer ali sozinho no meio da rua, e apagou.

Acordou num quarto de hospital, com a sensação de uma ressaca gigante de um porre incomensurável. Estava deitado de barriga para cima sem poder se mexer, com a perna esquerda atravessada por arames numa estrutura aérea, e com o braço esquerdo imobilizado apontando para o teto, amarrado a um colete de gesso que lhe envolvia o tórax. Lembrou que estava sem documento no momento do desastre e portanto ninguém devia saber do seu infeliz paradeiro. Percebeu que tinha escoriações por todo o lado direito do seu corpo, incluindo o rosto e a cabeça, e que os músculos da sua perna esquerda deviam ter se esmagado. Daí vinha a maior parte da sua dor. Viu com o rabo do olho um acionador de campainha ligado a um fio, a poucos centímetros da sua mão. Tocou e esperou.

Esperou e esperou três ou quatro minutos que pareceram um eternidade, até que apareceu uma enfermeira com um jaleco verde hospital claro, morena com o cabelo em franja, liso e curto acompanhando a linha do rosto redondo, peituda, que perguntou com voz aguda e infantil como ele estava. Renato disse o seu nome e pediu para telefonassem para sua mulher, dizendo o número do telefone e o nome dela. Reparou no crachá da enfermeira que o seu nome era Deise, mas não teve ânimo para invocá-lo. Deise falou que alguém iria falar com a sua esposa, e que um guarda queria conversar com ele, o que era praxe em acidentes com vítimas. Informou-o que tinha entrado no pronto socorro há seis horas passadas, e perguntou se estava em condições de falar com ele agora. Assentiu. Um PM barrigudo colheu seus dados, e inquiriu-o rapidamente sobre o acidente. Renato sequer tinha visto o que o atingira, nem quem o socorrera. O guarda avisou que o que sobrara da bicicleta estava na delegacia, e disse ainda que ele tinha tido muita sorte de estar vivo.

Depois veio um médico, ou melhor, um moleque brincando de médico, fazendo visível esforço para aparentar pertencer a essa suposta casta de sacerdotes que tem poder de cura sobre as doenças que assolam a plebe rude, e que lhe explicou minuciosamente a extensão dos danos, os ossos que tinha fraturado, o tipo de imobilização utilizado e a expectativa de um mês para tirá-la, se tudo corresse como esperado. Disse-lhe ainda os analgésicos e antibióticos que estava tomando. Não deu qualquer importância às escoriações e o resto. Não era nada grave, enfim, e em pouco tempo ele estaria completamente restabelecido. Renato agradeceu da forma mais efusiva possível as informações objetivas e auspiciosas. Renato pensou consigo mesmo que estava ali, todo estourado no hospital, e tinha que achar bom. Achou engraçado o paradoxo.

Fernanda foi a primeira a chegar, nervosa, com a expressão oscilando entre brava e condoída. Disse-lhe que já tinha conversado com o médico, que estava tudo bem, perguntou como foi. Renato explicou em dez segundos – e percebeu que era uma vantagem ter uma versão curta do acidente, que iria ter que contar a todo mundo – e Fernanda comentou com ar de branda censura que ela já tinha dito que ele não podia sair de bicicleta ou para correr sem documento, ou pelo menos um papelzinho com seu telefone no bolso. E beijou-o repetidamente, até que ele começasse a gemer para que ela parasse. Logo depois chegaram seus pais, o seu sogro, pois a sogra tinha ficado com as crianças, e até o fim do horário de visitas às nove e meia da noite foram aparecendo seus parentes e amigos. Apesar de sentir-se confortado por um lado, Renato percebeu que o aprisonamento iria se agravar muito. Estava refém de Fernanda, e não poderia se aproximar de Clarissa pelo menos durante o próximo mês. Sob a ação dos sedativos, logo apagou.

sexta-feira, julho 08, 2005

O Stalker - Capítulo 20

Renato e Clarissa vestiram-se meio sem graça daquela lambança toda e foram embora. No carro, Clarissa ligou o celular e constatou as ligações de Penza. Renato achou melhor deixar para depois. Ficaram quietos. De vez em quando se entreolhavam e riam, com cara de cachorro que quebrou a tigela. Assim que Clarissa desceu do carro, Renato ligou para o Wagnão a procura de um alibi. Combinaram de inventar que ficaram presos numa reunião com o criminalista por causa da história das procurações falsas usadas para negociar ações da Telesp – o processo ainda se arrastava, isto era verdade – e depois foram tomar um chopinho para relaxar. Renato teria desligado o celular na reunião, e esqueceu de ligar depois. Fraquíssima, mas fazer o que? Durante todo o trajeto Renato foi inventando detalhes, porque acreditava que dariam credibilidade à estória, se fosse necessário. Eram dez horas da noite, e o cabelo curto de Renato já estava seco. Ligou para Fernanda se desculpando, estava quase em casa.

