Clarissa acordou cedo no sábado, da noite sem balada. Resolveu jogar tudo para o alto, e não estudar, como fazia em todo o seu tempo livre. Sabia que Penza iria acordar tarde como sempre, e aquela linda manhã era só sua. Pensou que seria bom correr no parque com Renato, que lhe parecia diurno e saudável, com seu cabelo cortadinho, seu raciocínio claro, aquelas roupas quase completamente caretas, e o carro bom. Não tinha o seu telefone, senão ligava. Tomou um yogurte com granola, um copo d’água, pegou um dos carros econômicos de uso comunitária no abrigo na frente da casa, feliz por não ter que negociar com os outros naquele momento de baixa prioridade, e saiu. Lá pelas nove e quinze já estava se alongando na cerca da quadra de basquete do parque Villa-Lobos, aonde alguns manos do Jaguaré estavam tomando posse do campo, jogando vinte e um. Vestia um boxer de tecido sintético com elástico, uma camiseta soltinha e curta de algodão, com um top esportivo por baixo. O cabelo estava preso por baixo do boné com a característica caveira da Med, adereço que causava um bom contraste com o resto, e impunha um puta respeito. Saiu trotando com uma passada leve e ritmada de bailarina, respirando profundamente e devagar, concentradíssima na análise dos processos metabólicos em curso, que conhecia tão bem. Não fazia nenhum barulho e ultrapassava os caminhantes sem que eles percebessem qualquer sinal de sua aproximação. Percorreu todo o circuito de asfalto, a ligação de concreto, disposta a ir até o fim daquela desagradável extensão cimentada, que parecia uma pista de pouso. Já aquecida, acelerou um pouco o ritmo, aumentou um pouco a passada, e sua velocidade quase dobrou. Quando chegou ao fim da pista, resolveu contornar os campões de futebol, para pegar um trecho de grama confortável para a corrida. Quando contornava a quina do segundo campo, ouviu gritarem o seu nome, com aquela empostação penetrante e alta das comunicações do futebol: Clarissa! A dupla sibilância foi quase um assobio. Virou sem parar, e reconheceu o inesquecível e marcante amigo cafajeste de Renato, o Wagnão, vestido com um uniforme espalhafatoso de futebol de várzea, a postos para o rachão. Achou que valia a pena o contato. Fez meia volta trotando o mais devagar possível, chegou até uns dois metros dele, e ficou trotando no lugar, para que não tivesse que cumprimentá-lo por qualquer meio que implicasse contato físico. Depois dos relinchos de parte a parte, “E aí, dando uma ralada?”... ... “Tá em forma hein garota”, Clarissa parou de trotar, abanou-se com a mão para mostrar que estava suada, ainda evitando preventivamente o contato físico, e disparou: “Você tem aí o telefone do Renato?”, sem nenhuma desculpa ou explicação. “Tenho aqui na minha sacola, na memória do telefoninho, peraí que eu vou pegar”. Pelejou um pouquinho para achar papel e caneta, mas não ia negar nada àquele piteuzinho. Na hora de entregar o papel, quando ele se aproximou ela fez menção de ir embora. Ele aproveitou o sinal para segurar-lhe o braço e dar-lhe um beijo meio babado entre o rosto e o pescoço, com estalo prolongado e tudo. “Tchau menina se cuida”, “valeu, Wagnão”, e até que não tinha sido tão mau assim. Apertou aquele papelzinho como se fosse uma nota de cem dólares, e retomou a corrida em ritmo mais acelerado do que antes, turbinada pela pequena emoção do encontro e as possibilidades em tese infinitas daquele número. Correu até completar cinqüenta minutos, alongou-se na cerca da quadra de basquete, onde dois times mistos de manos e minas jogavam, pegou o carrinho e foi embora, ouvindo uma rádio pop.
Em casa, completou o café-da-manhã dividindo o jornal com seus irmãos. Pegou o caderno de cultura e saiu meio de fininho, rápido, e trancou-se no banheiro. Fez dois cocôs bonitos, de bom tamanho, brilhantes e escuros, expelidos sem qualquer resíduo, e não pôde deixar de ter algum orgulho de seu estado físico e seu metabolismo perfeito. Ao entrar no banho contemplou os pentelhos ruivos, que iam do escuro ao cobre, abundantes e crescidos, e pensou que estava na hora de apará-los, embora os achasse bonitos assim. Jamais se depilaria com cêra ou rasparia com uma lâmina região de pele tão sensível, que não tinha qualquer poro saltado ou marca, fora a textura de sardas ininterruptas. No chuveiro estava se sentindo incrivelmente bem. Deixou o cabelo secar solto e vestiu uma roupa larga de fibras macias, com uma toalha nos ombros. Ligou para sua melhor amiga, que era sua colega do segundo grau, e combinaram de ir a uma exposição importante na Pinacoteca. Depois do físico, a mente. Queria se sentir bonita, saudável, inteligente e culta. Passearam entre as obras incompreensíveis, na luz zenital do átrio coberto de vidro, e se fotografaram com uma máquina digital, aproveitando o ambiente que lhes parecia cosmopolita e espiritual. Alexandra perguntou como ia o Penza, e Clarissa disse que estava tudo ótimo. Não quis mencionar seu novo interesse potencial por Renato. Talvez fossem almoçar hoje, mas não tinha nada combinado. No caminho de volta, já lá pelas duas da tarde, Penza ligou convidando-a para almoçar na casa de seus pais. Foram as duas. Os almoços de sábado da casa da famiglia Penzarotti eram divertidíssimos, cheios de irmãos, cunhados, tios e primos, que discutiam acaloradamente sobre tudo, em volta de uma farta mesa italiana regada a bom vinho, com direito a café expresso, licor, grappa e amaretto no final. Lá pelas cinco horas, Penza tinha que ir embora para ir passar o som no lugar onde ia tocar, que era um pouco longe, talvez nem voltasse para casa antes do show. Alexandra deixou Clarissa em casa e foi embora. Ficaram de se falar mais à noite para uma eventual balada, mas Alexandra não tinha a menor intenção de ir ver Penza tocar, de novo. Em casa, sua mãe fazia tricô vendo um clássico do cinema, e o seu pai lia um livro na varanda que dava para o jardim dos fundos. Seus irmãos não estavam. Subiu e ligou para Renato.
