quarta-feira, agosto 31, 2005
Bom dia, Alice!
"But I don't want to go among mad people," Alice remarked.
"Oh, you can't help that," said the Cat: "we're all mad here. I'm mad. You're mad."
"How do you know I'm mad?" said Alice.
"You must be," said the Cat,
"or you wouldn't have come here".
Haverá uma passagem para uma outra dimensão onde a diversão é realmente possível?
A Revelação
Há uns dez anos, depois de um desastre que vitimou um de seus órgãos vitais, o fígado ou talvez o coração, Pecus tão logo convalesceu montou no seu cavalo e enveredou pelo sertão. Sua intenção era iluminar-se no deserto na tradição do Profeta Elias, João Batista, e porque não, o próprio Jesus Cristo e tantos outros.
Andou até sua montaria cair morta. Comeu o que pôde do animal, fazendo um churrasco que durou um dia e uma noite, e ao amanhecer seguiu andando. Caminhou a manhã toda pelas dunas no sol escaldante, numa canícula saárica, sabendo que se não chegasse logo em algum lugar não duraria muito. Urubus agourentos volteavam em espirais sobre sua cabeça.
Não ficou surpreso quando no alto de uma duna encontrou uma barraquinha de côco gelado e cerveja, alguns bugues estacionados e aluguel de sandboards. Tomou uma água de côco, alugou uma pranchinha e deu um drop insano até a lagoa lá embaixo. Refrescou-se um pouco, e foi até uma vila de pescadores, onde embarcou numa grande traineira que ia pescar no Oceano. Pecus então lembrou de Ulisses, Jasão, Jonas e Simão ou Pedro, principalmente quando uma grande tempestade pôs o barco a pique, e agarrado a um destroço foi arremessado num rochedo perdido no meio do mar cinzento e revolto.
Encarapitado na pedra fria açoitada por ventos que ululavam com um ronco surdo, perturbado pelos gritos lancinantes de aves marinhas e rapinas trazidas pelo temporal, Pecus sem esperança percebeu a morte chegando, e lembrou de São Francisco de Assis, Zaratrusta, e os monges que há centenas de anos meditam no Monte Carmelo. Foi nesse momento que simultaneamente a um relâmpago que despencou a poucas dezenas de metros de onde estava, seguido de um ribombante trovão, a sua vida fez sentido e ele entendeu como as coisas funcionavam.
Viu que a alma imortal a que se referiam os místicos nada mais era do que a cultura acumulada e transmitida de geração em geração, em uma continuidade que aumentava as chances de sobrevivência dos descendentes.
Viu que o livro dos mortos dos egípcios realmente funcionava e a imortalidade prometida se dava com a permanência do corpo embalsamado como um objeto de cultura que tinha uma história a contar. Também assim as grandes pirâmides que hoje são conhecidas pelo nome dos mortos que homenagearam, exatamente como os grandes poemas transmitidos pela tradição oral, que constituem os alicerces da nossa cultura.
Viu que o número de memórias se tornou tão grande que foi preciso inventar a escrita para transportar todo aquele tesouro intangível, e depois a imprensa, e depois os computadores, e depois a internet, onde borbulha toda a cultura acumulada desde o seu início, sujeita a quaquilhões de cruzamentos por segundo gerando exponencialmente mais e mais cultura.
Viu ainda que a imortalidade da alma estava também e principalmente na reprodução dos genes, e não haviam tijolos tão pequenos quanto importantes na construção da humanidade como as crianças, mais certas de utilidade do que qualquer livro ou palácio, ainda que em potencial de pouca probabilidade. E teve a certeza de que tudo isso não servia para nada, o que não tinha importância nenhuma.
Andou até sua montaria cair morta. Comeu o que pôde do animal, fazendo um churrasco que durou um dia e uma noite, e ao amanhecer seguiu andando. Caminhou a manhã toda pelas dunas no sol escaldante, numa canícula saárica, sabendo que se não chegasse logo em algum lugar não duraria muito. Urubus agourentos volteavam em espirais sobre sua cabeça.
Não ficou surpreso quando no alto de uma duna encontrou uma barraquinha de côco gelado e cerveja, alguns bugues estacionados e aluguel de sandboards. Tomou uma água de côco, alugou uma pranchinha e deu um drop insano até a lagoa lá embaixo. Refrescou-se um pouco, e foi até uma vila de pescadores, onde embarcou numa grande traineira que ia pescar no Oceano. Pecus então lembrou de Ulisses, Jasão, Jonas e Simão ou Pedro, principalmente quando uma grande tempestade pôs o barco a pique, e agarrado a um destroço foi arremessado num rochedo perdido no meio do mar cinzento e revolto.
Encarapitado na pedra fria açoitada por ventos que ululavam com um ronco surdo, perturbado pelos gritos lancinantes de aves marinhas e rapinas trazidas pelo temporal, Pecus sem esperança percebeu a morte chegando, e lembrou de São Francisco de Assis, Zaratrusta, e os monges que há centenas de anos meditam no Monte Carmelo. Foi nesse momento que simultaneamente a um relâmpago que despencou a poucas dezenas de metros de onde estava, seguido de um ribombante trovão, a sua vida fez sentido e ele entendeu como as coisas funcionavam.
Viu que a alma imortal a que se referiam os místicos nada mais era do que a cultura acumulada e transmitida de geração em geração, em uma continuidade que aumentava as chances de sobrevivência dos descendentes.
Viu que o livro dos mortos dos egípcios realmente funcionava e a imortalidade prometida se dava com a permanência do corpo embalsamado como um objeto de cultura que tinha uma história a contar. Também assim as grandes pirâmides que hoje são conhecidas pelo nome dos mortos que homenagearam, exatamente como os grandes poemas transmitidos pela tradição oral, que constituem os alicerces da nossa cultura.
Viu que o número de memórias se tornou tão grande que foi preciso inventar a escrita para transportar todo aquele tesouro intangível, e depois a imprensa, e depois os computadores, e depois a internet, onde borbulha toda a cultura acumulada desde o seu início, sujeita a quaquilhões de cruzamentos por segundo gerando exponencialmente mais e mais cultura.
Viu ainda que a imortalidade da alma estava também e principalmente na reprodução dos genes, e não haviam tijolos tão pequenos quanto importantes na construção da humanidade como as crianças, mais certas de utilidade do que qualquer livro ou palácio, ainda que em potencial de pouca probabilidade. E teve a certeza de que tudo isso não servia para nada, o que não tinha importância nenhuma.
terça-feira, agosto 30, 2005
Set list
Fiquei fascinado por esta singela canção quando a ouvi com "Los Lobos" no filme "La Bamba". Buddy Holly e Richie Valens morreram juntos no famoso desastre de avião em 3 de fevereiro de 1959. É da última leva de sua curta carreira.
Crying, waiting, hoping, that you'll come back
I just can't seem to get you off my mind
Crying, waiting, hoping, that you'll come back
You're the one I love and I think about you all the time
Crying, my tears keep fallin' all night long
Waiting, I feel so useless, I know it's wrong
To keep crying, waiting, hoping, that you'll come back
Maybe someday soon things will change and you'll be mine
Crying, my tears keep fallin' all night long
Waiting, I feel so useless, I know it's wrong
To keep crying, waiting, hoping, that you'll come back
Maybe someday soon things will change and you'll be mine
Crying, waiting, hoping
I just can't seem to get you off my mind
Crying, waiting, hoping, that you'll come back
You're the one I love and I think about you all the time
Crying, my tears keep fallin' all night long
Waiting, I feel so useless, I know it's wrong
To keep crying, waiting, hoping, that you'll come back
Maybe someday soon things will change and you'll be mine
Crying, my tears keep fallin' all night long
Waiting, I feel so useless, I know it's wrong
To keep crying, waiting, hoping, that you'll come back
Maybe someday soon things will change and you'll be mine
Crying, waiting, hoping
Buddy Holly, 1959
segunda-feira, agosto 29, 2005
Vi o jogo
domingo, agosto 28, 2005
Labirinto
Nunca haverá uma porta, e te achas dentro
e esse alcáçar abarca o universo
e não tem anverso nem reverso
nem muro externo nem secreto centro.
Não cuides que o rigor de teu caminho
que tenazmente se bifurca em outro
que tenazmente se bifurca em outro
terá fim. É de ferro teu destino
como juiz. Não penses na investida
do touro que é um homem, cuja estranha
forma plural dá horror a esta maranha
de interminável pedra entretecida.
Não, não existe. Nem sequer esperes
a fera no negrume do crepúsculo.
(J.L.Borges)
(Tradução Rolando Roque, sério)
Dá pra entender?
e esse alcáçar abarca o universo
e não tem anverso nem reverso
nem muro externo nem secreto centro.
Não cuides que o rigor de teu caminho
que tenazmente se bifurca em outro
que tenazmente se bifurca em outro
terá fim. É de ferro teu destino
como juiz. Não penses na investida
do touro que é um homem, cuja estranha
forma plural dá horror a esta maranha
de interminável pedra entretecida.
Não, não existe. Nem sequer esperes
a fera no negrume do crepúsculo.
(J.L.Borges)
(Tradução Rolando Roque, sério)
Dá pra entender?
sábado, agosto 27, 2005
Set list
sexta-feira, agosto 26, 2005
quinta-feira, agosto 25, 2005
quarta-feira, agosto 24, 2005
terça-feira, agosto 23, 2005
segunda-feira, agosto 22, 2005
Vozes da África
Deus! Ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Embora o som não se propague no espaço, a imagem do poema de Castro Alves, do grito metafísico navegando por milhares de anos no éter faz muito sentido para mim. Deus não está morto. Só mudou-se para muito mais longe.
domingo, agosto 21, 2005
Não me deixe ser incompreendido
Baby, tente entender
Às vezes eu me sinto um rato
Eu não queria que fosse assim, quis ser sempre um anjo
Mas eu sou só um cara simples
Sou um rapaz um tanto perdido
Ó Deus, não me deixe ser incompreendido
Baby, às vezes sou tão descuidado
Vagabundeio como um vira-lata
E é por isso que agora eu me sinto tão culpado
Acredite, pode me virar do avesso
Me sinto mal, mas quero lhe dizer
Eu nunca quis fazer você sofrer
A vida é dura, pra mim também
Mas essa é uma coisa que eu nunca quis fazer
(porque eu te amo)
Ô, agora já estou curado
Nâo tenho mais aqueles maus pensamentos
Às vezes em que pensei que o amor não existia
Que idiota fui, que vazio todo dia
Sou um rapaz um tanto perdido
Ó Deus, não me deixe ser incompreendido
B.Benjamin/S.Marcus/C.Cadwell/P. Bilis
A versão dessa outra canção que assassinei preserva bastante do sentido original da letra. Depois de anos ouvindo as interpretações dos Animals, Santa Esmeralda, Charo, Nina Simone, tive vontade de me apropriar indevidamente dela somente quando conheci a versão de Elvis Costello, que eu acho estourado a melhor.
sábado, agosto 20, 2005
sexta-feira, agosto 19, 2005
quinta-feira, agosto 18, 2005
Post Scriptum
Como me ensinou minha amiga Lúcia Carvalho, o post tem uma permanência consideravelmente maior do que os comentários. Assim, mui penhoradamente agradeço aos gloriosos leitores que me carregaram através dessa saga patética de um stalker light, um tipinho comum, nas expressões precisas cunhadas pelos comentaristas, na qual não acontece rigorosamente nada digno de nota.
Assim, tal qual na entrega do Oscar, agradeço de memória com o risco de esquecer alguém, e sem fazer os links devidos (depois eu faço com calma), sem ordem alfabética ou hierárquica, mas meramente randômica, a Anna Riso, Peri S. Coppio, Tec Lado, Marília, Raquel, Juliana, Ju Géve, Patrícia Köheler, Fitzwilliam, W. Shakespeare, Paulinha, Guga Alayon, Stijn, Samanta Lopes, Márcia Kawabe, Malvina, Laurinha, Ronzi, Viva, Simy, Monique, Heide, Edu, Luma, Marô, Alberto, Cynthia, Valerie, Fernando Cals, Helô, Luci, Flávio Prada, Milton e anônimos, muito obrigado.
Um agradecimento especial aos que ajudaram a divulgar a parada, com imerecidos elogios, que reproduzo, e à Lúcia Carvalho, que criou o simpático selinho sobre o desenho do Dudi, à Sheila Leirner, que o adotou, e à Laura, que também pôs o livro em destaque, todos com comentários relevantes e divertidos:
Jayme Serva, do Dito Assim, em 22.6.2005:
Molto bene trovata a história "Stalker", contada em capítulos lá pelo Pecus Bilis. Se você ainda não começou a ler, corra lá, já vai pelo capítulo 4. É legal ler de um em um, então tire o atraso. Vale lembrar que o Machado também escrevia em capítulos.
Danina Fromer, do Botar Moral Nessa Bagaça, em 26.6.2005:
Leiam!!! Novelinha rulez!!!!!!!!!!!
Dudi Maia Rosa, do blog homônimo, em 27.6.2005, que desenhou o livrão.
Assim, tal qual na entrega do Oscar, agradeço de memória com o risco de esquecer alguém, e sem fazer os links devidos (depois eu faço com calma), sem ordem alfabética ou hierárquica, mas meramente randômica, a Anna Riso, Peri S. Coppio, Tec Lado, Marília, Raquel, Juliana, Ju Géve, Patrícia Köheler, Fitzwilliam, W. Shakespeare, Paulinha, Guga Alayon, Stijn, Samanta Lopes, Márcia Kawabe, Malvina, Laurinha, Ronzi, Viva, Simy, Monique, Heide, Edu, Luma, Marô, Alberto, Cynthia, Valerie, Fernando Cals, Helô, Luci, Flávio Prada, Milton e anônimos, muito obrigado.
Um agradecimento especial aos que ajudaram a divulgar a parada, com imerecidos elogios, que reproduzo, e à Lúcia Carvalho, que criou o simpático selinho sobre o desenho do Dudi, à Sheila Leirner, que o adotou, e à Laura, que também pôs o livro em destaque, todos com comentários relevantes e divertidos:
Jayme Serva, do Dito Assim, em 22.6.2005:
Molto bene trovata a história "Stalker", contada em capítulos lá pelo Pecus Bilis. Se você ainda não começou a ler, corra lá, já vai pelo capítulo 4. É legal ler de um em um, então tire o atraso. Vale lembrar que o Machado também escrevia em capítulos.
Danina Fromer, do Botar Moral Nessa Bagaça, em 26.6.2005:
Leiam!!! Novelinha rulez!!!!!!!!!!!
Dudi Maia Rosa, do blog homônimo, em 27.6.2005, que desenhou o livrão.
Denise Arcoverde, do Síndrome de Estocolmo, em 9.7.2005:
Acompanhe o romance do pecus bilis, Stalker, com a história muito "juicy" do Renato, Fernanda e Clarisse. O cara escreve bem demais, já tá cheio de fãs que se metem na história o tempo todo e até ganhou uma ilustracão pro seu livro do grande artista Dudi Maia Rosa (ao lado). Voces podem acompanhar os capítulos desde o primeiro, nos links lá do blog dele, da coluna da esquerda, abaixo.
Leila Couceiro, do Stuck in Sac, em 29.7.2005:
O blog novel de Pecus
Guilty pleasure ou um futuro sucesso de crítica? Who cares! O livro que está sendo publicado post a post, quer dizer, capítulo a capítulo, no blog do escritor (ainda) anônimo Pecus Bilis, é incrivelmente excitante, daqueles que você começa a ler e não consegue parar. Quem acompanha a história há mais tempo já alcançou o capítulo mais recente e fica esperando ansiosamente a próxima etapa do “amor corrompido, patológico, metódico, quase um esporte ou uma segunda profissão” do paulistano Renato, investidor no mercado de capitais e casado, pela universitária Clarissa. Os leitores fiéis do blog comentam a trama empolgados, mas também criticam clichês no texto ou algum comportamento que não combine com um personagem. Vejam esse divertido trecho de “O Stalker”:
Idelber Avelar, do Biscoito Fino e a Massa, em 1.8.2005:
Idelber Avelar, do Biscoito Fino e a Massa, em 1.8.2005:
Por falar em romances assombrosos, estão imperdíveis as aventuras triangulares d' O Stalker, narrativa publicada por entregas (como num folhetim do século XIX) no blog de pecus bilis. Cheguei tarde à coisa, li 36 capítulos numa sentada e já estou irresistivelmente enlaçado pela trama. As caixas de comentários são um espetáculo à parte.
E agradeço ainda à leitora Vera, que se arriscou a dar a palavra final à Clarissa, citando um complexo e misterioso soneto do Boca do Inferno:
“Na oração que desterra ... a terra,
Quer Deus que a quem está o cuidado ... dado,
Pregue que a vida é emprestado ... estado,
Mistérios mil que desenterra ... enterra.
Quem não cuida de si, que é terra ... erra,
Que o alto Rei, por afamado ... amado,
É quem lhe assiste ao desvelado ... lado,
Da morte ao ar não desaferra, ... aferra.
Quem do mundo a mortal loucura ... cura,
A vontade de Deus sagrada ... agrada,
Firmar-lhe a vida em atadura ... dura.
Ó voz zelosa, que dobrada ... brada,
Já sei que a flor da formosura ... usura,
Será no fim dessa jornada ... nada."
(Gregório de Matos)
Ponderei que o poema vestiu como uma luva a Clarissa, mas que se ela cometesse o erro de mandar esse mail ao Renato, ele faria mil elucubrações e dissecaria mil significados favoráveis. Um stalker sempre tem a última palavra. Ufa! Ainda bem que a estória acabou e eu não preciso mais personificar o Renato e decifrar essa loucura.
Muito obrigado a todos. Amigos?
E agradeço ainda à leitora Vera, que se arriscou a dar a palavra final à Clarissa, citando um complexo e misterioso soneto do Boca do Inferno:
“Na oração que desterra ... a terra,
Quer Deus que a quem está o cuidado ... dado,
Pregue que a vida é emprestado ... estado,
Mistérios mil que desenterra ... enterra.
Quem não cuida de si, que é terra ... erra,
Que o alto Rei, por afamado ... amado,
É quem lhe assiste ao desvelado ... lado,
Da morte ao ar não desaferra, ... aferra.
Quem do mundo a mortal loucura ... cura,
A vontade de Deus sagrada ... agrada,
Firmar-lhe a vida em atadura ... dura.
Ó voz zelosa, que dobrada ... brada,
Já sei que a flor da formosura ... usura,
Será no fim dessa jornada ... nada."
(Gregório de Matos)
Ponderei que o poema vestiu como uma luva a Clarissa, mas que se ela cometesse o erro de mandar esse mail ao Renato, ele faria mil elucubrações e dissecaria mil significados favoráveis. Um stalker sempre tem a última palavra. Ufa! Ainda bem que a estória acabou e eu não preciso mais personificar o Renato e decifrar essa loucura.