Clarissa estava meio atordoada com a aventura, e ainda não tinha entendido bem como aquilo tudo tinha acontecido. Teria enlouquecido? Alguma coisa que ele pôs no chopp? Não, era sabia que não era nada disso. Era o cio do período fértil, misturado com uma certa irritação com o Penza, e a insistência do Renato. Bom, pelo menos seu instinto não falhara. Tinha sido uma experiência e tanto. E agora, o que faria? Depois, começou a reconstituir a noite, e os fatos não se encaixavam direito. Porque Renato a tinha levado num motel? Porque tinha se enfiado com ela naquele canto do Senzala, vazio e mico na segunda-feira? Nunca perguntara a ele com quem ele morava. Será que ele era casado? Absurdo, ela não conhecia ninguém casado. Hoje as pessoas se casam com trinta, trinta e cinco, e Renato não tinha isso nem a pau. Será que ele morava com os pais? Não, não parecia, pelo jeito adulto e decidido dele. Mas se ele fosse casado, nossa, será possível que ele fosse tão filho-da-puta? Com a mulher e com ela? Não, não podia ser, não o Renato, um cara tão inteligente e legal. De qualquer jeito, antes de pensar no que ia dizer para o Penza, sentou no computador e mandou-lhe um e-mail, curto e grosso: “Renato, você é casado?”

Renato encontrou Fernanda com a cara amarrada, e nem teve oportunidade de mentir. Aproveitou o estresse dela e foi logo para a sala, tomar o seu uiscão e pensar em Clarissa, ouvindo o tal disco, e teve uma longa ereção lembrando da noite do outro mundo. Pensou que se morresse naquele momento, morreria feliz. Mas queria mais, muito mais, queria estar com Clarissa, ver Clarissa movimentar-se com aquela graça de bailarina nas ações cotidianas, viajar com Clarissa, comer Clarissa muitas e muitas vezes, e o nome sonoro de Clarissa ficou ressoando em sua mente de forma contínua, até que começou a dormitar no sofá, e resolveu ir dormir.

No dia seguinte, de manhã, de novo a rotina da bicicleta, naquele mesmo horário antes de Fernanda acordar. Agora que estava seguro em relação a Clarissa, o seu humor estava transcendental, e optou por um projeto mais ousado. Iria até a faculdade de medicina, peruar Clarissa por lá. Quem sabe até tomar um cafezinho com ela. Embora estivesse numa posição, em termos de altura, mais ou menos intermediária em relação ao espigão da Paulista, a pedalada até a Dr. Arnaldo seria bastante dura. Mas Renato estava se sentindo um semi-deus, e com o treino das últimas duas semanas, sentia-se pronto para pedalar até a lua. Mesmo assim escolheu minuciosamente o trajeto, para não perder altura e evitar, tanto quanto possível, o trânsito. Atravessou o Jardim das Bandeiras, subiu até a Oscar Freire, e por ela sobrevoou a Sumaré. Do outro lado do viaduto, evitou continuar pela Oscar para não perder altura, e foi direto para a Dr. Arnaldo. Estava exausto, mas chegara no plano da faculdade. Pedalar por ali era horrível, cheio de carros e ônibus, e a calçada era inviável, pois tinha uma boa quantidade de pedestres.

Deu uma passeada no estacionamento da escola, encostou a bicicleta num canto, mas não teve a manha de entrar no prédio de calção. Além disso, ficou com medo de roubarem a bicicleta, que era um pouco cara, não muito, mas não era das mais simples. Entendeu finalmente que não tinha nada a ver aparecer ali no território de Clarissa, que ia só queimar o filme com ela, e resolveu ir embora. Desceu a Teodoro com cuidado, no meio do tráfego, até encontrar de novo a Oscar Freire, e achou melhor pegar a Artur Azevedo, que teria bem menos trânsito. Na Artur, deixou a bicicleta embalar, e foi descendo. Quando estava chegando na Henrique Schauman, viu que os carros estavam começando a andar, o que significava que o farol tinha acabado de abrir, e resolveu embalar tudo o que podia para subir a rampa inclinada e curta que há antes do cruzamento, e aproveitar o sinal. Chegou lá em cima com o sinal ainda verde, e resolveu atravessar. O bloco de carros ia um pouco a sua frente. O motorista de um carro entendeu que o sinal estava abrindo, e atravessou a Artur sem diminuir, a uns sessenta por hora. Atingiu Renato em cheio, que voou e aterrisou no meio fio, bastante machucado, com vários ossos quebrados, aparentemente desacordado.