terça-feira, novembro 20, 2007

Amêndoas Amargas

Ontem fui assistir ao "Leões e cordeiros", filme-planfeto anti-bush anti-guerra anti-terror anti-apatia dos comedores de hambúrgueres e batatas fritas. Previsível, pra dizer o mínimo. E antes o trailer do "Amor nos tempos do cólera", baseado no livro do Gabriel Garcia Marquez. Lembrei que li o livro nos oitenta e seis, oitenta e sete, e não me lembrava nada além do título. Depois de perder uns bons dez minutos procurando na nossa bagunçada estante, sofregamente reli de cabo a rabo, na modorra do feriado. O livro abre com a descrição de uma cena de suicídio descoberta pela manhã, a partir do cheiro de amêndoas amargas. Logo se sabe que a morte foi pela vaporização do cianureto, que exala este aroma característico. Lembrei que quando parei de fumar uma das distrações para a ansiedade eram ameixas pretas, que eu comia e ficava roendo o caroço, até uma vez o caroço quebrou e descobri lá dentro uma pequena amêndoa, com um acentuado sabor de amêndoa, um que não é evidente na noz em natura, mas no amareto ou no marzipan. Conversando por acaso com um médico sobre o fato, ele disse que esta amêndoazinha da ameixa tinha um alto teor de cianureto, ou uma substância aparentada a ele. Mas só lendo o livro do Garcia pude fazer a relação entre o aroma, o veneno, e a sua vaporização. Comentei espantado com a minha filha vestibulanda que passava, que acrescentou que era o aroma sentido nos campos de concentração nazistas quando se ligava o gás, conforme aprendeu no cursinho. Isso tudo só no primeiro parágrafo. No livro todo os aromas, odores, cheiros e fedores têm papel importante, assim como a berinjela.

domingo, novembro 18, 2007

Pura ficção




A pujante vegetação do baldio do lado, outrora objeto da minha cobiça.


XVI
Victor, na seqüência da sua pesquisa, foi dar em um médico do interior que logo ao início da epidemia do vírus HIV elaborou um programa de saúde pública de combate a este e demais DSTs, aproximou-se do governo do estado e conseguiu implantá-lo. O sucesso evidente em nível estadual e a conquista do governo tucano levaram o programa para a esfera federal. A sua permanência na evolução da discussão das patentes de medicamentos na OMC, a conquista da brecha para a licença forçada em caso de estado de necessidade. A luta contra os grandes laboratórios que tentaram fechar a brecha em regulamentos posteriores, e a aparente virada do jogo, com a implantação dos planos estatais de administração do mercado de medicamentos e o seu enorme poder de negociação de preços, pelo menos nas praças pobres. E quando a corda estourou, foi licenciada à força a patente de um medicamento da primeira linha de combate ao vírus. Mais ou menos contemporâneo a estes fatos foi a sua prematura demissão na coordenação do programa de combate ao vírus na OMS, e andava agora em discussões, debates em Harvard. Teria mordido a isca? Victor não acreditava nisso. Estava entrando na boca do dragão, novamente. Tinha que falar com ele.




Sua outra linha de pesquisa foi ler, com um copo de uísque com gelo lentamente derretendo ao seu lado, ouvindo música que o fazia sentir-se inteligente, como as peças de câmara de Bach, ou os quartetos de Beethoven, o livro de Márcia Angell, “A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos”, uma médica de Harvard, editora de uma importante revista médica da Nova Inglaterra, denunciando a cobiça desumana dos laboratórios farmacêuticos, as mais lucrativas indústrias do mundo, abusando dos medos da população com a exploração da ganância dos médicos. Ou algo tão tenebroso quanto. O cruzamento desta três fontes, a trajetória de médico do interior, a explosiva história do laboratório nacional de genéricos Mercury, dentro do panorama pessimista da indústria mundial pintado por Marcia determinariam o seu plano. Só tinha que pensar como o bandido.



sábado, novembro 17, 2007

O sol...







... voltou a brilhar em nossas praias, então acho que terei que tomar alguma atitude.

Zumbido na linha


Acabou de sair daqui o terceirizado da telefônica, o que faz o telefone funcionar pra dentro da casa, mediante um contrato de dois, três reais por mês. Tem umidade no conduíte. Quando mudamos, lutamos uns dois anos até matar um ponto contaminado, substituir os conduítes por um caminho mais seco, e estávamos já há vários anos sem problemas. Mas de uns tempos pra cá o zumbido da linha voltou. O Francisco cordialmente se apresentou, estendeu a mão perguntando o meu nome, disse e apertei a sua mão com firmeza. Logo descobriu onde estavam as caixinhas de passagem externas e foi correndo para elas. Avisei que eram duas linhas e a que estava com problemas era a que está conectada ao alarme. Mostrei a caixinha de passagem interna e esperei o diagnóstico óbvio. Umidade. Cortou a ponta dos fios, substituiu a tomada do primeiro ponto, e gritou que estava pronto. Ponderei com ele que se havia a infiltração era uma questão de tempo para o problema voltar. Quando percebeu que eu não esperava nenhum milagre, disse que como eu era um cara “que entende”, sugeria a utilização da rede elétrica para transmitir o sinal do telefone, podendo utilizar qualquer tomada para isso. Legal, eu disse, vamos esvaziar os conduítes. Despedimo-nos cordialmente e bati o portão de treliça. Alguém sabe alguma coisa sobre isso?