Muito obrigado a todos. Amigos?
quarta-feira, agosto 17, 2005
O Stalker - Capítulo 54 (último)
Depois do vexame das mensagens desconexas sem resposta, Renato decidiu por a viola no saco e cuidar da sua vida. Superada a aventura farmacológica retomou o ritmo normal do seu trabalho. Concluíram o acordo com os controladores da mineradora, e receberam aquele dinheiro todo que estavam esperando. Trataram de liquidar a ex-corretora, antes que alguém viesse reclamar alguma coisa, e repartiram o butim, cindindo a sociedade em várias outras, uma de cada um dos antigos sócios. A Renato coube além do apartamento onde morava, e os carros que usava, uma boa bolada em dinheiro vivo. Ao contrário do que Fernanda e sua mãe pensavam, Renato nunca cogitou de escamotear do casamento qualquer parcela do que tinha, e verteu tudo o que recebeu numa sociedade com Fernanda em partes iguais. Aplicou todo o dinheiro em fundos de renda variável geridos por um conhecido seu, com os ativos custodiados em bancos, com a condição de que pudesse acompanhar as variações da composição dos fundos on-line. Estimava que se não comesse o capital tinha condições de ter uma renda muito próxima daquela que tinha trabalhando. Se fosse econômico e tivesse um pouco de sorte poderia até fazer crescer o que tinha. Com a ex-corretora fechada, não tinha nenhuma perspectiva profissional imediata.
As férias escolares de Renatinho estavam para começar e resolveram alugar uma casa na praia, para lamberem as feridas e tentarem reconstituir o casamento. Nunca tinham conversado sobre os estragos feitos de parte à parte, que nunca ficaram claros um para o outro, ainda que os dois intuíssem as conspirações e crimes cometidos por ambos. Fernanda queria a Baleia, em São Sebastião, aonde “todo mundo ia”. Renato acabou fechando uma casa na Praia Dura, em Ubatuba, onde certamente ficariam mais isolados, e poderiam se concentrar em ser uma família normal. E era um pouco mais barato. Renato compensou a diferença de preço exigindo que na casa tivesse uma conexão rápida de internet, para o caso de Clarissa querer lhe mandar um e-mail, o que ele achava altamente improvável.
Chegando lá, Renato, sem nada para fazer, voltou a ficar completamente perdido. Passou a fazer esporte furiosamente. Corria, nadava, brincava com as crianças, comia, dormia, e tudo se repetia. Fazia sexo com Fernanda com freqüência, de forma mecânica e aplicada, como se ela fosse um aparelho de ginástica. Depois de alguns dias, talvez por influência da lembrança de Marcos, foi até a cidade e comprou um longboard usado, e os apetrechos necessários para o surf. Nunca tinha surfado com pranchão, mas sempre tinha achado bonito aquele surf tranqüilo de caminhar sobre a prancha. Desenferrujou um pouco na Praia Dura, e percebeu que ainda sabia ler as ondas e se posicionar lá fora. Seus fundamentos estavam intactos. Passou a pegar o carro de manhã cedinho e ir para Itamambuca, chegando antes do crowd dos locais, e em pouco tempo dava os primeiros passos na prancha sem simplesmente se arrastar, e fazia amplas curvas nas gordas e longas paredes. Estava fascinado com o prazer infantil que o surf lhe proporcionava, e aquela praia ainda quase selvagem de manhãzinha era uma experiência e tanto de contato íntimo com a natureza. Volta e meia via tartarugas, algumas voando nas ondas verdes transparentes, e cardumes de peixes pulando de uma vez só para fora d’água.
Um dia estava indo para lá, no trevo da saída da cidade, e cruzou com um carro com uma prancha em cima que lhe fez sinais de farol e buzinou. Encostaram, e Renato reconheceu um dos madrugadores do pico, vestido com um velha camiseta “diga não às drogas”. Disse-lhe que o mar estava muito mexido, e sugeriu irem para a Vermelha do Centro. Chegando lá, constataram que não estava lá essas coisas. Havia uma roda na areia de jovens tresnoitados, possivelmente drogados, e Juninho, como se apresentou, comentou que aquela visão lhe dava calafrios de horror. Renato percebeu que ele era um ex-drogado tentando refazer a sua vida, e se identificou com ele. Voltaram a Itamambuca, e o mar, apesar de mexido, tinha alguma consistência e o surf foi possível. Juninho usava uma prancha velhíssima, um longboard escuro dos anos e do sol, que havia sido de seu pai. Trabalhava em um restaurante por quilo no centro, e surfava cedinho. Ficaram amigos e essa ligação ajudou Renato a ser tolerado pelos locais.
Na noite de natal, comemorado só pela pequena família e a babá, com um peixe assado recheado de farofa, entrou uma violenta frente fria, com chuvas e ventos fortíssimos. De manhã cedo, Renato pôs o pranchão na capota e foi para Itamambuca. Tinha visto a tempestade chegando na internet, e achou que se estivesse surfável, era o único lugar que suportaria aquele volume de onda. Sentia-se em forma e apto a encarar qualquer mar. A grande tempestade marinha tinha encostado, e chegando lá Renato viu um mar enorme, totalmente desorganizado e caótico, o vento sul soprando com intensidade, o céu carregado e a praia deserta. Renato sofreu a tentação do eficiente canal formado pelo rio, e tomou a decisão temerária de entrar, com um ímpeto quase suicida.
Com as fortes chuvas da noite, o rio, cheio de folhas e galhos, estava com o volume mais que duplicado e parecia um trem expresso. Depois de remar um pouco pelo canal junto às pedras, que era fundo e por isso as ondas lá quase não quebravam, Renato percebeu que não tinha mais volta. Com a força da corrente, a única saída era o oceano. Pegou pela frente duas ou três espumas maiores, que não chegaram a interromper a sua marcha, e logo que se viu livre da arrebentação, começou a remar em direção ao norte, para fugir da corrente do rio que o arrastava para fora. De repente entre um balanço e outro das grandes marolas que oscilavam, percebeu que um pico escuro se aproximava. Sentou-se a cavalo na prancha, e viu que era uma enorme série entrando, a maior que já vira na vida, a uns cinqüenta metros de onde estava. Renato remou com todas as suas forças em direção àquela massa, tentando evitar pensar na violência do caldo que tomaria. Subiu a grande onda na hora em que ela começava a se esboroar, e ao chegar lá em cima capotou a prancha rapidamente e segurando-a firmemente por cima dele conseguiu passar sem ser sugado. Desvirou tão rápido quanto pôde na prancha, e viu que atrás daquela vinha outra maior ainda. Remou novamente com toda a velocidade que pôde e conseguiu contornar os picos meio indefinidos que quebravam na grande parede, conseguindo passar ileso entre dois deles. Continuou remando, e passou a terceira, que já era menor, com facilidade.
Sentou na prancha e constatou que estava fodido e mal pago. Estava no meio do oceano, além da linha da ponta de pedra, e a forte corrente marinha, aliada à influência do rio, o arrastava para o norte e para fora. Possivelmente a velocidade da corrente era igual ou maior do que a da sua remada, o que podia significar que talvez não conseguisse voltar para a zona da arrebentação, e sair da água. Tratava-se de lutar pela vida. A seu favor, estava o fato de que o longboard tinha boa flutuação e uma remada muito eficiente. E estava em boa forma, o que significava que poderia remar de forma constante por uma hora ou mais. Decidiu que tomaria um rumo enviesado na corrente, tentando atravessá-la aos poucos, para se aproximar da praia em direção ao canto norte. E pôs-se a remar, sem muita segurança no seu plano, na sua avaliação da sua posição e das correntes. A sensação era de que não saía do lugar, mas tentou ficar tranqüilo e apenas remar com constância. Remou mais de uma hora até conseguir se aproximar da arrebentação novamente, num lugar onde não mais sentia a corrente para fora, apenas um forte arrasto lateral. Agora era pegar uma daquelas enormes ondas fechadas para tentar sair. Não teve que esperar muito, e logo uma série que varreria a praia inteira levantou-se nas suas costas, e Renato, sem alternativa, remou com as forças que lhe restavam num drop atrasado e sem esperança. Mal levantou na prancha a onda o pegou e o arremessou ao fundo segurando-o lá por longos segundos, durante os quais ficou perdido e sem ar. Sentiu a puxada forte do leash na perna, quando punha a cabeça para fora, e engoliu água. Outra onda veio atrás, e a cena se repetiu, antes que ele tivesse a oportunidade de subir na prancha. Depois de alguma luta, finalmente conseguiu pegar uma espuma e atravessou quase toda a extensa arrebentação quando caiu num buraco perto da areia. A corrente forte começou a puxá-lo novamente para fora, e Renato só não se desesperou porque sabia que não havia mais risco. Remou com suas últimas forças para sair da água e quando pegou a última espuminha deixou-se levar até que estivesse com água pela canela. Saiu cambaleando da água, vomitou, jogou-se na areia e dormiu por uma hora. Estava quase no canto norte.
Quando acordou, dali a uma hora, a praia ainda estava deserta, e sem ninguém que testemunhasse ou com quem pudesse comentar o seu desastre, pôs a prancha na capota e voltou para casa. Não contou nada a Fernanda, com vergonha da sua irresponsabilidade. Sabia que quase tinha morrido por pura estupidez. Dormiu quase o dia inteiro. No dia seguinte, pôs a prancha novamente na capota, foi a Itamambuca. O tempo havia melhorado, o mar havia se alinhado, e depois de pelejar uma hora e meia em tentativas erradas, pegou uma enorme e bem formada onda, com a qual foi quase até a areia e que lhe deu um enorme prazer. Sentiu plenamente reparada a sua cagada do dia anterior. Sabia que não teria forças para pegar outra naquele dia e foi embora.
Na volta para casa, fez um balanço mental do atribulado ano, e resolveu que não se deixaria mais levar por paixão alguma. Deixaria Clarissa em paz e seguiria sua via. Seria sempre prático e racional. E foi o que fez. Ele e Fernanda voltaram a fazer o papel de casal feliz, que acabou se incorporando de novo às suas personalidades, e viviam bem. Renato, após participar das reuniões de análise de conjuntura e mercado no asset-management onde investira o seu dinheiro, foi considerado uma contribuição valiosa. Boa parte dos fundos era da própria equipe, e Renato acabou conseguindo uma posição. Apenas um resquício do seu comportamento desviante se mantinha. Todo dia de manhã, ao chegar ao escritório, a primeira coisa que fazia era checar o e-mail que tinha usado para mandar mensagens para Clarissa. A segunda era dar uma busca no seu nome para ver se havia alguma novidade sobre ela. No íntimo, sonhava. Afinal, eram jovens e o mundo tão cedo não pararia de dar as suas voltas.
As férias escolares de Renatinho estavam para começar e resolveram alugar uma casa na praia, para lamberem as feridas e tentarem reconstituir o casamento. Nunca tinham conversado sobre os estragos feitos de parte à parte, que nunca ficaram claros um para o outro, ainda que os dois intuíssem as conspirações e crimes cometidos por ambos. Fernanda queria a Baleia, em São Sebastião, aonde “todo mundo ia”. Renato acabou fechando uma casa na Praia Dura, em Ubatuba, onde certamente ficariam mais isolados, e poderiam se concentrar em ser uma família normal. E era um pouco mais barato. Renato compensou a diferença de preço exigindo que na casa tivesse uma conexão rápida de internet, para o caso de Clarissa querer lhe mandar um e-mail, o que ele achava altamente improvável.
Chegando lá, Renato, sem nada para fazer, voltou a ficar completamente perdido. Passou a fazer esporte furiosamente. Corria, nadava, brincava com as crianças, comia, dormia, e tudo se repetia. Fazia sexo com Fernanda com freqüência, de forma mecânica e aplicada, como se ela fosse um aparelho de ginástica. Depois de alguns dias, talvez por influência da lembrança de Marcos, foi até a cidade e comprou um longboard usado, e os apetrechos necessários para o surf. Nunca tinha surfado com pranchão, mas sempre tinha achado bonito aquele surf tranqüilo de caminhar sobre a prancha. Desenferrujou um pouco na Praia Dura, e percebeu que ainda sabia ler as ondas e se posicionar lá fora. Seus fundamentos estavam intactos. Passou a pegar o carro de manhã cedinho e ir para Itamambuca, chegando antes do crowd dos locais, e em pouco tempo dava os primeiros passos na prancha sem simplesmente se arrastar, e fazia amplas curvas nas gordas e longas paredes. Estava fascinado com o prazer infantil que o surf lhe proporcionava, e aquela praia ainda quase selvagem de manhãzinha era uma experiência e tanto de contato íntimo com a natureza. Volta e meia via tartarugas, algumas voando nas ondas verdes transparentes, e cardumes de peixes pulando de uma vez só para fora d’água.
Um dia estava indo para lá, no trevo da saída da cidade, e cruzou com um carro com uma prancha em cima que lhe fez sinais de farol e buzinou. Encostaram, e Renato reconheceu um dos madrugadores do pico, vestido com um velha camiseta “diga não às drogas”. Disse-lhe que o mar estava muito mexido, e sugeriu irem para a Vermelha do Centro. Chegando lá, constataram que não estava lá essas coisas. Havia uma roda na areia de jovens tresnoitados, possivelmente drogados, e Juninho, como se apresentou, comentou que aquela visão lhe dava calafrios de horror. Renato percebeu que ele era um ex-drogado tentando refazer a sua vida, e se identificou com ele. Voltaram a Itamambuca, e o mar, apesar de mexido, tinha alguma consistência e o surf foi possível. Juninho usava uma prancha velhíssima, um longboard escuro dos anos e do sol, que havia sido de seu pai. Trabalhava em um restaurante por quilo no centro, e surfava cedinho. Ficaram amigos e essa ligação ajudou Renato a ser tolerado pelos locais.
Na noite de natal, comemorado só pela pequena família e a babá, com um peixe assado recheado de farofa, entrou uma violenta frente fria, com chuvas e ventos fortíssimos. De manhã cedo, Renato pôs o pranchão na capota e foi para Itamambuca. Tinha visto a tempestade chegando na internet, e achou que se estivesse surfável, era o único lugar que suportaria aquele volume de onda. Sentia-se em forma e apto a encarar qualquer mar. A grande tempestade marinha tinha encostado, e chegando lá Renato viu um mar enorme, totalmente desorganizado e caótico, o vento sul soprando com intensidade, o céu carregado e a praia deserta. Renato sofreu a tentação do eficiente canal formado pelo rio, e tomou a decisão temerária de entrar, com um ímpeto quase suicida.
Com as fortes chuvas da noite, o rio, cheio de folhas e galhos, estava com o volume mais que duplicado e parecia um trem expresso. Depois de remar um pouco pelo canal junto às pedras, que era fundo e por isso as ondas lá quase não quebravam, Renato percebeu que não tinha mais volta. Com a força da corrente, a única saída era o oceano. Pegou pela frente duas ou três espumas maiores, que não chegaram a interromper a sua marcha, e logo que se viu livre da arrebentação, começou a remar em direção ao norte, para fugir da corrente do rio que o arrastava para fora. De repente entre um balanço e outro das grandes marolas que oscilavam, percebeu que um pico escuro se aproximava. Sentou-se a cavalo na prancha, e viu que era uma enorme série entrando, a maior que já vira na vida, a uns cinqüenta metros de onde estava. Renato remou com todas as suas forças em direção àquela massa, tentando evitar pensar na violência do caldo que tomaria. Subiu a grande onda na hora em que ela começava a se esboroar, e ao chegar lá em cima capotou a prancha rapidamente e segurando-a firmemente por cima dele conseguiu passar sem ser sugado. Desvirou tão rápido quanto pôde na prancha, e viu que atrás daquela vinha outra maior ainda. Remou novamente com toda a velocidade que pôde e conseguiu contornar os picos meio indefinidos que quebravam na grande parede, conseguindo passar ileso entre dois deles. Continuou remando, e passou a terceira, que já era menor, com facilidade.
Sentou na prancha e constatou que estava fodido e mal pago. Estava no meio do oceano, além da linha da ponta de pedra, e a forte corrente marinha, aliada à influência do rio, o arrastava para o norte e para fora. Possivelmente a velocidade da corrente era igual ou maior do que a da sua remada, o que podia significar que talvez não conseguisse voltar para a zona da arrebentação, e sair da água. Tratava-se de lutar pela vida. A seu favor, estava o fato de que o longboard tinha boa flutuação e uma remada muito eficiente. E estava em boa forma, o que significava que poderia remar de forma constante por uma hora ou mais. Decidiu que tomaria um rumo enviesado na corrente, tentando atravessá-la aos poucos, para se aproximar da praia em direção ao canto norte. E pôs-se a remar, sem muita segurança no seu plano, na sua avaliação da sua posição e das correntes. A sensação era de que não saía do lugar, mas tentou ficar tranqüilo e apenas remar com constância. Remou mais de uma hora até conseguir se aproximar da arrebentação novamente, num lugar onde não mais sentia a corrente para fora, apenas um forte arrasto lateral. Agora era pegar uma daquelas enormes ondas fechadas para tentar sair. Não teve que esperar muito, e logo uma série que varreria a praia inteira levantou-se nas suas costas, e Renato, sem alternativa, remou com as forças que lhe restavam num drop atrasado e sem esperança. Mal levantou na prancha a onda o pegou e o arremessou ao fundo segurando-o lá por longos segundos, durante os quais ficou perdido e sem ar. Sentiu a puxada forte do leash na perna, quando punha a cabeça para fora, e engoliu água. Outra onda veio atrás, e a cena se repetiu, antes que ele tivesse a oportunidade de subir na prancha. Depois de alguma luta, finalmente conseguiu pegar uma espuma e atravessou quase toda a extensa arrebentação quando caiu num buraco perto da areia. A corrente forte começou a puxá-lo novamente para fora, e Renato só não se desesperou porque sabia que não havia mais risco. Remou com suas últimas forças para sair da água e quando pegou a última espuminha deixou-se levar até que estivesse com água pela canela. Saiu cambaleando da água, vomitou, jogou-se na areia e dormiu por uma hora. Estava quase no canto norte.
Quando acordou, dali a uma hora, a praia ainda estava deserta, e sem ninguém que testemunhasse ou com quem pudesse comentar o seu desastre, pôs a prancha na capota e voltou para casa. Não contou nada a Fernanda, com vergonha da sua irresponsabilidade. Sabia que quase tinha morrido por pura estupidez. Dormiu quase o dia inteiro. No dia seguinte, pôs a prancha novamente na capota, foi a Itamambuca. O tempo havia melhorado, o mar havia se alinhado, e depois de pelejar uma hora e meia em tentativas erradas, pegou uma enorme e bem formada onda, com a qual foi quase até a areia e que lhe deu um enorme prazer. Sentiu plenamente reparada a sua cagada do dia anterior. Sabia que não teria forças para pegar outra naquele dia e foi embora.
Na volta para casa, fez um balanço mental do atribulado ano, e resolveu que não se deixaria mais levar por paixão alguma. Deixaria Clarissa em paz e seguiria sua via. Seria sempre prático e racional. E foi o que fez. Ele e Fernanda voltaram a fazer o papel de casal feliz, que acabou se incorporando de novo às suas personalidades, e viviam bem. Renato, após participar das reuniões de análise de conjuntura e mercado no asset-management onde investira o seu dinheiro, foi considerado uma contribuição valiosa. Boa parte dos fundos era da própria equipe, e Renato acabou conseguindo uma posição. Apenas um resquício do seu comportamento desviante se mantinha. Todo dia de manhã, ao chegar ao escritório, a primeira coisa que fazia era checar o e-mail que tinha usado para mandar mensagens para Clarissa. A segunda era dar uma busca no seu nome para ver se havia alguma novidade sobre ela. No íntimo, sonhava. Afinal, eram jovens e o mundo tão cedo não pararia de dar as suas voltas.
