Clarissa voltou para a mesa alterada. O tédio tinha se transformado em pura excitação. A aparição sobrenatural de Renato causou um grande efeito nela. Naquele momento, sua vontade era mergulhar nos braços de Renato e cair fora da chatice em que se encontrava. Mas jamais faria isso com o Penza, o melhor namorado que tivera, que não tinha culpa nenhuma de ter aquele irmão mala. Quando chegou na mesa, algumas pessoas estavam ali rodeando o Penza e querendo falar com ele, que não fazia o tipo comum de músico de bar. Ele era jovem demais, estiloso demais, charmoso demais e seu instrumento aparentava ser caro demais, para um músico de bar. Fora o repertório, também chique demais. Além de alguns fãs de jazz, algumas moças bronzeadas vestidas em fino estilo praiano também começaram a rodear a figura. Clarissa sentiu que era hora de defender o território e passou a fazer o papel de primeira dama do Penza, o que fazia muito bem para o seu ego. Aquele príncipe tinha uma princesa à altura.
Pensava que Renato estava escravizado e faria tudo que ela quisesse, quando ela quisesse e se ela quisesse. Largou a mulher em São Paulo só para vê-la, sabendo que não tinha nenhuma chance. Era um pouco demais, um pouco esquisito, o cara deveria estar um pouco fora de controle para fazer aquilo, apesar de parecer tão calmo e sensato. Não lhe parecia certo. E ela ainda não obtivera as informações que ela achava essenciais para averiguar a firmeza do terreno. Fazer tudo aquilo não era normal. “Será que ele tem problemas?”.
Penza se empolgou com a atenção recebida, e teve certeza que haveria uma terceira entrada. Depois de duas horas tocando, estava naquele ponto em que não precisava fazer mais qualquer esforço. Tinha toda a liberdade do mundo, podia acelerar e reduzir o tempo à vontade para fazer caber qualquer frase que tivesse vontade de tocar. Ouvia a seqüência de acordes de cada tema em sua cabeça sem precisar tocá-los, e transitava do tema ao improviso sem risco de se perder, em alguns momentos se dando ao luxo de conduzir a harmonia com um walking bass, controlando o tema e contrapondo-o ao improviso, que fazia desmontando os acordes em várias melodias aparentadas com o tema. Sentia-se um Bach com suas variações, e estava em outro mundo, onde não havia mais ninguém. A audiência era a prova em espelho de que ele existia e era ele que estava fazendo aquela música excelente. Sentiu que não podia parar, para que a magia não se quebrasse, e depois de cinco minutos atendendo os outros com sorrisos e sem ouvir o que estavam falando, voltou correndo para sua guitarra, ainda em estado de absoluta concentração. Clarissa ficou solta novamente, e percebeu que para Penza, naquele momento, ela simplesmente não existia, e no transe em que ele estava, as outras mulheres não ofereciam nenhum risco. Pelo menos até ele parar de tocar. O senso de diversão falou mais alto e ela foi lá ter com o Renato.
Dessa vez, quando Renato percebeu a aproximação de Clarissa, desceu do banquinho para facilitar o contato físico. Não tinha jantado, só comido uma porção de lula à provençal, e passado tanto tempo, depois de tudo que já tinha bebido e com a excitação do encontro também estava num estado de consciência alterado. Antes de Clarissa encostar, aproveitou que o barman passava na sua frente e pediu dois Drambuie. Se ela não tomasse, tomava ele. Foi logo segurando os braços de Clarissa e tentando puxá-la para si. Renato sentiu que ela retesava os músculos rijos quando segurou os antebraços dele, mantendo à distância. A moça era forte, e ele teria que fazer muito mais força se quisesse agarrá-la contra a vontade. Clarissa deu risada e falou em seu ouvido: “você tá louco se acha que eu vou deixar você me agarrar aqui”. Renato de bate-pronto respondeu: “vamos lá fora”. Clarissa caiu na gargalhada e Renato emendou, mudando de assunto: “você quer um licor?” “Que é que é isso?”. “Drambuie, gosta?” E ficaram lá bebericando e falando bobagem. Clarissa sentiu que não havia clima para uma entrevista de projetos, sonhos e aspirações, e ficou só naquela deliciosa provocação.