sexta-feira, novembro 16, 2007

O vulto


Tinha um mendigo parado na minha porta há um tempão. Eu, da minha torre, via o vulto atrás da treliça. Tocou a campainha e a empregada ignorou. Às vezes elas usam a tática de fingir de morto, pra ver se o cara vai embora. Só que este não ia. Pegou um “folder” (né, Jayme) mal enfiado na caixa do correio, desdobrou ele inteiro, deu uma longa olhada e enfiou de novo. Daí fui procurar a câmera pra tirar uma foto do vulto, talvez uma depois que ele saísse andando, pra mostrar aqui. O flash (fleche, como diria a Franka) que não devia ter disparado talvez tenha chamado a sua atenção. Ele conseguiu dar um grito telepático, e eu acabei descendo, pensando em enxotá-lo dali, polidamente. Fui lá e era o piscineiro polidamente irritado, falando que tocou a campainha três vezes e ninguém atendeu. É nosso piscineiro há uns nove anos, desbancou o anterior com uma proposta irrecusável de cenzão por mês com produto, a piscina está sempre limpa e nunca o vejo, vêm religiosamente terça e sexta. Sempre andou de carro legal, lembro de uma saveiro vermelha tunada. Achei que era um rapaz empreendedor, que ia subir na vida. Hoje não estou vendo o carrão. Traz o seu próprio equipamento. Hoje me ocorreu que o cara é um verdadeiro elvis, um galã clássico. Será um estereótipo de filme pornô, que come patroas, filhas e empregadas, o homem da mangueira grande? Ele me parece ser um cara super sério e objetivo, que caiu numa armadilha. Acho que ele gasta meia-hora, quarenta minutos com cada casa. Assim, em um dia, ele deve conseguir fazer dez casas. Cinqüenta casas por semana, o que, dividido por dois dá umas vinte e cinco casas, o que rende (agora está em uns cento e trinta por mês) Três mil duzentos e cinqüenta, uma boa grana, deu pra pagar a faculdade mas não dá mais pra largar, pra dar o próximo passo. Agora a piscina está toda agitada, feliz, limpinha, e eu ouço a bomba durante as pausas do “Let it bleed” que eu estou ouvindo. A empregada estava arrumando as camas, por isso não ouviu a campainha.

quinta-feira, novembro 15, 2007

Quando passar dê tchauzinho




O feriado chuvoso e fresco inspira divagações melancólicas. As plantas túrgidas e intumescidas de clorofila balançam com os saltos dos grandes sabiás que tentam cloacar as barulhentas fêmeas no cio. Quarenta e seis minutos e quarenta e um segundos do terceiro dos primeiros quartetos de Beethoven, em ré majeur, o tipo de música que te deixa mais inteligente, já associado a doces memórias de longas divagações alcoólicas andando de um lado para o outro sozinho na sala com um uiscão na mão, com muito gelo para controlar a velocidade e a hidratação, um ritmo todo próprio determinado pela fusão do gelo no álcool amarelo. Aqui na minha torre controlo tudo. A grande parede de vidro à minha esquerda, e o ripado com as mirradas e maltratadas orquídeas penduradas, felizes apesar de tudo, a vista do escritório plantado em cima do pé direito e meio da sala. Por este vidro esquerdo vejo o corpo principal da casa. Primeiro, na quina mais distante de onde estou, o quarto da filha mais nova, pendurado sobre o terracinho em um palito de concreto, desses feito com tubo de papelão espiralado. Depois, o janelão fosco do seu banheiro, de vidro jateado esverdeado, com um dos basculantes permanentemente aberto. Daí a janela igual do banheiro da filha mais velha, e o seu basculante aberto. Na seqüência, a janela do quarto desta filha, quadradona de correr, como as outras, todas ligadas por uma régua de concreto estreito à guisa de beiral pequeno demais, as folhas por fora penduradas num travessão. Continuando, a janela do meu quarto, e a grande chaminé da lareira supostamente alentejana, os tijolos arrumados como castelo de cartas na grelha da saída, em vermelhão de pó xadrez já desbotado, de novo o terracinho do orquidário onde amarro a minha rede, um lugar íntimo porque dá na altura do pé o janelão do meu banheiro, com o inevitável basculante aberto. Esses basculantes são certamente os responsáveis pelo vazamento de pernilongos, uma constatação importante neste início de temporada. Olhando à minha frente, voltado para o sul, o longo corredor sobre a caixa da escada, seis degraus para descer o meio pé direito extra, e um grande vidrão, agora vertical, de pé direito e meio, a falha na privacidade da casa, que devassa parte da cozinha do vizinho, mal coberta por um bambu que nunca chegou lá. Esse espaço estreito de doze metros e altura variável é forrado por uma taquara genuinamente mineira de Botucatu, ainda quase totalmente inteira com dez anos de idade, fora um leve desbeiçamento lateral, nenhum sinal de cupim. No canto direito oposto ao vidrão vertical, um janelão de um metro e meio quadrado e fixo na face oeste, virado para a rua, protegido do poente por uma persiana comum. Vigio o movimento, escrevo sentado para a frente e volta e meia minha visão periférica é acionada por um movimento qualquer, pedintes, garis, carroceiros, distribuidores de panfletos, serviços de gás, tv a cabo, coisas do gênero, nos sábados de manhã esportistas de fim de semana, gente com cachorro, passantes. Mas com essa chuvinha criadeira em pleno feriado não passa ninguém. Consulto o jogador de média, e o disco ainda vai pelo meio.