FIM
terça-feira, agosto 16, 2005
O Stalker - Capítulo 53
Depois daquelas últimas mensagens desconexas, Clarissa estava já há um mês sem nenhuma notícia de Renato. E se Alexandra estivesse certa, e Renato não fosse nem um pouco louco, só fosse assim um apaixonado desajeitado, preso num casamento errado, como Montgomery Cliff em “Um lugar ao sol”, como ele dissera num daqueles e-mails loucos que lhe mandou? Uma pessoa encurralada faz coisas estranhas. Uma pessoa encurralada tomando psicotrópicos pode fazer coisas mais estranhas ainda. E falando coisas desconexas, então, o que podia estar acontecendo? Renato nunca lhe parecera louco, nem quando o encontrou na estradinha de terra perto da casa de Danilo, no sertão do Camburi. Tinha passado todos os limites, sido muito grosso, muito mal educado, mas que ela tinha dado mole para ele, tinha. Como ele podia ter tomado ao pé da letra o seu comando para que fosse ao psiquiatra? E como aquele imbecil daquele professor podia ter dado drogas àquele cara, que era óbvio não estar doente? Sentia-se culpada e preocupada.
As coisas iam bem com o Penza. Incrível como ele nunca tinha notado a existência de Renato, tendo tudo acontecido tão perto dele. O namoro vinha se consolidando e Clarissa sentia-se mais segura em deixar Penza solto e exposto no palco, quando ela não ia vê-lo tocar. Era sua autoconfiança que vinha aumentando, um pouco graças aos arroubos de Renato, que fortaleceram consideravelmente o seu ego. Encontrava-se pouco com o namorado, mas falavam-se quase todo dia, senão por telefone por mensagens instantâneas. E trepavam toda vez que tinham oportunidade. Às vezes se perguntava como teria sido com o Renato, se era verdade aquilo que ele dizia que largaria a família por ela. Será que nunca mais o veria?
Renato estava mais forte do que nunca. Livre do antidepressivo, também reduzido aos poucos, sentiu sua virilidade voltar rapidamente, e apesar de pensar em Clarissa o tempo todo, entendeu que estava na hora de parar com aquele comportamento auto-destrutivo. Estava já há alguns dias pensando nos fatos da sua infância, por causa da sua última entrevista com o médico. Tentava ainda entender o seu comportamento. Será que poderia ter alguma relação com aquele grande evento desagradável ocorrido na quinta série? Renato recapitulou os fatos.
Renato lembrou de quando começou a freqüentar a casa do seu primeiro amigo do novo colégio, Marcos, na quinta série. Ele tinha uma mãe maluca que gritava com voz esganiçada pela casa de penhoar de matelassê de nailon branco e florido. E dois irmãos mais velhos que ignoravam a existência da mãe. O pai era a tranqüilidade personificada e ausência completa. Marcos era o menor, e os mais velhos sabiam tudo de tudo. Na sua casa Renato começou a ouvir punk rock, o new wave, o rock inglês moderno, e os clássicos psicodélicos dos anos sessenta e setenta. Renato e Marcos descobriram rapidamente uma grande afinidade. Ambos eram apaixonados pela vizinha de Renato, que não estava nem aí para eles, e Marcos também a conhecia porque os pais eram amigos. Tinham dez pra onze anos, e surgiu a brilhante idéia – difícil saber de quem foi o germe – de escrever-lhe uma carta obscena marcando um encontro num terreno baldio. Olhando com sua perspectiva de adulto pareceu a Renato uma violência enorme, explicável, mas não justificada pela angústia do desejo. Na hora da loucura pareceu até possível. Enfiaram a carta na caixa-de-correio e ficaram espreitando o horário. Foram descobertos pelo irmão mais velho da menina, que perguntou a um pedreiro de uma obra da rua quem tinha sido. Tocou a campainha, mandou chamar Renato, e mostrou-lhe a carta já meio rasgada com a mão trêmula, perguntando se ele tinha mandado aquilo pra irmã dele. Renato balbuciou qualquer coisa confirmando. Ele rosnou alguma ofensa já ensaiada, que Renato aceitou sem falar nada. Os pais todos se conheciam e foram acionados. Renato ficou trancado no banheiro horas esperando aterrorizado de vergonha a hora em que seria chamado por seu pai. À noite ele o chamou, mostrou-lhe a carta, já mais estragada, examinada, amassada rasgada e suja, também com a mão trêmula, confirmou a autoria e o chamou de coisas horríveis. Marcos foi obrigado a confrontar toda a família da garota de uma vez, junto com a sua, no clube, no fim daquela mesma semana. Foi chorar na piscina debaixo d’água. O pai de Renato consultou um psicólogo amigo seu, que deu risada e disse que não tinha importância nenhuma, mas isso Renato foi ficar sabendo anos depois. A amizade foi proibida. Conviviam na escola, a proibição foi ficando inviável, e virou só uma implicância. A mãe de Renato tinha certeza que a má companhia era Marcos. Renato e Marcos de qualquer jeito acabaram mantendo a amizade. Com quatorze anos surfavam no Guarujá, andavam de skate, fumavam maconha, tudo aprendido precocemente com os irmãos de Marcos. O amigo de Renato tomou pau na oitava série, e se afastaram um pouco. Encontravam-se às vezes, por aí. Depois de algum tempo, Renato já com mais de vinte anos, teve a notícia de ele estava meio maluco mesmo, problema de droga, e andara perseguindo a irmãzinha temporã da menina da carta, uns cinco ou seis anos mais moça do que ele. Aquilo lhe pareceu uma fixação esquisita, pois ela era quase igual a irmã. Um dia, quanto estava pelos trinta, viu o anúncio de sua missa de sétimo dia. Não foi. Uns dois anos depois, numa festa de trinta anos de uma amigo, encontrou um irmão de Marcos. E Renato, completamente alto, teve com ele uma conversa emocional e besta, ao som daquele mesmo rock dos oitenta, e todas as boas lembranças possíveis foram ofuscadas pela notícia de que Marcos havia se matado.
Será que vinha daí sua fixação por Clarissa? Será que sua mente tinha ficado aprisionada por aquele evento traumático, que agora se reeditava naquele amor doentio? Não espreitavam a casa da sua vizinha, e não lhe mandaram a tal carta obscena? Não era isso que Renato tinha feito com Clarissa? A morte de Marcos não tinha sido imediatamente antes do início daquela enorme reviravolta na sua vida? Será que a notícia da morte de Marcos não deflagara um processo inconsciente de liberação e reedição daquele conteúdo emocional traumático? Até uma explicação sobrenatural seria possível, de encosto ou espírito dominado, mas Renato, absolutamente cético, não se preocupou com isso.
Toda essa teoria, fosse ou não verdadeira, não lhe ajudou em nada, pois continuava obcecado por Clarissa.
As coisas iam bem com o Penza. Incrível como ele nunca tinha notado a existência de Renato, tendo tudo acontecido tão perto dele. O namoro vinha se consolidando e Clarissa sentia-se mais segura em deixar Penza solto e exposto no palco, quando ela não ia vê-lo tocar. Era sua autoconfiança que vinha aumentando, um pouco graças aos arroubos de Renato, que fortaleceram consideravelmente o seu ego. Encontrava-se pouco com o namorado, mas falavam-se quase todo dia, senão por telefone por mensagens instantâneas. E trepavam toda vez que tinham oportunidade. Às vezes se perguntava como teria sido com o Renato, se era verdade aquilo que ele dizia que largaria a família por ela. Será que nunca mais o veria?
Renato estava mais forte do que nunca. Livre do antidepressivo, também reduzido aos poucos, sentiu sua virilidade voltar rapidamente, e apesar de pensar em Clarissa o tempo todo, entendeu que estava na hora de parar com aquele comportamento auto-destrutivo. Estava já há alguns dias pensando nos fatos da sua infância, por causa da sua última entrevista com o médico. Tentava ainda entender o seu comportamento. Será que poderia ter alguma relação com aquele grande evento desagradável ocorrido na quinta série? Renato recapitulou os fatos.
Renato lembrou de quando começou a freqüentar a casa do seu primeiro amigo do novo colégio, Marcos, na quinta série. Ele tinha uma mãe maluca que gritava com voz esganiçada pela casa de penhoar de matelassê de nailon branco e florido. E dois irmãos mais velhos que ignoravam a existência da mãe. O pai era a tranqüilidade personificada e ausência completa. Marcos era o menor, e os mais velhos sabiam tudo de tudo. Na sua casa Renato começou a ouvir punk rock, o new wave, o rock inglês moderno, e os clássicos psicodélicos dos anos sessenta e setenta. Renato e Marcos descobriram rapidamente uma grande afinidade. Ambos eram apaixonados pela vizinha de Renato, que não estava nem aí para eles, e Marcos também a conhecia porque os pais eram amigos. Tinham dez pra onze anos, e surgiu a brilhante idéia – difícil saber de quem foi o germe – de escrever-lhe uma carta obscena marcando um encontro num terreno baldio. Olhando com sua perspectiva de adulto pareceu a Renato uma violência enorme, explicável, mas não justificada pela angústia do desejo. Na hora da loucura pareceu até possível. Enfiaram a carta na caixa-de-correio e ficaram espreitando o horário. Foram descobertos pelo irmão mais velho da menina, que perguntou a um pedreiro de uma obra da rua quem tinha sido. Tocou a campainha, mandou chamar Renato, e mostrou-lhe a carta já meio rasgada com a mão trêmula, perguntando se ele tinha mandado aquilo pra irmã dele. Renato balbuciou qualquer coisa confirmando. Ele rosnou alguma ofensa já ensaiada, que Renato aceitou sem falar nada. Os pais todos se conheciam e foram acionados. Renato ficou trancado no banheiro horas esperando aterrorizado de vergonha a hora em que seria chamado por seu pai. À noite ele o chamou, mostrou-lhe a carta, já mais estragada, examinada, amassada rasgada e suja, também com a mão trêmula, confirmou a autoria e o chamou de coisas horríveis. Marcos foi obrigado a confrontar toda a família da garota de uma vez, junto com a sua, no clube, no fim daquela mesma semana. Foi chorar na piscina debaixo d’água. O pai de Renato consultou um psicólogo amigo seu, que deu risada e disse que não tinha importância nenhuma, mas isso Renato foi ficar sabendo anos depois. A amizade foi proibida. Conviviam na escola, a proibição foi ficando inviável, e virou só uma implicância. A mãe de Renato tinha certeza que a má companhia era Marcos. Renato e Marcos de qualquer jeito acabaram mantendo a amizade. Com quatorze anos surfavam no Guarujá, andavam de skate, fumavam maconha, tudo aprendido precocemente com os irmãos de Marcos. O amigo de Renato tomou pau na oitava série, e se afastaram um pouco. Encontravam-se às vezes, por aí. Depois de algum tempo, Renato já com mais de vinte anos, teve a notícia de ele estava meio maluco mesmo, problema de droga, e andara perseguindo a irmãzinha temporã da menina da carta, uns cinco ou seis anos mais moça do que ele. Aquilo lhe pareceu uma fixação esquisita, pois ela era quase igual a irmã. Um dia, quanto estava pelos trinta, viu o anúncio de sua missa de sétimo dia. Não foi. Uns dois anos depois, numa festa de trinta anos de uma amigo, encontrou um irmão de Marcos. E Renato, completamente alto, teve com ele uma conversa emocional e besta, ao som daquele mesmo rock dos oitenta, e todas as boas lembranças possíveis foram ofuscadas pela notícia de que Marcos havia se matado.
Será que vinha daí sua fixação por Clarissa? Será que sua mente tinha ficado aprisionada por aquele evento traumático, que agora se reeditava naquele amor doentio? Não espreitavam a casa da sua vizinha, e não lhe mandaram a tal carta obscena? Não era isso que Renato tinha feito com Clarissa? A morte de Marcos não tinha sido imediatamente antes do início daquela enorme reviravolta na sua vida? Será que a notícia da morte de Marcos não deflagara um processo inconsciente de liberação e reedição daquele conteúdo emocional traumático? Até uma explicação sobrenatural seria possível, de encosto ou espírito dominado, mas Renato, absolutamente cético, não se preocupou com isso.
Toda essa teoria, fosse ou não verdadeira, não lhe ajudou em nada, pois continuava obcecado por Clarissa.
segunda-feira, agosto 15, 2005
O Stalker - Capítulo 52
Na segunda consulta com o psiquiatra, Renato contou que o seu comportamento compulsivo, de mandar e-mails para Clarissa, continuava. Aliás, era a única coisa que se mantinha. Estava estúpido, não conseguia trabalhar direito, e embora estivesse aparentemente calmo, falava coisas horríveis em voz baixa, para quem estivesse perto. O médico surpreendeu-se com essa agressividade, que não deveria acontecer com a medicação. Nada tinha a ver com ela.
De qualquer jeito, ante o fracasso da droga, entendeu que era hora de mudar a estratégia. Com suas notas da outra consulta na mão, lembrou que Renato tinha mencionado uma tendência antiga à depressão, e resolveu explorar essa hipótese. Renato ficou animado, “sim, sim, desde criança”, na esperança de merecer uma droga que o deixasse tranqüilo e feliz. O médico alertou-o que para o antidepressivo fazer sentido, a depressão deveria ter uma causa fisiológica. Para aferir a existência dessa causa física, o mais seguro era, se fosse possível, identificar o comportamento depressivo desde a infância. Havia uma possibilidade de que o comportamento compulsivo de macaquinho masturbador, identificado na consulta anterior, houvesse causado um comportamento anti-social que pudesse ser confundido com a depressão. Talvez Renato, que se disse uma criança solitária, tivesse essa tendência ao isolamento causada por um pendor ao entretenimento solitário com o interesse do momento, não se preocupando em se socializar, e não um depressivo.
Renato estava achando a análise do médico superficial e temerária, mas no afã de conseguir sua droga milagrosa, concordava com o bom doutor, e forneceu os elementos da depressão infantil que ele reclamava. Desde quando se lembrava, era melancólico e indolente, e tinha a tendência a ficar horas sem fazer nada, contemplando as formigas caminhando, os carros passando na rua, ou a empregada trabalhando. Pareceu-lhe mais dramático dizer isso do que apenas dizer que via muita tv.
O médico deu-se por satisfeito e sacou de seu atualizado repertório um antidepressivo razoavelmente novo, à base de reboxetina, que atuava na recaptação da noradrenalina, um neurotransmissor, e teria um significativo efeito contra a depressão, conforme explicou a Renato, que burro com estava não teve sequer condições de fazer as perguntas corretas para entender o que o ele dizia.
Renato saiu de lá feliz da vida, tendo conquistado o que queria desde o início. Uma moderníssima droga da felicidade, que o faria esquecer Clarissa e tocar a vida para frente. Mas isso não seria assim tão imediato. O anticonvulsivo teria que ser reduzido aos poucos, para evitar que tivesse convulsões, e o remédio novo demoraria duas semanas para fazer sentir os seus efeitos. Mas só se livrar do torpor desagradável causado pela droga já era um grande avanço.
Voltou para casa, e contou para Fernanda as novas do tratamento. Fernanda ficou animada com a possibilidade de Renato voltar a ser o que era, pois aquele comportamento catatônico e agressivo a incomodava bastante. Era o que faltava para ela, porque Renato não tinha mais saído sozinho à noite, e a vida parecia ir se normalizando.
Depois das duas semanas Renato tinha um humor maravilhoso, dormia bem, e cumpria sua rotina com tranqüilidade. Só duas coisas o incomodavam. Uma certa dificuldade ao urinar, com a redução da força do jato, fraco e demorado, e uma visível queda da libido. Não que tivesse ficado impotente, mas simplesmente não se lembrava que sexo existia. Quando Fernanda o acionava, Renato respondia, mas com pouca imaginação e empenho. Ao se dar conta que esse desinteresse devia ser causado pelo remédio, desistiu do mundo das drogas da alegria. Suas duas tentativas tinham sido absolutamente insatisfatórias, e percebeu que o seu sofrimento só fizera aumentar nos últimos dois meses em que estava sob a ação de medicação. Diminuiu a droga aos poucos, como mandava a bula, e se sentiu maravilhosamente bem na sua habitual e saudável loucura. Pensava em Clarissa o tempo todo, mas parou de lhe mandar mensagens. Aparentemente aceitando o fim, enterrou suas expectativas no passado.
De qualquer jeito, ante o fracasso da droga, entendeu que era hora de mudar a estratégia. Com suas notas da outra consulta na mão, lembrou que Renato tinha mencionado uma tendência antiga à depressão, e resolveu explorar essa hipótese. Renato ficou animado, “sim, sim, desde criança”, na esperança de merecer uma droga que o deixasse tranqüilo e feliz. O médico alertou-o que para o antidepressivo fazer sentido, a depressão deveria ter uma causa fisiológica. Para aferir a existência dessa causa física, o mais seguro era, se fosse possível, identificar o comportamento depressivo desde a infância. Havia uma possibilidade de que o comportamento compulsivo de macaquinho masturbador, identificado na consulta anterior, houvesse causado um comportamento anti-social que pudesse ser confundido com a depressão. Talvez Renato, que se disse uma criança solitária, tivesse essa tendência ao isolamento causada por um pendor ao entretenimento solitário com o interesse do momento, não se preocupando em se socializar, e não um depressivo.
Renato estava achando a análise do médico superficial e temerária, mas no afã de conseguir sua droga milagrosa, concordava com o bom doutor, e forneceu os elementos da depressão infantil que ele reclamava. Desde quando se lembrava, era melancólico e indolente, e tinha a tendência a ficar horas sem fazer nada, contemplando as formigas caminhando, os carros passando na rua, ou a empregada trabalhando. Pareceu-lhe mais dramático dizer isso do que apenas dizer que via muita tv.
O médico deu-se por satisfeito e sacou de seu atualizado repertório um antidepressivo razoavelmente novo, à base de reboxetina, que atuava na recaptação da noradrenalina, um neurotransmissor, e teria um significativo efeito contra a depressão, conforme explicou a Renato, que burro com estava não teve sequer condições de fazer as perguntas corretas para entender o que o ele dizia.
Renato saiu de lá feliz da vida, tendo conquistado o que queria desde o início. Uma moderníssima droga da felicidade, que o faria esquecer Clarissa e tocar a vida para frente. Mas isso não seria assim tão imediato. O anticonvulsivo teria que ser reduzido aos poucos, para evitar que tivesse convulsões, e o remédio novo demoraria duas semanas para fazer sentir os seus efeitos. Mas só se livrar do torpor desagradável causado pela droga já era um grande avanço.
Voltou para casa, e contou para Fernanda as novas do tratamento. Fernanda ficou animada com a possibilidade de Renato voltar a ser o que era, pois aquele comportamento catatônico e agressivo a incomodava bastante. Era o que faltava para ela, porque Renato não tinha mais saído sozinho à noite, e a vida parecia ir se normalizando.