Quando o celular de Renato tocou no criado mudo de Fernanda, Renato não tinha a menor idéia de quem podia ser. A sessão de sexo selvagem não havia sido nada má, apesar de os dois estarem meio pesados do almoção, o que foi compensado pela animação provocada pelo meio excesso de álcool. Fernanda nesse momento estava debaixo do chuveiro, enquanto Renato ainda nu assistia qualquer coisa na tv. Qual não foi sua surpresa quando identificou a voz sorridente de Clarissa, sugerindo que se encontrassem de bicicleta na praça Conde de Barcelos, a meio caminho da casa dele e dela. “Já?” perguntou Renato. “Agora” respondeu Clarissa. Renato vestiu correndo a fatiota de falso skatista, ainda cheirando a sexo, entrou no banheiro e avisou Fernanda - cheia de creme rinse na cabeça e impossibilitada de qualquer reação - que ia dar uma volta de bike para queimar o excesso do almoço, e voltava em uma hora, uma hora e meia no máximo. Depois pegava as crianças, ou se ela quisesse podia ir antes dele voltar. “Leva o celular” ela disse, como última chance de o monitorar.
Em casa, completou o café-da-manhã dividindo o jornal com seus irmãos. Pegou o caderno de cultura e saiu meio de fininho, rápido, e trancou-se no banheiro. Fez dois cocôs bonitos, de bom tamanho, brilhantes e escuros, expelidos sem qualquer resíduo, e não pôde deixar de ter algum orgulho de seu estado físico e seu metabolismo perfeito. Ao entrar no banho contemplou os pentelhos ruivos, que iam do escuro ao cobre, abundantes e crescidos, e pensou que estava na hora de apará-los, embora os achasse bonitos assim. Jamais se depilaria com cêra ou rasparia com uma lâmina região de pele tão sensível, que não tinha qualquer poro saltado ou marca, fora a textura de sardas ininterruptas. No chuveiro estava se sentindo incrivelmente bem. Deixou o cabelo secar solto e vestiu uma roupa larga de fibras macias, com uma toalha nos ombros. Ligou para sua melhor amiga, que era sua colega do segundo grau, e combinaram de ir a uma exposição importante na Pinacoteca. Depois do físico, a mente. Queria se sentir bonita, saudável, inteligente e culta. Passearam entre as obras incompreensíveis, na luz zenital do átrio coberto de vidro, e se fotografaram com uma máquina digital, aproveitando o ambiente que lhes parecia cosmopolita e espiritual. Alexandra perguntou como ia o Penza, e Clarissa disse que estava tudo ótimo. Não quis mencionar seu novo interesse potencial por Renato. Talvez fossem almoçar hoje, mas não tinha nada combinado. No caminho de volta, já lá pelas duas da tarde, Penza ligou convidando-a para almoçar na casa de seus pais. Foram as duas. Os almoços de sábado da casa da famiglia Penzarotti eram divertidíssimos, cheios de irmãos, cunhados, tios e primos, que discutiam acaloradamente sobre tudo, em volta de uma farta mesa italiana regada a bom vinho, com direito a café expresso, licor, grappa e amaretto no final. Lá pelas cinco horas, Penza tinha que ir embora para ir passar o som no lugar onde ia tocar, que era um pouco longe, talvez nem voltasse para casa antes do show. Alexandra deixou Clarissa em casa e foi embora. Ficaram de se falar mais à noite para uma eventual balada, mas Alexandra não tinha a menor intenção de ir ver Penza tocar, de novo. Em casa, sua mãe fazia tricô vendo um clássico do cinema, e o seu pai lia um livro na varanda que dava para o jardim dos fundos. Seus irmãos não estavam. Subiu e ligou para Renato.
Quando o celular de Renato tocou no criado mudo de Fernanda, Renato não tinha a menor idéia de quem podia ser. A sessão de sexo selvagem não havia sido nada má, apesar de os dois estarem meio pesados do almoção, o que foi compensado pela animação provocada pelo meio excesso de álcool. Fernanda nesse momento estava debaixo do chuveiro, enquanto Renato ainda nu assistia qualquer coisa na tv. Qual não foi sua surpresa quando identificou a voz sorridente de Clarissa, sugerindo que se encontrassem de bicicleta na praça Conde de Barcelos, a meio caminho da casa dele e dela. “Já?” perguntou Renato. “Agora” respondeu Clarissa. Renato vestiu correndo a fatiota de falso skatista, ainda cheirando a sexo, entrou no banheiro e avisou Fernanda - cheia de creme rinse na cabeça e impossibilitada de qualquer reação - que ia dar uma volta de bike para queimar o excesso do almoço, e voltava em uma hora, uma hora e meia no máximo. Depois pegava as crianças, ou se ela quisesse podia ir antes dele voltar. “Leva o celular” ela disse, como última chance de o monitorar.