Penza, a essa altura, estava começando a passar do ponto, atacando complicados e pouco palatáveis temas de bebop em alta velocidade, à medida que o restaurante esvaziava. Depois de dez minutos tocando uma algaravia que só ele conseguia acompanhar, na primeira pausa o dono do lugar foi lá e convidou-o a tomar um drinque com ele. Penza estava tomado mas não era burro, e aceitou. Clarissa já tinha dispensado Renato e estava lá a postos na mesa. Sua ausência não tinha sido notada. Tomaram licores e café, Penza guardou rapidamente o pouco equipamento que tinha, e foram embora.
Renato foi antes deles, e maldizia sua sorte com aquele amor impossível. Tinha conquistado a mulher da sua vida e não podia tê-la. Aquilo não estava certo. Sua vontade era fazer como os homens pré-históricos dos desenhos animados. Pegá-la pelos cabelos e arrastá-la para sua caverna, mesmo que tivesse que usar a sua clava. Mas isso também não estava certo. Ela tinha que vir de livre e espontânea vontade, e ele tinha certeza que ela tinha essa vontade. Era só uma questão de paciência e perseverança. No estado de excitação em que estava, não podia simplesmente ira para a pousada e dormir. Aproveitando estar oculto no carro filmado de Fernanda, resolveu descobrir onde eles estavam. Parou depois do morro, na primeira entrada do Camburi, apontou o carro para fora na posição de quem do Camburi entra na estrada e esperou, angustiado e incomodado com o que estava fazendo.
Dali a uns quarenta minutos viu o carro do Penza passando vagarosamente pela estrada. Ligou o carro, esperou que ele se distanciasse uns cem metros e saiu atrás dele. O carro de Penza sumiu na primeira curva. Quando Renato a contornou, viu o carro de Penza ainda na sua frente. Dali a um pouco, acenderam-se as luzes de freio do carro de Penza e ele virou à direita. Renato acelerou, e chegou a tempo de ver o carro de Penza sumindo lá na frente, na estradinha de terra. Renato foi devagar atrás dele, seguindo a poeira levantada pelo carro de Penza que batia nos faróis. De repente fez uma curva e viu que Penza freava o carro, e pela duração da freada percebeu que ele estava estacionando. Freiou forte ao mesmo tempo em que desligava os faróis, e estacionou de qualquer jeito. Abriu o porta-luva, que possuía uma luz interna, e se conhecia bem Fernanda encontraria lá uma lanterna. De fato, encontrou lá uma lanterninha chaveiro em perfeito funcionamento. Foi atrás deles, que estavam com uma lanterna só e caminhavam em silêncio e devagar. Renato seguiu-os com a lanterna desligada, tropeçando no piso irregular, no escuro completo da trilha ensombrada pela mata.
Pensava que Renato estava escravizado e faria tudo que ela quisesse, quando ela quisesse e se ela quisesse. Largou a mulher em São Paulo só para vê-la, sabendo que não tinha nenhuma chance. Era um pouco demais, um pouco esquisito, o cara deveria estar um pouco fora de controle para fazer aquilo, apesar de parecer tão calmo e sensato. Não lhe parecia certo. E ela ainda não obtivera as informações que ela achava essenciais para averiguar a firmeza do terreno. Fazer tudo aquilo não era normal. “Será que ele tem problemas?”.
Penza se empolgou com a atenção recebida, e teve certeza que haveria uma terceira entrada. Depois de duas horas tocando, estava naquele ponto em que não precisava fazer mais qualquer esforço. Tinha toda a liberdade do mundo, podia acelerar e reduzir o tempo à vontade para fazer caber qualquer frase que tivesse vontade de tocar. Ouvia a seqüência de acordes de cada tema em sua cabeça sem precisar tocá-los, e transitava do tema ao improviso sem risco de se perder, em alguns momentos se dando ao luxo de conduzir a harmonia com um walking bass, controlando o tema e contrapondo-o ao improviso, que fazia desmontando os acordes em várias melodias aparentadas com o tema. Sentia-se um Bach com suas variações, e estava em outro mundo, onde não havia mais ninguém. A audiência era a prova em espelho de que ele existia e era ele que estava fazendo aquela música excelente. Sentiu que não podia parar, para que a magia não se quebrasse, e depois de cinco minutos atendendo os outros com sorrisos e sem ouvir o que estavam falando, voltou correndo para sua guitarra, ainda em estado de absoluta concentração. Clarissa ficou solta novamente, e percebeu que para Penza, naquele momento, ela simplesmente não existia, e no transe em que ele estava, as outras mulheres não ofereciam nenhum risco. Pelo menos até ele parar de tocar. O senso de diversão falou mais alto e ela foi lá ter com o Renato.