Depois das duas semanas Renato tinha um humor maravilhoso, dormia bem, e cumpria sua rotina com tranqüilidade. Só duas coisas o incomodavam. Uma certa dificuldade ao urinar, com a redução da força do jato, fraco e demorado, e uma visível queda da libido. Não que tivesse ficado impotente, mas simplesmente não se lembrava que sexo existia. Quando Fernanda o acionava, Renato respondia, mas com pouca imaginação e empenho. Ao se dar conta que esse desinteresse devia ser causado pelo remédio, desistiu do mundo das drogas da alegria. Suas duas tentativas tinham sido absolutamente insatisfatórias, e percebeu que o seu sofrimento só fizera aumentar nos últimos dois meses em que estava sob a ação de medicação. Diminuiu a droga aos poucos, como mandava a bula, e se sentiu maravilhosamente bem na sua habitual e saudável loucura. Pensava em Clarissa o tempo todo, mas parou de lhe mandar mensagens. Aparentemente aceitando o fim, enterrou suas expectativas no passado.
domingo, agosto 14, 2005
O Stalker - Capítulo 51
As colegas de Fernanda do shopping sabiam que ela não ia resistir. Nenhuma nunca tinha resistido. Cinqüentão, dono de uma conhecida marca de roupas de fitness, com uma loja em cada shopping importante do Brasil, depois de entregar a administração do negócio aos seus filhos, Alfredo dedicava a vida a ser irresistível. Era uma lenda viva, e um bem guardado segredo das vendedoras do shopping. Pescava suas moças principalmente no Iguatemi, eventualmente em outros shoppings, dependendo do que estava na vitrine. Passava as tardes circulando, durante os dias de semana, horário freqüentado por mulheres e adolescentes. A pretexto de pesquisar o mercado e fiscalizar a concorrência, entrava em todas as lojas, examinava todos os artigos, e conversava com todas as vendedoras. Era sempre bem vindo. Seu alvo era as moças de vinte e oito a trinta e cinco anos, aproximadamente, com alguns anos de casadas. Geralmente estavam já um pouco entediadas do casamento, e cediam a um primeira experiência de traição, desde que bem cantadas. Quando escolhia uma, aumentava a atenção que dava em relação às outras. Não era um galanteador barato. O assunto geralmente era os produtos, sobre os quais expunha uma análise técnica de conhecedor. Eventualmente tecia considerações sobre a roupa que a vendedora usava, sempre da loja, e o efeito que causava. Depois de alguns dias de atenção especial a uma delas, dava-lhe um cd de uma cantora, dizendo que tinha achado a cara dela, ou algo assim. Suspeitavam que era assim que ele catalogava suas conquistas. O segundo presente era um perfume, e o timing era calculado segundo a intensidade da resistência que sentia. Algumas davam muito mais trabalho do que as outras, e nesses casos ele alongava o período de atenção redobrada.
Fernanda tinha sido agraciada com o cd da Madeleine Peyroux, e já tinha recebido o perfume, quando Renato ligou, antes de sua primeira consulta ao psiquiatra, avisando que iria ao happy-hour do Mercearia com os amigos. Fernanda sabia que vinha merda, e quando Alfredo passou no fim da tarde, ele percebeu que ela sinalizava de forma diferente, e convidou-a para almoçar no dia seguinte. Fernanda, sabendo o que ia acontecer, aceitou. Combinaram que ele a pegaria no shopping no dia seguinte à uma hora.
Almoçar com Alfredo era considerado falta justificada naquela comunidade. Quando Renato acordou com sua horrível ressaca no dia seguinte, Fernanda estava sendo preparada pelas colegas para o almoço. A lingerie caríssima, que era o terceiro presente tradicional de Alfredo, tinha sido entregue na loja naquela manhã. Escolheram em conjunto a roupa e os acessórios que usaria, do vasto acervo da loja. Uma era habilidosa com cabelo, outra com maquiagem, e todas palpitaram com a indumentária. À uma hora em ponto Alfredo chegou, e foi deixado esperando por dez minutos, até que Fernanda acabasse de se aprontar. Caminharam até o Porsche e foram almoçar no Fasano.
Uma mesa bem localizada estava reservada. Alfredo disse que já tinha combinado um cardápio especial com o Salvatore. Começariam com foie-gras grelhado, que acompanhariam com vinho Sauternes, depois comeriam uma delicada massa com trufas e vinho Borgonha, que já estava aberto há algum tempo, e terminariam com champagne meio doce com a sobremesa à base de frutas frescas. Comida leve, adequada para ação que viria depois, com uma boa base de carboidratos. Alfredo se gabava intimamente de regular o teor alcoólico de suas convidadas, e por isso o garçon sempre esperava um imperceptível sinal seu para servir mais vinho, que não tinha nenhum pudor em desperdiçar, o que fazia a festa do pessoal da cozinha. Gostava de terminar com o champagne porque se tivesse errado, poderia acelerar no final. Durante a refeição, concentrava-se de modo absoluto na sua companhia, dela não desviando sua atenção por um segundo. Conseguia uma efeito de resumir o mundo àquela mesa, a eles dois. Quando subiram à suíte Oásis, Fernanda, não tão levemente alcoolizada, não tinha nenhuma dúvida ou preocupação.
Na ampla suíte tocava “Dance me to the end of love”, e Alfredo imediatamente tomou Fernanda nos braços e dançou com ela até o fim da canção. Fernanda achou engraçado dançar naquele estilo antiquado com aquele homem mais velho, que dançava incrivelmente bem, e aquilo era incrivelmente sexy. Alfredo mostrou-lhe a suíte, que tinha um amplo banheiro para cada um. Separaram-se por alguns instantes, e quando Fernanda saiu do banheiro envergando apenas a maravilhosa lingerie, Alfredo, de boxer de seda escura, ofereceu-lhe um champagne. Brindaram e a ação começou. Alfredo era um dedicado artista do sexo, com muitos e muitos anos de praia, e uma interminável ereção. Seu empenho em divertir a parceira era tanto, que elas logo estavam chupando seu pau, em sincero agradecimento. Treparam até a noite, sem pressa, com longas pausas para beber e lambiscar no sintético buffet montado na sala, com mais danças nus e descalços, momentos de relax no o-furô e tudo mais. Voltando ao shopping, por volta das dez da noite, Alfredo despediu-se de Fernanda com uma jóia.
De acordo com as informações que circulavam à boca pequena, ela sabia que aquilo jamais se repetiria, o que não a incomodava nem um pouco. A tarde havia sido impecável, e ela se divertiu loucamente com aquele sexo luxuoso. Depois, recapitulando os fatos, Fernanda achou que a terceira gozada de Alfredo havia sido fingida.
Fernanda tinha sido agraciada com o cd da Madeleine Peyroux, e já tinha recebido o perfume, quando Renato ligou, antes de sua primeira consulta ao psiquiatra, avisando que iria ao happy-hour do Mercearia com os amigos. Fernanda sabia que vinha merda, e quando Alfredo passou no fim da tarde, ele percebeu que ela sinalizava de forma diferente, e convidou-a para almoçar no dia seguinte. Fernanda, sabendo o que ia acontecer, aceitou. Combinaram que ele a pegaria no shopping no dia seguinte à uma hora.
Almoçar com Alfredo era considerado falta justificada naquela comunidade. Quando Renato acordou com sua horrível ressaca no dia seguinte, Fernanda estava sendo preparada pelas colegas para o almoço. A lingerie caríssima, que era o terceiro presente tradicional de Alfredo, tinha sido entregue na loja naquela manhã. Escolheram em conjunto a roupa e os acessórios que usaria, do vasto acervo da loja. Uma era habilidosa com cabelo, outra com maquiagem, e todas palpitaram com a indumentária. À uma hora em ponto Alfredo chegou, e foi deixado esperando por dez minutos, até que Fernanda acabasse de se aprontar. Caminharam até o Porsche e foram almoçar no Fasano.
Uma mesa bem localizada estava reservada. Alfredo disse que já tinha combinado um cardápio especial com o Salvatore. Começariam com foie-gras grelhado, que acompanhariam com vinho Sauternes, depois comeriam uma delicada massa com trufas e vinho Borgonha, que já estava aberto há algum tempo, e terminariam com champagne meio doce com a sobremesa à base de frutas frescas. Comida leve, adequada para ação que viria depois, com uma boa base de carboidratos. Alfredo se gabava intimamente de regular o teor alcoólico de suas convidadas, e por isso o garçon sempre esperava um imperceptível sinal seu para servir mais vinho, que não tinha nenhum pudor em desperdiçar, o que fazia a festa do pessoal da cozinha. Gostava de terminar com o champagne porque se tivesse errado, poderia acelerar no final. Durante a refeição, concentrava-se de modo absoluto na sua companhia, dela não desviando sua atenção por um segundo. Conseguia uma efeito de resumir o mundo àquela mesa, a eles dois. Quando subiram à suíte Oásis, Fernanda, não tão levemente alcoolizada, não tinha nenhuma dúvida ou preocupação.
Na ampla suíte tocava “Dance me to the end of love”, e Alfredo imediatamente tomou Fernanda nos braços e dançou com ela até o fim da canção. Fernanda achou engraçado dançar naquele estilo antiquado com aquele homem mais velho, que dançava incrivelmente bem, e aquilo era incrivelmente sexy. Alfredo mostrou-lhe a suíte, que tinha um amplo banheiro para cada um. Separaram-se por alguns instantes, e quando Fernanda saiu do banheiro envergando apenas a maravilhosa lingerie, Alfredo, de boxer de seda escura, ofereceu-lhe um champagne. Brindaram e a ação começou. Alfredo era um dedicado artista do sexo, com muitos e muitos anos de praia, e uma interminável ereção. Seu empenho em divertir a parceira era tanto, que elas logo estavam chupando seu pau, em sincero agradecimento. Treparam até a noite, sem pressa, com longas pausas para beber e lambiscar no sintético buffet montado na sala, com mais danças nus e descalços, momentos de relax no o-furô e tudo mais. Voltando ao shopping, por volta das dez da noite, Alfredo despediu-se de Fernanda com uma jóia.
De acordo com as informações que circulavam à boca pequena, ela sabia que aquilo jamais se repetiria, o que não a incomodava nem um pouco. A tarde havia sido impecável, e ela se divertiu loucamente com aquele sexo luxuoso. Depois, recapitulando os fatos, Fernanda achou que a terceira gozada de Alfredo havia sido fingida.
sábado, agosto 13, 2005
O Stalker - Capítulo 50
Renato acordou por volta do meio-dia. Havia recados do escritório e um enorme mal estar pela casa, tendo as crianças e as empregadas percebido que a rotina havia sido quebrada. Tomou duas aspirinas, um longo banho, e saiu rapidamente, aproveitando que Fernanda não estava. No trabalho alegou uma gripe para explicar o seu estado deplorável e o seu atraso. Começou a imaginar que sentia os efeitos do remédio, e sentiu necessidade de comunicar Clarissa que estava se tratando, seguindo suas instruções. Mandou um e-mail descrevendo a consulta e disse estar envolto numa névoa de tranqüilidade e preguiça, atribuída à sua imaginação. Clarissa não respondeu.
No dia seguinte, mandou outra:
“Minha droga, segundo pesquisei na internet, é emburrecedora, o que para mim não há de ser nenhuma vantagem. Acredito que o bom doutor tenha errado o alvo, por superestimar os impulsos febris. Estou paradão”.
Uma semana depois:
“Ontem fui beber com os amigos. Com o remedinho em dose dobrada levitava a um centímetro da cadeira, e bebia na metade da velocidade. Homens socializam-se em torno do álcool. Eu praticamente não disse nada. Preciso pedir ao médico um outro remedinho pra dar um chute na preguiça.”
E depois de alguns dias, tentando lutar contra o seu emburrecimento, e entender o que acontecia com ele, produziu uma mensagem estapafúrdia:
No dia seguinte, mandou outra:
“Minha droga, segundo pesquisei na internet, é emburrecedora, o que para mim não há de ser nenhuma vantagem. Acredito que o bom doutor tenha errado o alvo, por superestimar os impulsos febris. Estou paradão”.
Uma semana depois:
“Ontem fui beber com os amigos. Com o remedinho em dose dobrada levitava a um centímetro da cadeira, e bebia na metade da velocidade. Homens socializam-se em torno do álcool. Eu praticamente não disse nada. Preciso pedir ao médico um outro remedinho pra dar um chute na preguiça.”
E depois de alguns dias, tentando lutar contra o seu emburrecimento, e entender o que acontecia com ele, produziu uma mensagem estapafúrdia:
“Sem nenhuma pretensão filosófica ou científica, o reconhecimento de relações entre fatos, e entre relações, é uma das formas como se manifestam a inteligência, a arte e a loucura, dependendo da qualidade das ligações que as compõem. Por exemplo, vi a cotação das ações da Belgo Mineira e lembrei de você. Talvez se essa companhia não tivesse vindo ao Brasil não conhecesse você. Depois deste lampejo involuntário inicial, que é a conexão destes dois fatos entre si, passei a identificar várias outras conexões ativadas pelos dois fatos, em inúmeras reações em cadeias, tantas quantas meus circuitos sinápticos – ou coisa que os valham – pudessem suportar. De discutível utilidade seria identificar-se uma coincidência aleatória como uma relação, como por exemplo reconhecer na queda das ações um presságio do fim da nossa ligação.
Porque a conversa? Porque a droga faixa-preta [e aqui uma relação humorística-estúpida (estupidez é um grau de inteligência) bastante óbvia com as artes marciais orientais] que estou tomando agora está atingindo patamares mais consistentes, e eu suspeito – suspeita que pode ser a diferença entre a ciência e a loucura, ou a inteligência e a burrice – que ela faz meu corpo produzir efeitos elétricos externos. Soa mal, não é? A idéia que me parece mais estúpida do que louca começou a surgir depois de alguns acontecimentos, digamos assim, elétricos. O primeiro, foi talvez a morte da bateria do meu relógio. Sim, a relação é fraca e improvável, mas é um poderoso relógio a quartzo, e sua bateria não deu mostras de fraquejar antes, como deveria. Simplesmente amanheceu morto. A segunda, mais ou menos simultânea, foi o cartão do estacionamento do shopping. Embora contivesse um crédito razoável, a máquina leu “cartão inválido”. Chamei o prestativo funcionário, e após alguma confusão e a formação de filas e buzinas, levantar e abaixar da cancela, retirar e enfiar cartões de plástico e de papel, na mão do rapaz funcionou. Depois, o celular amanheceu no criado-mudo conectado à internet. Uma “resetada” do computador, sem explicação nem cabos frouxos, e canais saltando na tv (com o controle remoto na mão), nada paranormal mas levemente anormal. Coincidências aleatórias ou relações legítimas?
Curiosamente, li outro dia notícia de terapias de condições várias como enxaquecas, epilepsias, doenças cardíacas, depressões e esquizofrenias, através de implantes em lugares estratégicos de pequenas engenhocas que disparam impulsos elétricos a intervalos regulares de tempo, chamadas de neuromodulação. Estratégias de neurologistas, que são diferentes das drogas dos psiquiatras. Outro exemplo do choque em si é um lançamento no mercado náutico, também recente, de um bracelete que emite impulsos elétricos no pulso – com o perdão da consonância – e ao que assegura o fabricante, depois de quinze minutos, evita o enjôo. Em termos elétricos, os psiquiatras voltaram a utilizar as convulsões causada pelo eletrochoque como terapia de pacientes resistentes às drogas ou muito susceptíveis aos efeitos colaterais. Segundo dizem as convulsões liberam os acúmulos de enzimas neurotransmissoras nos terminais, que causam a confusão mental e as alucinações, e o paciente imediatamente sente-se melhor. Para evitar um dos principais efeitos colaterais desse tratamento por eletrochoque, os ossos quebrados, ministram antes anestesia geral e relaxantes musculares. Mary Shelley que o diga”.
Quando o médico lhe perguntava se os efeitos colaterais estavam suportáveis, Renato dizia que sim. Mas sua capacidade de discernimento estava piorando, e continuava com as mensagens:
“Um efeito colateral indicado na bula e verificado por mim é o formigamento das extremidades. Também ocorre uma reação química com as bebidas gasosas, que ficam desagradáveis. Não parece eletricidade? Outro efeito novo tem sido experimentado pelos circundantes: curtas e grosseiras explosões de uma frase, dita em tom baixo e de forma totalmente inadequada e agressiva. Estou desenvolvendo o talento de errar na mosca. Quando vejo, a faísca já chamuscou um inocente. Deve ser um problema de excesso de estática. Amanhã devo falar com o bom doutor, para mais um ajuste na dose. Ou na droga”.
Às vésperas da segunda consulta, quarenta dias tomando o anticonvulsivo, e já há algum tempo em dose plena, estava bastante ruim, e mandou uma mensagem reclamando do silêncio de Clarissa:
“Enquanto espero a nova consulta com o bom doutor para avaliar o tratamento, falo com Paredes. Paredes é minha única ouvinte. Paredes não é surda como as portas. Inteligentissimíssima, só diz coisas geniais. Planos verticais. Paredes.”
Clarissa sabia quem era o médico, um conceituado professor que provavelmente lhe daria aulas, e ainda que estivesse um pouco preocupada com o estado de Renato, achou melhor confiar na medicina.
sexta-feira, agosto 12, 2005
O Stalker - Capítulo 49
Chegaram os quatro praticamente ao mesmo tempo, cada um no seu carro. Um deles, mais assíduo, foi firmemente abraçado pelo segurança externo. Depois, pelo porteiro, e a recepcionista também efusivamente tratou-lhe pelo nome. Tiveram tratamento vip. Eram bem educados, não tomavam drogas, bebiam bastante, não reclamavam das contas, não arrumavam encrenca, e, ainda que não admitissem nem para si mesmos, subiam com as garotas, que nunca reclamaram de nada. Rapazes de família. A recíproca com a casa era verdadeira. Todos sabiam quanto iam gastar, e que estavam absolutamente seguros lá. Não seriam roubados, não havia o risco de violência de qualquer espécie, e sabiam que as garotas eram treinadas para respeitar certos limites. Era o melhor lugar do mundo para beber até cair. Ninguém achava ruim, muito contrário, era um comportamento estimulado, desde que não houvesse baixaria. E se houvesse, eles sabiam como lidar com isso.
O lugar era realmente grande, com dois pavimentos interligados por átrios com escadarias, piscinas com cachoeiras artificiais cheias de carpas coloridas, salões de sinuca, ambientes com música mecânica e música ao vivo, e uns sujeitos circulando em roupões de toalha brancos, o que indicava que havia uma sauna. Foram levados a uma mesa perto da pista de dança onde ocorriam os stripteases. Uma garrafa de uísque, um balde de gelo, club soda e um mix de frutas secas logo surgiram sobre a mesa. Os amigos, como garotos em loja de doce, sorriam maravilhados, rindo à toa, à vista de todas aquelas sorridentes garotas de biquini flertando com eles. Renato começou sua procura. Embora fosse muito raramente a esses paraísos artificiais, sabia exatamente o que queria. O primeiro corte eliminava as garotas com silicone. Achava a consistência desagradável ao tato, em comparação com o peito natural, e visualmente desproporcional. Quase nunca combinavam com o tipo físico da portadora da prótese. E o silicone ainda indicava uma história mais antiga na noite – como elas se refiriam à atividade – e assim maior risco de cinismo e sociopatia da moça. O segundo corte ia em busca das moças que estavam a fim de beber com ele, e que concordavam em tomar o uísque da mesa, ao invés de pedirem aqueles drinques de puta que multiplicavam o valor da conta. Ele e os amigos dificilmente dariam conta da garrafa. Com as garotas que bebiam nesse estilo uísque da mesa a camaradagem era sempre mais fácil e divertida, e elas costumavam mostrar algum resquício de alma. O contato parecia mais equilibrado. Renato evitava as garotas muito bonitas, porque a trepada era burocrática e ruim. Por terem o rei na barriga, pareciam sempre estar fazendo favor ao cliente.
A busca em si era uma delícia. Tinha algo a ver com escolher frutas na feira. Achando interessante uma candidata, era só sorrir e chamar com um gesto, e ela se aproximava. A qualquer bobagem ela ria, e começava uma apalpação mútua relaxada e descompromissada. A cada entrevista, seu pau ficava duro com o contato explicitamente erótico, um joguinho no qual a moça tinha que mostrar o seu valor. Nessa noite, Renato apalpou várias garotas, fazendo-as sentar na mesa e tomar um pouco de uísque. Acabou decidindo-se por Vanessa, que cumpria os seus requisitos e tinha um “je ne sais quoi” que o agradou. Para não ter que barganhar, o que ele achava especialmente constrangedor por tratar-se de um serviço que implicava a intimidade da garota, Renato fazia uma breve consulta do preço mínimo do mercado, e o oferecia de chofre. Depois de uma risadinha elas sempre aceitavam, aliviadas de não terem que discutir a questão. Aplicou-se então em namorar a moça, louvando-lhe a enorme beleza e sondando seus gostos e preferências, tomando cuidado para que a conversa não caísse para o assunto da “noite”, que era sempre baixo astral. Muita risada e muita apalpação, com a moça já relaxada depois da contratação, louca para exibir seus talentos.
O lugar era realmente grande, com dois pavimentos interligados por átrios com escadarias, piscinas com cachoeiras artificiais cheias de carpas coloridas, salões de sinuca, ambientes com música mecânica e música ao vivo, e uns sujeitos circulando em roupões de toalha brancos, o que indicava que havia uma sauna. Foram levados a uma mesa perto da pista de dança onde ocorriam os stripteases. Uma garrafa de uísque, um balde de gelo, club soda e um mix de frutas secas logo surgiram sobre a mesa. Os amigos, como garotos em loja de doce, sorriam maravilhados, rindo à toa, à vista de todas aquelas sorridentes garotas de biquini flertando com eles. Renato começou sua procura. Embora fosse muito raramente a esses paraísos artificiais, sabia exatamente o que queria. O primeiro corte eliminava as garotas com silicone. Achava a consistência desagradável ao tato, em comparação com o peito natural, e visualmente desproporcional. Quase nunca combinavam com o tipo físico da portadora da prótese. E o silicone ainda indicava uma história mais antiga na noite – como elas se refiriam à atividade – e assim maior risco de cinismo e sociopatia da moça. O segundo corte ia em busca das moças que estavam a fim de beber com ele, e que concordavam em tomar o uísque da mesa, ao invés de pedirem aqueles drinques de puta que multiplicavam o valor da conta. Ele e os amigos dificilmente dariam conta da garrafa. Com as garotas que bebiam nesse estilo uísque da mesa a camaradagem era sempre mais fácil e divertida, e elas costumavam mostrar algum resquício de alma. O contato parecia mais equilibrado. Renato evitava as garotas muito bonitas, porque a trepada era burocrática e ruim. Por terem o rei na barriga, pareciam sempre estar fazendo favor ao cliente.
A busca em si era uma delícia. Tinha algo a ver com escolher frutas na feira. Achando interessante uma candidata, era só sorrir e chamar com um gesto, e ela se aproximava. A qualquer bobagem ela ria, e começava uma apalpação mútua relaxada e descompromissada. A cada entrevista, seu pau ficava duro com o contato explicitamente erótico, um joguinho no qual a moça tinha que mostrar o seu valor. Nessa noite, Renato apalpou várias garotas, fazendo-as sentar na mesa e tomar um pouco de uísque. Acabou decidindo-se por Vanessa, que cumpria os seus requisitos e tinha um “je ne sais quoi” que o agradou. Para não ter que barganhar, o que ele achava especialmente constrangedor por tratar-se de um serviço que implicava a intimidade da garota, Renato fazia uma breve consulta do preço mínimo do mercado, e o oferecia de chofre. Depois de uma risadinha elas sempre aceitavam, aliviadas de não terem que discutir a questão. Aplicou-se então em namorar a moça, louvando-lhe a enorme beleza e sondando seus gostos e preferências, tomando cuidado para que a conversa não caísse para o assunto da “noite”, que era sempre baixo astral. Muita risada e muita apalpação, com a moça já relaxada depois da contratação, louca para exibir seus talentos.
Depois de uma pequena espera na fila das suítes, com direito a encoxadas, apalpadas e beijoquinhas, respeitando o tabu “tudo menos beijar na boca”, apenas com leves e acidentais infrações, subiram ao quartinho. Por deferência à moça, depois de um dia longe da água, e para aparar a bebedeira, Renato enfiou-se no poderosíssimo chuveiro. Regulou o jato, deu uma longa mijada no ralo, e depois de um tempo que ele estava lá, entrou Vanessa no banheiro dando risadinhas e de touca no cabelo, enfiando-se no box com ele. Renato ficou maravilhado com a visão da puta desarmada, nua sem o salto, de touca no cabelo, com seus lindos pequenos seios perdidos naquele tórax magrinho, os pentelhos aparadíssimos e uma bundinha irritantemente jovem, como tinha que ser. Elogiaram-se mutuamente, com Vanessa dando especial ênfase ao pau de Renato, o qual lavou cuidadosamente, dobrinha por dobrinha, até que ele ficasse irremediavelmente limpo e ereto.
No quarto estavam acesas apenas as luzes indiretas, algumas coloridas, e tocava mais ou menos alto uma música tecno, num canal escolhido por Vanessa. Renato deitou-se de barriga para cima e Vanessa, desenrolando-se da toalha e desvencilhando seus cabelos da touca, fez uma frenética dança erótica para Renato em cima da cama. Renato achou hilário, mas não deixou de ficar de pau duro. Estava completamente bêbado, e ficar ali naquela luz misteriosa com aquela ninfa nua pulando na sua frente ao som daquele ritmo eletrônico implacável era simplesmente o máximo. Percebendo a ereção de Renato, Vanessa pegou uma camisinha sabe-se lá de onde e vestiu o pau de Renato com a boca, embalando num boquete animado, para garantir a ereção daquele bêbado. Na hora em que o sentiu bem duro, montou de cócoras a cavalo em Renato, enfiou-lhe o pau na sua buceta untada de lubrificante, e movimentou-se em hiper velocidade. Como Renato não gozava, mas mantinha o pau duro, virou de lado, e repetiu a manobra com a bunda virada para o rapaz. Depois de algum tempo, Renato, vendo que a moça começava a ficar com medo do fracasso, pediu que ela parasse e ficasse de quatro. Ela perguntou se ele queria por no seu cuzinho, para ela por um ky. Renato deu risada e disse que não estava a fim de nada apertado naquela noite, e segurando suas coxas na dobra com o quadril, mal enfiou o pau, ela começou a mexer-se para frente e para trás em alta velocidade, e depois de algum tempo com aquela movimentação olímpica, ele finalmente gozou.
Os dois ficaram felizes da vida com a conclusão do negócio, executado a contento apesar das precárias condições de ambos, e voltaram para o chuveiro para lavar apenas as partes. Renato pagou satisfeito o serviço sem preço, e depois de juras de contratações futuras que jamais seriam cumpridas voltaram ao salão infernal. Vanessa foi a cata de outro cliente, e Renato voltou à garrafa de uísque, para beber até cair, enquanto empatava outras garotas omitindo o fato de que já tinha subido e de estar arqui-completamente bêbado. Bebeu até ser delicadamente enxotado e posto no seu carro. Foi guiado pelo deus dos bêbados até a sua casa. Fez a rotina automática do portão da garagem, vaga, elevador, porta, sofá do escritório sem problemas, e com a sensação firme de ser um saco de merda, capotou sem saber quando e aonde iria acordar.
quarta-feira, agosto 10, 2005
O Stalker - Capítulo 48
Logo de manhã, assim que chegou ao escritório, Renato fez uma lista dos médicos do Instituto de Psiquiatria da USP. Ligou e descobriu que não poderia ser atendido lá, pois não teria direito ao sistema público de saúde. Apesar de intimamente decepcionado pela falta da oportunidade de encontrar Clarissa na escola, achou bom, pois estava na hora mesmo disso acabar. Rapidamente conseguiu o telefone do consultório de alguns deles. Não tinha nenhuma referência, e seu médico seria o primeiro que conseguisse marcar para aquele dia mesmo. Estava sem esperanças, e queria tomar uma droga mágica que tirasse aquele peso dos seus ombros. Na terceira tentativa, conseguiu. Sua tela exibia o consistente currículo do sujeito. Mestrado e doutorado em duas das melhores universidades do mundo, professor concursado e laureado. Nada podia dar errado, estava em boas mãos. Disse que seu caso era urgente, e marcou para as cinco da tarde. Perguntou o preço da consulta e tomou um pequeno susto. O cara devia ser o máximo. Ao chegar lá, o consultório nos jardins decepcionou um pouco pela austeridade involuntária de uma decoração gasta. Apresentou-se à recepcionista, já achando que iria ser tratado como louco, usufruindo de antemão do estereótipo daquele que não pode ser contrariado. Nada disso, logo percebeu que o psiquiatra era apenas um entre os vários médicos que dividam o consultório, adaptado em alguns apartamentos de um pequeno prédio sem elevador numa das paralelas que desciam da Paulista entre Melo Alves e Augusta, e ele um indistinto paciente. Tanto melhor, pensou. Leu revistas velhas por algum tempo até que foi chamado. Quando foi atendido pelo médico, só um pouco mais velho do que ele, sorridente e receptivo, percebeu que iria passar um mau bocado na bergére de couro que o psiquiatra lhe apontou. Mas, estava ali de peito aberto, e se entregou de coração à tarefa de garantir que aquele sujeito lhe fornecesse uma droga que tornasse sua vida imediatamente mais suportável.
O bom doutor perguntou o que lhe trazia ali, e Renato mencionou genericamente a fase difícil pela qual estava passando, que estava lhe causando problemas com a família e uma queda na produtividade no trabalho. O médico perguntou se ele tinha alguma hipótese sobre a causa, e Renato soltou o verbo. Resolveu falar até ser interrompido. Estava pagando caro, e só falar já seria de alguma valia. Contou como conhecera Clarissa na aula de inglês, e como a brincadeira do flerte tinha se transformado numa obsessão que o dominava já há uns quatro ou cinco meses. Querendo ser considerado doente para merecer a medicação, e não ter o risco de ser encaminhado para uma insossa psicoterapia, carregou nas tintas e em quarenta minutos descreveu em minúcias tudo o que de compulsivo e obsessivo havia em seu comportamento dos últimos meses, fazendo questão de salientar uma tendência anterior para a melancolia e depressão.
O médico deu relevância ao aspecto compulsivo e inquiriu Renato sobre o seu passado, procurando mais elementos caracterizadores desse comportamento, no que foi prontamente atendido pelo paciente. Renato listou uma série de hobbies, interesses diletantes, tentativas de alternativas profissionais, esportes, cursos, e tudo o que pudesse corresponder à expectativa do médico. Temendo que isso fosse pouco, desenhou também um quadro depressivo antigo, com raízes na infância. Era tudo verdade, mas era uma verdade selecionada e reforçada conforme ia percebendo a reação do médico, que, sentado numa bergére de couro igual à que estava, ia tomando notas numa prancheta também de couro, com uma caneta de grife. Depois do relato inicial e da entrevista que se seguiu, o médico explicou as dificuldades da psiquiatria com os diagnósticos, que eram sempre provisórios baseados em hipóteses mutantes ao longo do tratamento, e disse também que a medicação mais adequada era ministrada com base em tentativa e erro. E cada tentativa, como a dose era sempre aumentada paulativamente, durava pelo menos um mês, até que se pudesse constatar se era eficaz ou não para o caso específico. E acrescentou que sua primeira hipótese, tendo em vista a série de comportamentos compulsivos de Renato anteriores à sua paixão pouco saudável, e principalmente este último evento, indicava para um tratamento que vinha experimentando nos últimos tempos. Renato sentiu-se importante e feliz em ser cobaia. Achou que ia receber uma droga nova e salvadora, sem efeitos desagradáveis que tinha percebido existirem em suas breves pesquisas sobre o tema. O médico afirmou a Renato que o seu comportamento compulsivo manifestado várias vezes e sempre repetido era o mesmo de um macaquinho condicionado, que aprende a realizar alguma tarefa para receber determinada recompensa, que ele repetia e repetia até conseguir, e até quando acabesse o prazer proporcionado pela tarefa. Uma coisa assim masturbatória mesmo.
Renato ficou irritado com o bom doutor ter feito a redução mais vil que poderia obter do seu amplo e sublime sentimento por Clarissa, mas sentiu que se ficasse quieto iria receber seu almejado prêmio, e ao concluir esse raciocínio do prêmio achou que talvez o médico pudesse ter razão, e o seu grande amor não passasse de um pedaço de queijo no fim de um longo labirinto, ao qual era conduzido por choques elétricos ao mesmo tempo estimulantes alternados com punitivos. Depois de toda a exposição, o psiquiatra perguntou se concordaria em tentar uma certa droga, originalmente criada para tratamento de epiléticos, um anti-convulsivo, mas que recentemente estava sendo aproveitado com muito sucesso por um efeito colateral seu, no tratamento de comportamentos compulsivos, como o jogo, o alcoolismo, a cleptomania, e a obesidade, que ele achava que poderia dar certo no caso do Renato. Não era o anti-depressivo de última geração que Renato sonhava, mas pelo menos não ia sair de mãos abanando. Pareceu-lhe mesmo que pela descrição do médico poderia ser a cura do seu desviante comportamento de “stalker”. Combinaram que ele iria aumentando a dose gradativamente, e se falariam semanalmente para que Renato lhe relatasse a evolução dos efeitos, e dali a um mês e meio teriam outra consulta, para avaliar e manter ou alterar o tratamento. Com a receita em duas vias de medicamentos controlados em mãos, cheia de RGs e carimbos, Renato pagou feliz a cara consulta e saiu animado do consultório. Agora era oficialmente um louco de carteirinha, ou pelo menos alguém com problemas mentais, e podia aprontar à vontade. Por outro lado sentiu que perdia uma boa parte da sua dignidade de homem adulto e capaz, pai de família.
Saindo do consultório checou sua caixa postal e percebeu que sua turma de amigos antigos ia se encontrar no Mercearia. Era quarta-feira, o dia tradicional. Juntou-se a fome com a vontade de comer. Tudo o que Renato queria agora era comemorar sua condição de louco quase solteiro. Clarissa havia lhe dado uma solene e definitiva dispensada, e Fernanda, que provavelmente a essa altura já estava dando para alguém, não estava mais nem aí com ele. Era dia de quebrar tudo, pôr para foder. Um grito brutal e destrutivo de liberdade.
Encontrou os amigos no boteco animado, e depois do ritual da circulação dos celulares com todos falando com todas as esposas, Renato tomou uma boa quantidade de uísque em ritmo acelerado, e ficou incitando a turma a ir à putaria, para beberem todos até cair. Dos seis que estavam à mesa, conseguiu convencer quatro, e lá pelas dez horas levantaram já bastante bêbados para irem a um enorme lupanar perto do aeroporto de Congonhas, famoso pela abundância de lindas garotas circulando de biquini.
O bom doutor perguntou o que lhe trazia ali, e Renato mencionou genericamente a fase difícil pela qual estava passando, que estava lhe causando problemas com a família e uma queda na produtividade no trabalho. O médico perguntou se ele tinha alguma hipótese sobre a causa, e Renato soltou o verbo. Resolveu falar até ser interrompido. Estava pagando caro, e só falar já seria de alguma valia. Contou como conhecera Clarissa na aula de inglês, e como a brincadeira do flerte tinha se transformado numa obsessão que o dominava já há uns quatro ou cinco meses. Querendo ser considerado doente para merecer a medicação, e não ter o risco de ser encaminhado para uma insossa psicoterapia, carregou nas tintas e em quarenta minutos descreveu em minúcias tudo o que de compulsivo e obsessivo havia em seu comportamento dos últimos meses, fazendo questão de salientar uma tendência anterior para a melancolia e depressão.
O médico deu relevância ao aspecto compulsivo e inquiriu Renato sobre o seu passado, procurando mais elementos caracterizadores desse comportamento, no que foi prontamente atendido pelo paciente. Renato listou uma série de hobbies, interesses diletantes, tentativas de alternativas profissionais, esportes, cursos, e tudo o que pudesse corresponder à expectativa do médico. Temendo que isso fosse pouco, desenhou também um quadro depressivo antigo, com raízes na infância. Era tudo verdade, mas era uma verdade selecionada e reforçada conforme ia percebendo a reação do médico, que, sentado numa bergére de couro igual à que estava, ia tomando notas numa prancheta também de couro, com uma caneta de grife. Depois do relato inicial e da entrevista que se seguiu, o médico explicou as dificuldades da psiquiatria com os diagnósticos, que eram sempre provisórios baseados em hipóteses mutantes ao longo do tratamento, e disse também que a medicação mais adequada era ministrada com base em tentativa e erro. E cada tentativa, como a dose era sempre aumentada paulativamente, durava pelo menos um mês, até que se pudesse constatar se era eficaz ou não para o caso específico. E acrescentou que sua primeira hipótese, tendo em vista a série de comportamentos compulsivos de Renato anteriores à sua paixão pouco saudável, e principalmente este último evento, indicava para um tratamento que vinha experimentando nos últimos tempos. Renato sentiu-se importante e feliz em ser cobaia. Achou que ia receber uma droga nova e salvadora, sem efeitos desagradáveis que tinha percebido existirem em suas breves pesquisas sobre o tema. O médico afirmou a Renato que o seu comportamento compulsivo manifestado várias vezes e sempre repetido era o mesmo de um macaquinho condicionado, que aprende a realizar alguma tarefa para receber determinada recompensa, que ele repetia e repetia até conseguir, e até quando acabesse o prazer proporcionado pela tarefa. Uma coisa assim masturbatória mesmo.