Dessa vez, quando Renato percebeu a aproximação de Clarissa, desceu do banquinho para facilitar o contato físico. Não tinha jantado, só comido uma porção de lula à provençal, e passado tanto tempo, depois de tudo que já tinha bebido e com a excitação do encontro também estava num estado de consciência alterado. Antes de Clarissa encostar, aproveitou que o barman passava na sua frente e pediu dois Drambuie. Se ela não tomasse, tomava ele. Foi logo segurando os braços de Clarissa e tentando puxá-la para si. Renato sentiu que ela retesava os músculos rijos quando segurou os antebraços dele, mantendo à distância. A moça era forte, e ele teria que fazer muito mais força se quisesse agarrá-la contra a vontade. Clarissa deu risada e falou em seu ouvido: “você tá louco se acha que eu vou deixar você me agarrar aqui”. Renato de bate-pronto respondeu: “vamos lá fora”. Clarissa caiu na gargalhada e Renato emendou, mudando de assunto: “você quer um licor?” “Que é que é isso?”. “Drambuie, gosta?” E ficaram lá bebericando e falando bobagem. Clarissa sentiu que não havia clima para uma entrevista de projetos, sonhos e aspirações, e ficou só naquela deliciosa provocação.
Penza, a essa altura, estava começando a passar do ponto, atacando complicados e pouco palatáveis temas de bebop em alta velocidade, à medida que o restaurante esvaziava. Depois de dez minutos tocando uma algaravia que só ele conseguia acompanhar, na primeira pausa o dono do lugar foi lá e convidou-o a tomar um drinque com ele. Penza estava tomado mas não era burro, e aceitou. Clarissa já tinha dispensado Renato e estava lá a postos na mesa. Sua ausência não tinha sido notada. Tomaram licores e café, Penza guardou rapidamente o pouco equipamento que tinha, e foram embora.
Renato foi antes deles, e maldizia sua sorte com aquele amor impossível. Tinha conquistado a mulher da sua vida e não podia tê-la. Aquilo não estava certo. Sua vontade era fazer como os homens pré-históricos dos desenhos animados. Pegá-la pelos cabelos e arrastá-la para sua caverna, mesmo que tivesse que usar a sua clava. Mas isso também não estava certo. Ela tinha que vir de livre e espontânea vontade, e ele tinha certeza que ela tinha essa vontade. Era só uma questão de paciência e perseverança. No estado de excitação em que estava, não podia simplesmente ira para a pousada e dormir. Aproveitando estar oculto no carro filmado de Fernanda, resolveu descobrir onde eles estavam. Parou depois do morro, na primeira entrada do Camburi, apontou o carro para fora na posição de quem do Camburi entra na estrada e esperou, angustiado e incomodado com o que estava fazendo.
Dali a uns quarenta minutos viu o carro do Penza passando vagarosamente pela estrada. Ligou o carro, esperou que ele se distanciasse uns cem metros e saiu atrás dele. O carro de Penza sumiu na primeira curva. Quando Renato a contornou, viu o carro de Penza ainda na sua frente. Dali a um pouco, acenderam-se as luzes de freio do carro de Penza e ele virou à direita. Renato acelerou, e chegou a tempo de ver o carro de Penza sumindo lá na frente, na estradinha de terra. Renato foi devagar atrás dele, seguindo a poeira levantada pelo carro de Penza que batia nos faróis. De repente fez uma curva e viu que Penza freava o carro, e pela duração da freada percebeu que ele estava estacionando. Freiou forte ao mesmo tempo em que desligava os faróis, e estacionou de qualquer jeito. Abriu o porta-luva, que possuía uma luz interna, e se conhecia bem Fernanda encontraria lá uma lanterna. De fato, encontrou lá uma lanterninha chaveiro em perfeito funcionamento. Foi atrás deles, que estavam com uma lanterna só e caminhavam em silêncio e devagar. Renato seguiu-os com a lanterna desligada, tropeçando no piso irregular, no escuro completo da trilha ensombrada pela mata.