Renato ficou irritado com o bom doutor ter feito a redução mais vil que poderia obter do seu amplo e sublime sentimento por Clarissa, mas sentiu que se ficasse quieto iria receber seu almejado prêmio, e ao concluir esse raciocínio do prêmio achou que talvez o médico pudesse ter razão, e o seu grande amor não passasse de um pedaço de queijo no fim de um longo labirinto, ao qual era conduzido por choques elétricos ao mesmo tempo estimulantes alternados com punitivos. Depois de toda a exposição, o psiquiatra perguntou se concordaria em tentar uma certa droga, originalmente criada para tratamento de epiléticos, um anti-convulsivo, mas que recentemente estava sendo aproveitado com muito sucesso por um efeito colateral seu, no tratamento de comportamentos compulsivos, como o jogo, o alcoolismo, a cleptomania, e a obesidade, que ele achava que poderia dar certo no caso do Renato. Não era o anti-depressivo de última geração que Renato sonhava, mas pelo menos não ia sair de mãos abanando. Pareceu-lhe mesmo que pela descrição do médico poderia ser a cura do seu desviante comportamento de “stalker”. Combinaram que ele iria aumentando a dose gradativamente, e se falariam semanalmente para que Renato lhe relatasse a evolução dos efeitos, e dali a um mês e meio teriam outra consulta, para avaliar e manter ou alterar o tratamento. Com a receita em duas vias de medicamentos controlados em mãos, cheia de RGs e carimbos, Renato pagou feliz a cara consulta e saiu animado do consultório. Agora era oficialmente um louco de carteirinha, ou pelo menos alguém com problemas mentais, e podia aprontar à vontade. Por outro lado sentiu que perdia uma boa parte da sua dignidade de homem adulto e capaz, pai de família.
Saindo do consultório checou sua caixa postal e percebeu que sua turma de amigos antigos ia se encontrar no Mercearia. Era quarta-feira, o dia tradicional. Juntou-se a fome com a vontade de comer. Tudo o que Renato queria agora era comemorar sua condição de louco quase solteiro. Clarissa havia lhe dado uma solene e definitiva dispensada, e Fernanda, que provavelmente a essa altura já estava dando para alguém, não estava mais nem aí com ele. Era dia de quebrar tudo, pôr para foder. Um grito brutal e destrutivo de liberdade.
Encontrou os amigos no boteco animado, e depois do ritual da circulação dos celulares com todos falando com todas as esposas, Renato tomou uma boa quantidade de uísque em ritmo acelerado, e ficou incitando a turma a ir à putaria, para beberem todos até cair. Dos seis que estavam à mesa, conseguiu convencer quatro, e lá pelas dez horas levantaram já bastante bêbados para irem a um enorme lupanar perto do aeroporto de Congonhas, famoso pela abundância de lindas garotas circulando de biquini.
terça-feira, agosto 09, 2005
O Stalker - Capítulo 47
Clarissa estava engasgada, precisava desabafar. Ligou para Alexandra, e marcou de se encontrarem no dia seguinte, às seis horas, num barzinho da Vila Madalena, onde poderiam conversar sem pressa e à vontade. Clarissa, por sua natureza reservada, não tinha comentado nem com a sua melhor amiga a existência de Renato e a estranha ligação que tiveram. Agora que ele era passado, sentiu que era possível, e que a aliviaria. O tiro de sacrifício no cachorro atropelado que tivera que disparar na noite anterior tinha doído bastante nela também.
Sentaram numa mesa do fundo no bar ainda vazio, todo decorado com relíquias futebolísticas, pediram uma água, dois chopps, e deram início àquele momento especial que era o encontro de duas amigas que tinham que ter uma conversa séria. Alexandra estava curiosíssima para saber o que Clarissa tinha para contar, e estava bem claro que a noite era da amiga. Era sempre Alexandra que precisava de atenção, e Clarissa a ouvia com interesse e carinho. Alexandra percebeu que vinha bomba.
Clarissa contou, com a precisão e o poder de síntese que lhe eram peculiares, toda sua breve e estranha estória com Renato, selecionando minuciosamente todos os detalhes importantes, o que demorou mais de uma hora e meia. Alexandra ouviu tudo aquilo boquiaberta, com o espanto sempre num crescendo. Chegou a babar, de tanto efeito que a estória lhe causou. Como que aquilo que começara com um amor de cinema, em tão pouco tempo tinha tido um fim tão trágico? Daí, Alexandra passou das interjeições de incentivo e assombro para o ping-pong, desempenhando o seu papel de melhor amiga.
- Mas Clarissa, pelo que você me disse, ele não me pareceu tão louco assim. Você tem certeza que ele foi rondar a casa do Danilo à noite? Espionar você com o Penza? O que ele disse?
- Ele não disse nada. No e-mail que ele mandou para se explicar, disse apenas que não valia a pena explicar, porque eu não iria acreditar.
- Você já pensou que ele podia não ter tido nenhuma má intenção? Lembra no colegial, quando toda vez que a gente almoçava na escola, a gente passava na frente da casa do Marcelo e do Guto, que a gente achava o máximo? Não podia ser algo assim, meio normal?
- Alexandra, tava na cara que ele passou a noite no mato. Dava para ver pela roupa, a mesma que ele estava no restaurante, a cara amassada, e a expressão, meu, tava na cara! Ele estava louco, completamente esquisito! Fora a vomitada nojenta!
- O cara estava bêbado e apaixonado. E daí? Grande coisa. Você não disse que deu mole enquanto o Penza estava tocando? O que você queria que ele fizesse? Fosse pra casa bater punheta?
Nesse momento houve uma pausa constrangedora. Por mais que fossem amigas, não costumavam usar essa linguagem chula para fatos da vida real. Brincando sim, claro, mas “punheta” era algo que não podia ser mencionado. Alexandra estava claramente tomando o partido de Renato, influenciada pelo lado romântico da coisa, e Clarissa não estava gostando nada disso.
- Alexandra, você está viajando, achando que isso é uma história romântica. Eu também achava, mas o cara é um freak, um louco, com problema, tá entendendo? E ainda é casado! Maior roubada impossível.
- Tudo bem, dá pra ver a coisa assim. Mas pelo que você está me contando, e do jeito que você está me contando, o cara não é um mané qualquer, e você não acha isso. E pra você achar isso, querida, você sabe que não é nada fácil.
- Não, não, nada disso. O cara é casado, e pirou numa fantasia com uma menina – eu – e pôs toda a sua energia pra simular um amor de cinema. O Renato nem acredita em amor. Como eu te disse, ele acha que foi acometido por um fenômeno psíquico doentio, com a minha imagem dominando completamente o seu cérebro.
- Clarissa, você acha? Não acredita em amor, rá, rá, rá. O cara está completamente apaixonado, louco, e está mal e porcamente disfarçando com esse papo cabeça de quinta. Bem mal, aliás. E você, não fala a mesma coisa? Desde que foi estudar medicina, começou a falar que esse negócio de amor era esquisito, bullshit, lorota, o que valia era o tesão e a empatia. Que a paixão era um processo fisiológico temporário. Aliás, sempre achei isso estranho, porque desde a quinta, sexta série, você sempre esteve apaixonada.
E Alexandra começou a enumerar os amores de Clarissa, um após o outro, sem exceção. Clarissa se irritou de leve.
- Mas Alex, depois que aconteceu aquela merda, o Renato ficou mandando todo santo dia um e-mail, falando mil absurdos, e continuou, sem que eu tivesse respondido nenhum deles. Mandou uns sessenta! Pode? Isso é coisa de louco, stalker, todo mundo sabe disso.
- Clarissa! Mas você me disse que foi assim que ele te ganhou. Mandando lindas cartas de amor. Assim você percebeu que ele respeitava sua "enorme inteligência e cultura", que ele achava você o "ser transcendente" que ele sempre procurou, beleza e inteligência, sexo e poesia, tudo junto aí nesse corpinho lindo!
- Tudo tem limite.
- Meu, você inventou aquela estória louca do pacto platônico. O que você queria que o cara pensasse? Que ele ia ser o seu amiguinho viado confidente? É claro que ele pensou que você estava fazendo um joguinho.
- Alex, ele que inventou esse joguinho ridículo!
- Pode ser, mas você entrou, Clarissa. Você não acha que isso pode deixar um cara um pouco perturbado?
Clarissa ficou puta da vida com a amiga. Como ela podia culpá-la? É evidente que Renato tinha entrado numa viagem. Ela tinha levado a coisa numa boa, como qualquer garota faria. Ele é que era casado e maluco.
- Amiga, o Renato não é louco. Você fodeu a cabeça dele, e agora só tem que resolver se quer ele – roubada, casado – ou o Penza. Aliás, eu não teria a menor dúvida, porque eu acho o Penza um puta gato!
Clarissa nada respondeu. Estava na cara que Alexandra não tinha captado a dimensão da coisa.
Sentaram numa mesa do fundo no bar ainda vazio, todo decorado com relíquias futebolísticas, pediram uma água, dois chopps, e deram início àquele momento especial que era o encontro de duas amigas que tinham que ter uma conversa séria. Alexandra estava curiosíssima para saber o que Clarissa tinha para contar, e estava bem claro que a noite era da amiga. Era sempre Alexandra que precisava de atenção, e Clarissa a ouvia com interesse e carinho. Alexandra percebeu que vinha bomba.
Clarissa contou, com a precisão e o poder de síntese que lhe eram peculiares, toda sua breve e estranha estória com Renato, selecionando minuciosamente todos os detalhes importantes, o que demorou mais de uma hora e meia. Alexandra ouviu tudo aquilo boquiaberta, com o espanto sempre num crescendo. Chegou a babar, de tanto efeito que a estória lhe causou. Como que aquilo que começara com um amor de cinema, em tão pouco tempo tinha tido um fim tão trágico? Daí, Alexandra passou das interjeições de incentivo e assombro para o ping-pong, desempenhando o seu papel de melhor amiga.
- Mas Clarissa, pelo que você me disse, ele não me pareceu tão louco assim. Você tem certeza que ele foi rondar a casa do Danilo à noite? Espionar você com o Penza? O que ele disse?
- Ele não disse nada. No e-mail que ele mandou para se explicar, disse apenas que não valia a pena explicar, porque eu não iria acreditar.
- Você já pensou que ele podia não ter tido nenhuma má intenção? Lembra no colegial, quando toda vez que a gente almoçava na escola, a gente passava na frente da casa do Marcelo e do Guto, que a gente achava o máximo? Não podia ser algo assim, meio normal?
- Alexandra, tava na cara que ele passou a noite no mato. Dava para ver pela roupa, a mesma que ele estava no restaurante, a cara amassada, e a expressão, meu, tava na cara! Ele estava louco, completamente esquisito! Fora a vomitada nojenta!
- O cara estava bêbado e apaixonado. E daí? Grande coisa. Você não disse que deu mole enquanto o Penza estava tocando? O que você queria que ele fizesse? Fosse pra casa bater punheta?
Nesse momento houve uma pausa constrangedora. Por mais que fossem amigas, não costumavam usar essa linguagem chula para fatos da vida real. Brincando sim, claro, mas “punheta” era algo que não podia ser mencionado. Alexandra estava claramente tomando o partido de Renato, influenciada pelo lado romântico da coisa, e Clarissa não estava gostando nada disso.
- Alexandra, você está viajando, achando que isso é uma história romântica. Eu também achava, mas o cara é um freak, um louco, com problema, tá entendendo? E ainda é casado! Maior roubada impossível.
- Tudo bem, dá pra ver a coisa assim. Mas pelo que você está me contando, e do jeito que você está me contando, o cara não é um mané qualquer, e você não acha isso. E pra você achar isso, querida, você sabe que não é nada fácil.
- Não, não, nada disso. O cara é casado, e pirou numa fantasia com uma menina – eu – e pôs toda a sua energia pra simular um amor de cinema. O Renato nem acredita em amor. Como eu te disse, ele acha que foi acometido por um fenômeno psíquico doentio, com a minha imagem dominando completamente o seu cérebro.
- Clarissa, você acha? Não acredita em amor, rá, rá, rá. O cara está completamente apaixonado, louco, e está mal e porcamente disfarçando com esse papo cabeça de quinta. Bem mal, aliás. E você, não fala a mesma coisa? Desde que foi estudar medicina, começou a falar que esse negócio de amor era esquisito, bullshit, lorota, o que valia era o tesão e a empatia. Que a paixão era um processo fisiológico temporário. Aliás, sempre achei isso estranho, porque desde a quinta, sexta série, você sempre esteve apaixonada.
E Alexandra começou a enumerar os amores de Clarissa, um após o outro, sem exceção. Clarissa se irritou de leve.
- Mas Alex, depois que aconteceu aquela merda, o Renato ficou mandando todo santo dia um e-mail, falando mil absurdos, e continuou, sem que eu tivesse respondido nenhum deles. Mandou uns sessenta! Pode? Isso é coisa de louco, stalker, todo mundo sabe disso.
- Clarissa! Mas você me disse que foi assim que ele te ganhou. Mandando lindas cartas de amor. Assim você percebeu que ele respeitava sua "enorme inteligência e cultura", que ele achava você o "ser transcendente" que ele sempre procurou, beleza e inteligência, sexo e poesia, tudo junto aí nesse corpinho lindo!
- Tudo tem limite.
- Meu, você inventou aquela estória louca do pacto platônico. O que você queria que o cara pensasse? Que ele ia ser o seu amiguinho viado confidente? É claro que ele pensou que você estava fazendo um joguinho.
- Alex, ele que inventou esse joguinho ridículo!
- Pode ser, mas você entrou, Clarissa. Você não acha que isso pode deixar um cara um pouco perturbado?
Clarissa ficou puta da vida com a amiga. Como ela podia culpá-la? É evidente que Renato tinha entrado numa viagem. Ela tinha levado a coisa numa boa, como qualquer garota faria. Ele é que era casado e maluco.
- Amiga, o Renato não é louco. Você fodeu a cabeça dele, e agora só tem que resolver se quer ele – roubada, casado – ou o Penza. Aliás, eu não teria a menor dúvida, porque eu acho o Penza um puta gato!
Clarissa nada respondeu. Estava na cara que Alexandra não tinha captado a dimensão da coisa.
O Stalker - Capítulo 46
Renato passou um bom tempo na internet assuntando os significados da expressão “stalker”. A grande massa de páginas, a maioria delas ligadas a universidades norte-americanas, descrevia o delito de “stalking” e orientava a defesa das vítimas de perseguidores. Algumas preferiam nomear o crime de intrusão, porque “stalking” limitava à perseguição, e muitas variações do tipo eram restritas a e-mails não desejados, telefonemas insistentes, enquanto a perseguição implicava fisicamente em tocaia, espionagem, rastreamento, e mesmo a invasão. Havia também o “cyber stalking”, desde a obtenção de dados na internet até a invasão de computadores usados pela vítima ou sistemas com informações sobre ela, e estratagemas para obter endereços eletrônicos e outros dados. Quanto aos sujeitos do “stalking”, variavam do ex-companheiro inconformado com o fim de um relacionamento até o estranho total. A grande maioria dos “stalkers” era do sexo masculino. Dos motivos, quase a totalidade dos casos era de fundo amoroso, e várias análises psicológicas tentavam caracterizar a atividade de “stalking” como uma fantasia de ascensão pessoal, através da conquista do “stalkee”, muitas vezes uma celebridade, que aliás constituíam quase sempre os casos mais graves, ou uma pessoa de alguma forma socialmente superior ao “stalker”. A simples fixação sem explicação ou a vingança também apareciam listados como causa. A orientação da vítima ia desde a aquisição de um novo telefone, deixando o antigo ligado a uma secretária eletrônica só para o “stalker”, até a contratação de seguranças, e a obtenção judicial de ordens de “restraining”, impedindo o “stalker” de se aproximar da vitima. A questão de ignorar ou responder a abordagens, telefonemas ou mensagens insistentes era controvertida. As vezes um firme “não” era eficaz, outras a reiteração do desencorajamento era necessária. “Stalkers” tendem a tomar qualquer manifestação da vítima a ele dirigida como uma mensagem de aproximação. Enfim, havia uma infinidade de manuais, estudos e teorias para auxiliar e orientar a vítima. E terrível era a conclusão manifesta em várias das páginas da pouca utilidade das ordens judiciais contra “stalkers”. Quase ou nada os intimidavam, pois devido ao grau de baixa periculosidade da maioria das situações, as penas brandas e as ordens restritivas eram facilmente suportadas por eles, que quase sempre se acreditavam movidos por uma força superior. O amor, que se ainda não havia sido correspondido, seria em algum momento no futuro.
Estava na cara que se tratava de um esporte universitário norte-americano de enorme popularidade. “Nerds stalking cheerleaders”. Mas Renato ficou intrigado com a generalização do crime para situações tão díspares que iam do simples excesso do apaixonado no envio de cartas de amor, ou da prática comum em adolescentes de tentar encontrar a pessoa desejada em lugares que ela freqüenta por falso acaso, com a grave situação do espião violador da intimidade, o “stalker” clássico que persegue a vítima em marcação cerrada, seguindo cada passo seu, ou ainda o invasor violento. Afinal, as páginas de perfis pessoais como o Orkut não significavam a própria institucionalização do “stalking”, um supermercado de humanos, expostos em prateleiras com aparência, recheio, sabor e preço? Concluiu que a insistência nociva era a chave para distinguir o criminoso. E a nocividade devia ser suficiente para, no mínimo, assustar o “stalkee”, ultrapassando a simples inconveniência. E o que seria assustador? Não aceitar um não como resposta, constatar estar sendo seguido há muito tempo, telefonemas insistentes e silenciosos... E algumas dezenas de mensagens de amor seguidas não respondidas, caracterizaria o crime? Depende do que estiver escrito, pensou Renato.
Do pouco que conhecia de Clarissa jamais imaginaria que ela pudesse se assustar com o teor das mensagens que lhe enviara, nas quais o tema do amor nunca era abordado diretamente. A grande série não respondida procurava apenas entender e explicar como se dera o estranho processo. Bastante longe dos padrões de “stalkers” que encontrara. Apenas tinha tentado uma conexão de intelectos para compartilhar a experiência da existência, com uma expectativa de simples convivência à distância. Primeiro a interlocutora ideal, bonita e inteligente, e, guardando para si, se tudo desse certo nessa fase inicial, o retorno ao sexo selvagem. Mas nunca houve qualquer tentativa de imposição de relacionamento, ou a divinização da personalidade de Clarissa.
Realmente os casos de “stalking” eram sempre difíceis de classificar, e compreendeu a perplexidade das páginas sobre o assunto. Mas assumiu que o seu caso, para esses padrões norte-americanos, já poderia ser considerado crime, dependendo da benevolência do intérprete, pelo menos quanto ao excesso de e-mails. Quanto à perseguição da praia, ainda que não tivesse se efetivado como imaginou Clarissa, sem dúvida nenhuma “stalking”, mais ainda assim não criminoso, achava Renato.
A pesquisa no Brasil pouco revelou acerca do fenômeno, limitando-se a páginas de RPG e uma ou outra tradução de páginas estrangeiras. Aparentemente, a lei penal brasileira não considerava a existência desse crime específico, que acabava limitado a assemelhados como perturbação do sossego, violação da intimidade, em casos menos graves, e assédio sexual em situações de trabalho, chegando a invasão de domicílio e ameaça, nos casos piores.
Mas o que intrigou mesmo Renato é que nem uma só única página em língua inglesa e portuguesa, das dezenas que superficialmente examinou, trazia qualquer informação sobre como auxiliar o “stalker” a se livrar de sua incômoda fixação. Ninguém se preocupava com os “stalkers”. O máximo que encontrou foram algumas páginas semi-humorísticas trazendo técnicas de “stalking”. Onde estava a página do médico do filme “O brilho eterno da mente sem lembranças?” Era dele que ele precisava, para a necessária lavagem cerebral que o livrasse da sua fixação. Será que os padres jesuítas com seu domínio das técnicas mnemônicas podiam ajudá-lo? Ou deveria seguir os conselhos de Clarissa e procurar um psiquiatra com drogas maravilhosas? Claro, os professores de psiquiatria de Clarissa! Os professores da USP. Tinha visto qualquer coisa na imprensa ultimamente acerca dos imensos avanços das drogas para tratamento de distúrbios mentais brandos, que teriam sido muito desenvolvidas depois do Prozac. As depressões, as compulsões, os distúrbios bi-polares, as distimias, mesmo em intensidades baixas podiam ser tratados com ou sem auxílio de psicoterapias, com drogas muito eficazes e com poucos efeitos co-laterais. Havia a possibilidade de proceder a uma sintonia fina, à regulagem do carburador mental dos humanos, controlando a intensidade da mistura de neuro-transmissores. Segundo esses médicos era possível facilitar muito a vida das pessoas comuns com tais incômodos problemas, muitas vezes de base fisiológica. Era provavelmente o seu caso. No estado em que se encontrava, podia facilmente se auto-diagnosticar como compulsivo-maníaco-depressivo, se é que tal condição existia. E a causa devia ser fisiológica, ainda que pudesse ter uma origem psicológica no amor artificialmente construído. Estava resolvido. No dia seguinte procuraria um psiquiatra, de preferência um professor da USP. "Afinal, cabeça avariada é coisa séria".
Estava na cara que se tratava de um esporte universitário norte-americano de enorme popularidade. “Nerds stalking cheerleaders”. Mas Renato ficou intrigado com a generalização do crime para situações tão díspares que iam do simples excesso do apaixonado no envio de cartas de amor, ou da prática comum em adolescentes de tentar encontrar a pessoa desejada em lugares que ela freqüenta por falso acaso, com a grave situação do espião violador da intimidade, o “stalker” clássico que persegue a vítima em marcação cerrada, seguindo cada passo seu, ou ainda o invasor violento. Afinal, as páginas de perfis pessoais como o Orkut não significavam a própria institucionalização do “stalking”, um supermercado de humanos, expostos em prateleiras com aparência, recheio, sabor e preço? Concluiu que a insistência nociva era a chave para distinguir o criminoso. E a nocividade devia ser suficiente para, no mínimo, assustar o “stalkee”, ultrapassando a simples inconveniência. E o que seria assustador? Não aceitar um não como resposta, constatar estar sendo seguido há muito tempo, telefonemas insistentes e silenciosos... E algumas dezenas de mensagens de amor seguidas não respondidas, caracterizaria o crime? Depende do que estiver escrito, pensou Renato.
Do pouco que conhecia de Clarissa jamais imaginaria que ela pudesse se assustar com o teor das mensagens que lhe enviara, nas quais o tema do amor nunca era abordado diretamente. A grande série não respondida procurava apenas entender e explicar como se dera o estranho processo. Bastante longe dos padrões de “stalkers” que encontrara. Apenas tinha tentado uma conexão de intelectos para compartilhar a experiência da existência, com uma expectativa de simples convivência à distância. Primeiro a interlocutora ideal, bonita e inteligente, e, guardando para si, se tudo desse certo nessa fase inicial, o retorno ao sexo selvagem. Mas nunca houve qualquer tentativa de imposição de relacionamento, ou a divinização da personalidade de Clarissa.
Realmente os casos de “stalking” eram sempre difíceis de classificar, e compreendeu a perplexidade das páginas sobre o assunto. Mas assumiu que o seu caso, para esses padrões norte-americanos, já poderia ser considerado crime, dependendo da benevolência do intérprete, pelo menos quanto ao excesso de e-mails. Quanto à perseguição da praia, ainda que não tivesse se efetivado como imaginou Clarissa, sem dúvida nenhuma “stalking”, mais ainda assim não criminoso, achava Renato.
A pesquisa no Brasil pouco revelou acerca do fenômeno, limitando-se a páginas de RPG e uma ou outra tradução de páginas estrangeiras. Aparentemente, a lei penal brasileira não considerava a existência desse crime específico, que acabava limitado a assemelhados como perturbação do sossego, violação da intimidade, em casos menos graves, e assédio sexual em situações de trabalho, chegando a invasão de domicílio e ameaça, nos casos piores.
Mas o que intrigou mesmo Renato é que nem uma só única página em língua inglesa e portuguesa, das dezenas que superficialmente examinou, trazia qualquer informação sobre como auxiliar o “stalker” a se livrar de sua incômoda fixação. Ninguém se preocupava com os “stalkers”. O máximo que encontrou foram algumas páginas semi-humorísticas trazendo técnicas de “stalking”. Onde estava a página do médico do filme “O brilho eterno da mente sem lembranças?” Era dele que ele precisava, para a necessária lavagem cerebral que o livrasse da sua fixação. Será que os padres jesuítas com seu domínio das técnicas mnemônicas podiam ajudá-lo? Ou deveria seguir os conselhos de Clarissa e procurar um psiquiatra com drogas maravilhosas? Claro, os professores de psiquiatria de Clarissa! Os professores da USP. Tinha visto qualquer coisa na imprensa ultimamente acerca dos imensos avanços das drogas para tratamento de distúrbios mentais brandos, que teriam sido muito desenvolvidas depois do Prozac. As depressões, as compulsões, os distúrbios bi-polares, as distimias, mesmo em intensidades baixas podiam ser tratados com ou sem auxílio de psicoterapias, com drogas muito eficazes e com poucos efeitos co-laterais. Havia a possibilidade de proceder a uma sintonia fina, à regulagem do carburador mental dos humanos, controlando a intensidade da mistura de neuro-transmissores. Segundo esses médicos era possível facilitar muito a vida das pessoas comuns com tais incômodos problemas, muitas vezes de base fisiológica. Era provavelmente o seu caso. No estado em que se encontrava, podia facilmente se auto-diagnosticar como compulsivo-maníaco-depressivo, se é que tal condição existia. E a causa devia ser fisiológica, ainda que pudesse ter uma origem psicológica no amor artificialmente construído. Estava resolvido. No dia seguinte procuraria um psiquiatra, de preferência um professor da USP. "Afinal, cabeça avariada é coisa séria".
domingo, agosto 07, 2005
O Stalker - Capítulo 45
A mensagem de Renato atingiu Clarissa quando ela estava fazendo sua longa toalete, acompanhando as mensagens instantâneas, e checando os e-mails. Abriu a mensagem de Renato no instante exato em que ela chegou, e ficou realmente enfurecida. Enfurecida consigo própria, por ter poupado Renato das verdades que ele tinha que ouvir, e com Renato, por fazer-se de desententido quanto à sua claríssima mensagem. Só um estúpido ou um louco não a entenderia. Sabia que Renato não era estúpido, então só podia ser louco. Aquilo não seria resolvido por e-mail. Pegou imediatamente o telefone e ligou para o celular de Renato. Mal ele disse alô, deixando sua habitual elegância de lado, sem cumprimento algum, Clarissa partiu para o pau, quase gritando: “Escuta aqui seu louco o que você tem na cabeça? Você acha que eu vou ser sua amiguinha depois tudo que você aprontou? Vê se me deixa em paz se não eu vou chamar a polícia! Não quero mais você me seguindo, telefonando, mandando e-mail, carta, telegrama, não quero nunca mais perceber que você existe! Você é doente, psicopata, tarado, precisa se tratar, procura um psiquiatra, vai tomar psicotrópicos, eletrochoque, seu, seu, STALKER!”. E bateu o telefone.
Renato ficou lívido, enrubesceu, sentiu tonturas e quase caiu, tamanha a descarga de adrenalina produzida pelo telefonema de Clarissa, que o pegou de pé trocado. Sua cara fervia de vergonha e o seu coração acelerado parecia pretender sair pelas orelhas, que zumbiam. Maldisse a sua estupidez infinita de não ter se mancado antes e evitado mandar a mensagem de uma única palavra, que tivera o efeito de um alfinete num balão inflado. E maldisse mais ainda a horrível verdade que Clarissa esfregou com força na sua cara, como se lutasse contra um encardido que não quer sair. Será que ele era tudo aquilo mesmo, ou ela tinha exagerado? “Uiscão urgente”, pensou, e foi refletir sobre o assunto. E talvez se arremessar do malfadado terracinho.
Como pudera ser tão trouxa? Reconstituindo mentalmente o sabão de Clarissa, enganchou naquela última palavra estrangeira, de som desagradável. A longa sibilante, “sssssssss”, o pavio queimando. A consoante palatal, o “a” com som de “ó’, e o “l” no final, eram a própria explosão. E o “ker”, de garganta, o “e” com som de “ã” e o “r” alongado de língua enrolada, o eco e ribombar da explosão no grande vazio do seu cérebro. Da onde conhecia essa palavra, que era um tanto familiar? Lembrou que era o nome de um filme russo que tinha visto na adolescência, de visual impressionante e narrativa lenta. Um estranho fenômeno tinha transformado uma área rural, que havia sido cercada e o acesso proibido pelo governo porque todos que entravam ali não saíam. Todos não. Alguns sujeitos estranhos, os “stalkers”, por uma compulsão, uma vocação incontrolável, conseguiam entrar e sair da “zona” ilesos, e trabalhavam como guias para quem lá quisesse se arriscar a entrar. O objetivo era um ponto central que havia na “zona” onde uma grande verdade metafísica era revelada, no qual os “stalkers” jamais se interessavam em entrar. Na “zona” a realidade era mutante e cheia de truques, e só os “stalkers” não se deixavam enganar por ela. Provavelmente uma metáfora de viagem de autoconhecimento na mente. Havia algo de heróico naqueles "stalkers". Era disso que Clarissa o tinha xingado? Era melhor dar uma busca na internet. Tinha uma vaga idéia de ser uma tara de perseguição, algo próprio de maníacos perseguidores de estrelas de cinema, contra quem se obtinha liminares proibindo a aproximação a algumas tantas jardas da casa da perseguida. Coisa de americano. No seu caso, só podia ser uma simples ofensa. Ainda que ele tivesse exagerado nas cartas de amor, e na vontade de ver Clarissa, ele era um apaixonado clássico, um Werther, um Romeu, um cara legal, bom filho, bom marido, bom pai, e porque não, bom amante. E esse último pensamento lhe fez dar uma meia risada.
Levantou-se para encher de novo o copo de gelo e uísque, e pôs para tocar uma das músicas do cd apreendido de Fernanda, que ultimamente ouvia sem parar. Chamava-se “Between the bars”. Pelo que tinha entendido da letra, ela estimulava o interlocutor do intérprete a beber a noite inteira, ao esquecimento das oportunidades perdidas, das pressões sofridas, das imagens ruins socadas na mente, das pessoas incômodas, enfim tudo que há de ruim. Só que esse interlocutor estava aprisionado, atrás das grades, apesar da inócua proteção prometida pelo intérprete. Renato se identificou profundamente com a soturna valsinha, parecia ter sido composta para ele, e ficou impressionado quando ficou sabendo que o seu compositor tinha se matado exatamente com a sua idade. Depois foi ao computador e digitou a palavra na janelinha de busca e encontrou dois milhões, trezentas e vinte mil referências, e mais outros dois milhões para "stalking".
Renato ficou lívido, enrubesceu, sentiu tonturas e quase caiu, tamanha a descarga de adrenalina produzida pelo telefonema de Clarissa, que o pegou de pé trocado. Sua cara fervia de vergonha e o seu coração acelerado parecia pretender sair pelas orelhas, que zumbiam. Maldisse a sua estupidez infinita de não ter se mancado antes e evitado mandar a mensagem de uma única palavra, que tivera o efeito de um alfinete num balão inflado. E maldisse mais ainda a horrível verdade que Clarissa esfregou com força na sua cara, como se lutasse contra um encardido que não quer sair. Será que ele era tudo aquilo mesmo, ou ela tinha exagerado? “Uiscão urgente”, pensou, e foi refletir sobre o assunto. E talvez se arremessar do malfadado terracinho.
Como pudera ser tão trouxa? Reconstituindo mentalmente o sabão de Clarissa, enganchou naquela última palavra estrangeira, de som desagradável. A longa sibilante, “sssssssss”, o pavio queimando. A consoante palatal, o “a” com som de “ó’, e o “l” no final, eram a própria explosão. E o “ker”, de garganta, o “e” com som de “ã” e o “r” alongado de língua enrolada, o eco e ribombar da explosão no grande vazio do seu cérebro. Da onde conhecia essa palavra, que era um tanto familiar? Lembrou que era o nome de um filme russo que tinha visto na adolescência, de visual impressionante e narrativa lenta. Um estranho fenômeno tinha transformado uma área rural, que havia sido cercada e o acesso proibido pelo governo porque todos que entravam ali não saíam. Todos não. Alguns sujeitos estranhos, os “stalkers”, por uma compulsão, uma vocação incontrolável, conseguiam entrar e sair da “zona” ilesos, e trabalhavam como guias para quem lá quisesse se arriscar a entrar. O objetivo era um ponto central que havia na “zona” onde uma grande verdade metafísica era revelada, no qual os “stalkers” jamais se interessavam em entrar. Na “zona” a realidade era mutante e cheia de truques, e só os “stalkers” não se deixavam enganar por ela. Provavelmente uma metáfora de viagem de autoconhecimento na mente. Havia algo de heróico naqueles "stalkers". Era disso que Clarissa o tinha xingado? Era melhor dar uma busca na internet. Tinha uma vaga idéia de ser uma tara de perseguição, algo próprio de maníacos perseguidores de estrelas de cinema, contra quem se obtinha liminares proibindo a aproximação a algumas tantas jardas da casa da perseguida. Coisa de americano. No seu caso, só podia ser uma simples ofensa. Ainda que ele tivesse exagerado nas cartas de amor, e na vontade de ver Clarissa, ele era um apaixonado clássico, um Werther, um Romeu, um cara legal, bom filho, bom marido, bom pai, e porque não, bom amante. E esse último pensamento lhe fez dar uma meia risada.
Levantou-se para encher de novo o copo de gelo e uísque, e pôs para tocar uma das músicas do cd apreendido de Fernanda, que ultimamente ouvia sem parar. Chamava-se “Between the bars”. Pelo que tinha entendido da letra, ela estimulava o interlocutor do intérprete a beber a noite inteira, ao esquecimento das oportunidades perdidas, das pressões sofridas, das imagens ruins socadas na mente, das pessoas incômodas, enfim tudo que há de ruim. Só que esse interlocutor estava aprisionado, atrás das grades, apesar da inócua proteção prometida pelo intérprete. Renato se identificou profundamente com a soturna valsinha, parecia ter sido composta para ele, e ficou impressionado quando ficou sabendo que o seu compositor tinha se matado exatamente com a sua idade. Depois foi ao computador e digitou a palavra na janelinha de busca e encontrou dois milhões, trezentas e vinte mil referências, e mais outros dois milhões para "stalking".
O Stalker - Capítulo 44
Clarissa não respondeu ao e-mail de Renato, que teve a compostura de não mais rondar os locais que ela freqüentava. Renato abria a caixa de entrada do seu e-mail várias vezes por dia, e nada. Dia após dia, nada. A carta na qual tinha depositado tantas expectativas tinha falhado. Foi e não trouxe Clarissa de volta. Renato agüentou por uns dias, depois começou a mandar mensagens de novo. Assunto nunca faltava. Tentava ser sucinto, mas às vezes escapavam longas divagações, e ele reduzia o tamanho da fonte para disfarçar. Lembrando que Clarissa havia feito uma citação de Nietzsche, imaginou que ele talvez lhe apontasse um caminho para quebrar o silêncio. Leu o que do filósofo estava ao seu alcance, e impressionou-se particularmente com um aforismo, que transcreveu para Clarissa, apenas para convencer-se que tudo estava perdido.
“Uma vez estivemos tão próximos um do outro, que nada parecia impedir nossa amizade, e havia só uma pinguela entre nós. Quando você ia pisá-la, perguntei: “Você quer cruzar a pinguela?” Mas então você já não queria; e, quando pedi novamente você se calou. Desde então, montanhas e rios de correntes caudalosas, e tudo o que separa e afasta, foram lançados entre nós, e, ainda que quiséssemos nos aproximar já não poderíamos. E quando hoje você lembra aquela pinguelinha, não tem mais palavras – apenas soluços e assombro.”
Tentou ler o Zaratrusta, e atrapalhou-se com o “eterno retorno” e o “amor fatti”. Entendeu que estava preso a essa história não resolvida, e que tinha que aceitar o seu destino. A felicidade completa e a pena perpétua. Lembrou em mensagens que mandava quase todos os dias todos os passos da sua curta ligação com Clarissa, revelando detalhadamente a sua versão dos fatos.
O que Renato não sabia é que Clarissa, algumas semanas depois do crime, foi passar as férias de julho com seus parentes na Bélgica, e ficou todo esse tempo sem sequer olhar sua caixa de e-mail, pois aquele lixo que Renato lhe mandava a incomodava, lesse ou não. Obteve um novo endereço eletrônico, e deixou de utilizar o que Renato conhecia. Sentia-se perseguida e invadida por aqueles escritos confusos e caóticos, e a imagem daquele farrapo humano pervertido, vomitando, estava sempre associada à lembrança de Renato. Mas não teve a coragem de jogar as mensagens fora.
Renato definhava. Não tinha mais energia para pedalar, nadar ou correr. Dava longas caminhadas pelo bairro imerso em fantasias, com a sensação de que tinha deixado a felicidade escapulir entre seus dedos. Cumpria seus deveres com apatia e sem nenhum brilho. A única atividade em que se empenhava era a produção dos e-mails arremessados no vazio. De quando em quando tomava grandes porres. Para que Fernanda o deixasse em paz anunciou que uma grana alta estava chegando.
Fernanda com esse novo comportamento de Renato deixou de achar que ele tinha outra mulher, ou se tinha, a coisa dera errado. Mas ele andava insuportavelmente chato e irritadiço, e a convivência não andava nada fácil. Mas andava eufórica com a expectativa próxima de receberem a grande bolada nos próximos meses, e passava os dias fazendo planos de como gastariam o dinheiro. Carros novos, casa na praia, um novo apartamento. Talvez Renato melhorasse com uma grande viagem pela Europa.
Quando Clarissa chegou, no começo de agosto, encontrou a pasta “e-mail velho” da sua caixa de entrada com quase sessenta mensagens de Renato. Ficou puta da vida e resolveu tentar acabar com aquilo, para o bem do próprio Renato, a quem ela não queria mal. Apenas queria longe. E mandou-lhe a seguinte resposta, achando que estava sendo suficientemente clara.
“Li as suas mensagens e acho que você, apesar de inteligente e criativo, está preso num mundo artificial que você próprio construiu. Abstenho-me de comentar o conteúdo, porque é tudo seu, e o que eu penso não importa”.
Renato, ao abrir a sua caixa de entrada, e encontrar a mensagem de Clarissa lá, depois de dois meses de silêncio, teve o coração disparado de tal forma que ficou imediatamente em estado febril, devido ao excesso de irrigação, e ficou nesse estado por várias horas. Entendeu que Clarissa tinha lhe dado o seu perdão, e teve grandes transportes de alegria. Tratava-se agora de reconstruir o mundo devastado. Pensou várias horas o que iria responder, e optou por uma simples confirmação, pois examinava e revirava a mensagem, e o seu conteúdo era para ele totalmente enigmático. Disparou:
“Amigos”?
“Uma vez estivemos tão próximos um do outro, que nada parecia impedir nossa amizade, e havia só uma pinguela entre nós. Quando você ia pisá-la, perguntei: “Você quer cruzar a pinguela?” Mas então você já não queria; e, quando pedi novamente você se calou. Desde então, montanhas e rios de correntes caudalosas, e tudo o que separa e afasta, foram lançados entre nós, e, ainda que quiséssemos nos aproximar já não poderíamos. E quando hoje você lembra aquela pinguelinha, não tem mais palavras – apenas soluços e assombro.”
Tentou ler o Zaratrusta, e atrapalhou-se com o “eterno retorno” e o “amor fatti”. Entendeu que estava preso a essa história não resolvida, e que tinha que aceitar o seu destino. A felicidade completa e a pena perpétua. Lembrou em mensagens que mandava quase todos os dias todos os passos da sua curta ligação com Clarissa, revelando detalhadamente a sua versão dos fatos.
O que Renato não sabia é que Clarissa, algumas semanas depois do crime, foi passar as férias de julho com seus parentes na Bélgica, e ficou todo esse tempo sem sequer olhar sua caixa de e-mail, pois aquele lixo que Renato lhe mandava a incomodava, lesse ou não. Obteve um novo endereço eletrônico, e deixou de utilizar o que Renato conhecia. Sentia-se perseguida e invadida por aqueles escritos confusos e caóticos, e a imagem daquele farrapo humano pervertido, vomitando, estava sempre associada à lembrança de Renato. Mas não teve a coragem de jogar as mensagens fora.
Renato definhava. Não tinha mais energia para pedalar, nadar ou correr. Dava longas caminhadas pelo bairro imerso em fantasias, com a sensação de que tinha deixado a felicidade escapulir entre seus dedos. Cumpria seus deveres com apatia e sem nenhum brilho. A única atividade em que se empenhava era a produção dos e-mails arremessados no vazio. De quando em quando tomava grandes porres. Para que Fernanda o deixasse em paz anunciou que uma grana alta estava chegando.
Fernanda com esse novo comportamento de Renato deixou de achar que ele tinha outra mulher, ou se tinha, a coisa dera errado. Mas ele andava insuportavelmente chato e irritadiço, e a convivência não andava nada fácil. Mas andava eufórica com a expectativa próxima de receberem a grande bolada nos próximos meses, e passava os dias fazendo planos de como gastariam o dinheiro. Carros novos, casa na praia, um novo apartamento. Talvez Renato melhorasse com uma grande viagem pela Europa.
Quando Clarissa chegou, no começo de agosto, encontrou a pasta “e-mail velho” da sua caixa de entrada com quase sessenta mensagens de Renato. Ficou puta da vida e resolveu tentar acabar com aquilo, para o bem do próprio Renato, a quem ela não queria mal. Apenas queria longe. E mandou-lhe a seguinte resposta, achando que estava sendo suficientemente clara.
“Li as suas mensagens e acho que você, apesar de inteligente e criativo, está preso num mundo artificial que você próprio construiu. Abstenho-me de comentar o conteúdo, porque é tudo seu, e o que eu penso não importa”.
Renato, ao abrir a sua caixa de entrada, e encontrar a mensagem de Clarissa lá, depois de dois meses de silêncio, teve o coração disparado de tal forma que ficou imediatamente em estado febril, devido ao excesso de irrigação, e ficou nesse estado por várias horas. Entendeu que Clarissa tinha lhe dado o seu perdão, e teve grandes transportes de alegria. Tratava-se agora de reconstruir o mundo devastado. Pensou várias horas o que iria responder, e optou por uma simples confirmação, pois examinava e revirava a mensagem, e o seu conteúdo era para ele totalmente enigmático. Disparou:
“Amigos”?
sábado, agosto 06, 2005
O Stalker - Capítulo 43
Renato recomeçou de onde tinha parado. Seu último e-mail à Clarissa jamais seria respondido. E ele tinha a impressão que, desse em diante, nenhum seria. Sua tarefa não era fácil. Tinha que explicar que apesar de pairar sobre ele uma legítima suspeita de ter violado a intimidade de Clarissa da forma mais torpe possível, rondando a casa do meio do mato como um assassino de thriller barato, ele era uma pessoa mentalmente saudável e normal, razoavelmente bem inserido socialmente e bom pai de família. Não ia ser fácil. Tinha essa primeira e única chance, tanto de ser lido como da sua mensagem não ser interpretada como uma invasão. A partir da primeira falta de resposta, que ele tinha certeza ocorreria, já estaria violando as mais basilares regras não escritas da convivência. Parecia-lhe evidente que não tinha como ser bem sucedido, mas tinha que tentar. A pessoa mais importante do mundo achava que ele era um monstro, e ele tinha que se explicar. Encheu-se da coragem daqueles que sabem que têm pela frente uma tarefa acima das suas forças, e seu único consolo era saber que tinha a vida inteira pela frente para se redimir. Um dia Clarissa o perdoaria. Sabia que a carta que estava prestes a fazer nunca tinha sido escrita, então não se preocupou em obter ajuda dos grandes que habitavam sua pequena biblioteca. Sua ambição secreta, que não queria admitir para si próprio de tão absurda que lhe parecia, era retomar o pacto platônico com Clarissa. Lembrou da sua última mensagem, e pensou nela como um cometa de órbita infinita que demoraria muitas vidas para retornar. Sabia que jamais a teria novamente. Sabia que o certo seria deixá-la em paz. Mas sabia que nunca mais teria como recuperar o respeito que se tem frente a um estranho que nunca viu suas fraquezas. Desejava nunca tê-la conhecido.
Podia tentar convencê-la que tinha chegado de manhã para procurá-la, pois desde o telefonema sabia que ela estava hospedada no sertão. Podia tentar persuadi-la da verdade, de que perdera sua pista enquanto a seguia e passara a noite vagando pela mata. Mas naquelas circunstâncias falar a verdade significaria tanto quanto mentir. Nada. Confiante na inteligência de Clarissa, jogou-se no abismo.
“Clarissa
Não sou um monstro, um maníaco que segue pessoas sorrateiramente à noite, embora tenha feito exatamente isso sábado lá no Camburi. Não tinha nenhum intuito perverso, não tinha na verdade nenhum intuito definido. Apenas eu queria estar perto de você, pelo mesma e única razão que me fez largar tudo e descer a serra, que você conhece e não precisa nem ser mencionada. Estava bêbado, e não pude suportar a idéia de ver você sair com outro, principalmente depois da nossa conversa no balcão, quando tive você nos meus braços. Estava enlouquecido de tesão e saí antes de vocês, para não passar pelo mau momento de te ver com outro. Parei o carro na entrada do Camburi, e esperei vocês passarem. Nos meus delírios alcoólicos, fantasiei que você brigaria com seu namorado e viria comigo se eu estivesse perto de você. Claro que eu sabia que isso nunca aconteceria, mas o que faz o apaixonado se não tentar o impossível? Sei que há barreiras que não podem ser quebradas, que eu quebrei. Sei que cometi um crime, não um crime que interesse à justiça, mas um crime que destrói a ligação entre duas pessoas. Mesmo sem ter feito o que parece que eu fiz, e você tem todo o direito de não acreditar nisso, eu sei que a violação da intimidade é um dos piores crimes que um amigo pode fazer.
Para tentar recuperar o seu respeito, minha amiga, sou obrigado a fazer a defesa da transgressão. Não é a transgressão que faz o mundo andar para frente, o rompimento da casca necessário ao crescimento? Não há na história tantos mártires sacrificados na evolução da civilização, que têm boa parte do seu mérito no afastamento das paredes sempre apertadas que aprisionam o nosso espírito? Claro que boa parte desse trabalho é feita por aqueles que atuam na luz, sancionados por títulos, bem remunerados e ovacionados pelos semelhantes. Têm grande valor, não há dúvida. Mas boa parte desse trabalho, talvez a mais difícil e mais suja, tem que ser executada na parte sombria das nossas mentes, e é quase sempre feita por artistas e filósofos bêbados, drogados, homossexuais, alguns à beira da doença mental ou da sociopatia, que muitas vezes sucumbem nessa ingrata tarefa. Claro que não pretendo aqui me comparar a nenhum deles. Não sou artista nem filósofo, sou apenas um tipo comum. Mas se nada de bom vou fazer à humanidade, talvez esse crime, essa imperdoável transgressão que cometi em prejuízo da sua singularíssima pessoa, tenha me feito crescer de alguma forma, me feito testar e aprender os limites que devem balizar as ligações humanas, e eu seja uma melhor pessoa daqui para frente. Desde que você estenda a sua mão, me perdoe e aceite novamente minha amizade.
Renato.”
Apesar do tom grandiloqüente e pretensioso, Renato ficou satisfeito. E apesar de ter sido absolutamente sincero em tudo o que disse, sentiu-se um lobo em pele de cordeiro. Continuava querendo comer Clarissa, e com a carta, voltou a acreditar nisso, ainda que remotamente.
Podia tentar convencê-la que tinha chegado de manhã para procurá-la, pois desde o telefonema sabia que ela estava hospedada no sertão. Podia tentar persuadi-la da verdade, de que perdera sua pista enquanto a seguia e passara a noite vagando pela mata. Mas naquelas circunstâncias falar a verdade significaria tanto quanto mentir. Nada. Confiante na inteligência de Clarissa, jogou-se no abismo.
“Clarissa
Não sou um monstro, um maníaco que segue pessoas sorrateiramente à noite, embora tenha feito exatamente isso sábado lá no Camburi. Não tinha nenhum intuito perverso, não tinha na verdade nenhum intuito definido. Apenas eu queria estar perto de você, pelo mesma e única razão que me fez largar tudo e descer a serra, que você conhece e não precisa nem ser mencionada. Estava bêbado, e não pude suportar a idéia de ver você sair com outro, principalmente depois da nossa conversa no balcão, quando tive você nos meus braços. Estava enlouquecido de tesão e saí antes de vocês, para não passar pelo mau momento de te ver com outro. Parei o carro na entrada do Camburi, e esperei vocês passarem. Nos meus delírios alcoólicos, fantasiei que você brigaria com seu namorado e viria comigo se eu estivesse perto de você. Claro que eu sabia que isso nunca aconteceria, mas o que faz o apaixonado se não tentar o impossível? Sei que há barreiras que não podem ser quebradas, que eu quebrei. Sei que cometi um crime, não um crime que interesse à justiça, mas um crime que destrói a ligação entre duas pessoas. Mesmo sem ter feito o que parece que eu fiz, e você tem todo o direito de não acreditar nisso, eu sei que a violação da intimidade é um dos piores crimes que um amigo pode fazer.
Para tentar recuperar o seu respeito, minha amiga, sou obrigado a fazer a defesa da transgressão. Não é a transgressão que faz o mundo andar para frente, o rompimento da casca necessário ao crescimento? Não há na história tantos mártires sacrificados na evolução da civilização, que têm boa parte do seu mérito no afastamento das paredes sempre apertadas que aprisionam o nosso espírito? Claro que boa parte desse trabalho é feita por aqueles que atuam na luz, sancionados por títulos, bem remunerados e ovacionados pelos semelhantes. Têm grande valor, não há dúvida. Mas boa parte desse trabalho, talvez a mais difícil e mais suja, tem que ser executada na parte sombria das nossas mentes, e é quase sempre feita por artistas e filósofos bêbados, drogados, homossexuais, alguns à beira da doença mental ou da sociopatia, que muitas vezes sucumbem nessa ingrata tarefa. Claro que não pretendo aqui me comparar a nenhum deles. Não sou artista nem filósofo, sou apenas um tipo comum. Mas se nada de bom vou fazer à humanidade, talvez esse crime, essa imperdoável transgressão que cometi em prejuízo da sua singularíssima pessoa, tenha me feito crescer de alguma forma, me feito testar e aprender os limites que devem balizar as ligações humanas, e eu seja uma melhor pessoa daqui para frente. Desde que você estenda a sua mão, me perdoe e aceite novamente minha amizade.
Renato.”
Apesar do tom grandiloqüente e pretensioso, Renato ficou satisfeito. E apesar de ter sido absolutamente sincero em tudo o que disse, sentiu-se um lobo em pele de cordeiro. Continuava querendo comer Clarissa, e com a carta, voltou a acreditar nisso, ainda que remotamente.
sexta-feira, agosto 05, 2005
O Stalker - Capítulo 42
Renato resolveu ligar da estrada para que não começassem a procurá-lo na polícia e em hospitais. Na pousada recebeu vários recados, que não estava em condições de responder. Fernanda atendeu, ele disse que chegaria em uma hora no máximo, e estava dirigindo e tinha que desligar. Era mais de uma hora quando chegou, com o foda-se ligado. Se não tinha o horror de Clarissa estampado na cara, havia bastante desprezo e rancor na expressão de Fernanda. Renato não tinha a menor estrutura para segurar mais essa. Trancou-se no banheiro, tomou um longo banho, vestiu uma roupa confortável, deitou e dormiu. Fernanda não interferiu. Acordou dali a duas horas com o bebê chorando. Percebeu que o choro durava demais, o que parecia significar que Fernanda não o atendia. Levantou, pegou o bebê no colo, e acalmou-o com facilidade. Deu uma volta pelo apartamento, e só encontrou Renatinho com seu vídeo-game portátil em frente a tv. Brincou, cuidou, alimentou, deu banho, ficou com as crianças a tarde inteira, o que lhe fez um bem enorme. O amor incondicional e correspondido que havia entre eles era para ele facilmente compreensível, palpável e verdadeiro. Falou com seu pai, e contou uma mentira simples e consistente, esclarecendo que o negócio era roubada. Tinha lambiscado um pouco da comida das crianças, mas por volta das sete horas sentiu uma fome enorme e pediu uma pizza, que comeu quase inteira. Fernanda só chegou lá pelas nove e meia. Renato não perguntou onde tinha ido, e ela não perguntou nada sobre a viagem. Para quebrar o gelo, Renato comentou do cd que tinha encontrado no porta-luvas, como ele era ótimo e que o tinha ouvido duas vezes na estrada. Perguntou quem tinha lhe dado, o disco ou a dica. Fernanda deu uma leve gaguejada, ao falar que no shopping todo mundo estava ouvindo, e ela resolveu comprar também. Ofereceu-lhe pizza, que ela polidamente recusou. Disse-lhe como havia sido bom passar a tarde com as crianças. Renato ainda estava exausto e foi ver tv na cama. Quando Fernanda saiu do banheiro, ele já estava dormindo.
Clarissa, à noite na estrada voltando para São Paulo, ouvindo o inevitável jazz, sentia-se ofendida. Mais que ofendida, ultrajada. Como pudera se envolver com um cara que além de casado tinha problemas mentais? Não tinha medo, porque sua intuição lhe garantia que ele era cordato e civilizado, jamais faria mal a uma mosca. Nada além de palavras, delírios e elucubrações. Vento, puro vento. Não era humano. Não seria difícil esquecê-lo. Pôs a mão na coxa de Penza, que virou para ela e sorriram um para o outro. Tinha uma dura semana pela frente e começou a planejá-la mentalmente.
Renato acordou cedo, pôs sua roupa de treino e saiu caminhando sem rumo. Era só o que podia fazer, naquele estado físico ainda um pouco precário. O céu estava cinzento e carregado, e o vento sul soprava com força e constância, como ele pôde perceber no alto da praça do pôr do sol. Era uma frente fria que entrava, um prenúncio do inverno. Renato se sentia amaldiçoado. Não era religioso nem supersticioso, mas sentia que devia ter feito algo muito errado para que o universo se voltasse contra ele dessa forma. Não teria Clarissa, mas sua mente estava completamente dominada por ela. A Iara devorava o seu cérebro. Alguma coisa teria que fazer para limpar a sua mente desse enorme entulho inútil. Uma grande festa montada, sem os convidados. Um estádio lotado, sem os times. Uma banda de craques, sem repertório. Um grande circo sem palhaço. Não, palhaço tinha. E alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo. Não havia outro jeito. Tinha que tirar, móvel por móvel, objeto por objeto, esvaziar cada gaveta do seu palácio da memória e tirar o que de Clarissa houvesse lá. E devolver a ela. Tentar explicar a ela o estranho processo mental que o dominara, expor todo a coleção de objetos raros, quadros, esculturas, partituras e poemas que tinha juntado para celebrar Clarissa, e devolver a ela. Quem sabe se ela entendesse o processo, passo a passo, que tinha se apoderado da sua pessoa e da sua vontade, de forma inocente, quem sabe ela poderia o perdoar? Afinal, para que serviria tanta inteligência? Quem sabe? Renato sabia que não era uma boa idéia, mas não tinha outra. Só Clarissa podia quebrar aquele encanto.
Clarissa, à noite na estrada voltando para São Paulo, ouvindo o inevitável jazz, sentia-se ofendida. Mais que ofendida, ultrajada. Como pudera se envolver com um cara que além de casado tinha problemas mentais? Não tinha medo, porque sua intuição lhe garantia que ele era cordato e civilizado, jamais faria mal a uma mosca. Nada além de palavras, delírios e elucubrações. Vento, puro vento. Não era humano. Não seria difícil esquecê-lo. Pôs a mão na coxa de Penza, que virou para ela e sorriram um para o outro. Tinha uma dura semana pela frente e começou a planejá-la mentalmente.
Renato acordou cedo, pôs sua roupa de treino e saiu caminhando sem rumo. Era só o que podia fazer, naquele estado físico ainda um pouco precário. O céu estava cinzento e carregado, e o vento sul soprava com força e constância, como ele pôde perceber no alto da praça do pôr do sol. Era uma frente fria que entrava, um prenúncio do inverno. Renato se sentia amaldiçoado. Não era religioso nem supersticioso, mas sentia que devia ter feito algo muito errado para que o universo se voltasse contra ele dessa forma. Não teria Clarissa, mas sua mente estava completamente dominada por ela. A Iara devorava o seu cérebro. Alguma coisa teria que fazer para limpar a sua mente desse enorme entulho inútil. Uma grande festa montada, sem os convidados. Um estádio lotado, sem os times. Uma banda de craques, sem repertório. Um grande circo sem palhaço. Não, palhaço tinha. E alegria do palhaço é ver o circo pegar fogo. Não havia outro jeito. Tinha que tirar, móvel por móvel, objeto por objeto, esvaziar cada gaveta do seu palácio da memória e tirar o que de Clarissa houvesse lá. E devolver a ela. Tentar explicar a ela o estranho processo mental que o dominara, expor todo a coleção de objetos raros, quadros, esculturas, partituras e poemas que tinha juntado para celebrar Clarissa, e devolver a ela. Quem sabe se ela entendesse o processo, passo a passo, que tinha se apoderado da sua pessoa e da sua vontade, de forma inocente, quem sabe ela poderia o perdoar? Afinal, para que serviria tanta inteligência? Quem sabe? Renato sabia que não era uma boa idéia, mas não tinha outra. Só Clarissa podia quebrar aquele encanto.
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