quarta-feira, novembro 30, 2005

A sereia do Lampedusa

Finalmente consegui I Racconti do príncipe siciliano e li "A Sereia", sugestão do Dudi. Como na suposição de Pecus, a sereia de Sasá fala grego antigo. E essa sereia vai do bestial, meio-bicho, ao Imortal, divino, sem passar pelo humano. Um jovem professor enlouquecido pela preparação para a cátedra de literatura grega, no quente verão siciliano, logo depois de se instalar num casebre à beira-mar, encontra a sereia:


"Este realizou-se na manhã de cinco de agosto, às seis horas. Acordara pouco antes e logo entrara no barco. Poucos golpes de remo afastaram-me das pedras da praia. Parara debaixo de um rochedo para proteger-me do sol que ia subindo, inchado de fúria, cambiando em ouro e azul a alvura do mar auroral. Declamava quando senti um improviso baixar-se da extremidade do barco, à direita atrás de mim, como se algém o tivesse agarrado para subir. Virei-me e vi-a. O rosto liso de uma moça de dezesseis anos emergia do mar, duas pequenas mãos apertavam a borda do barco. A adolescente sorria. Uma leve dobra afastava os lábios pálidos deixando entrever pequenos dentes aguçados e brancos como os dos cães. Não, porém, um daqueles sorrisos como se vêem entre vocês, sempre abastardados por uma expressão acessória, de benevolência ou ironia, de piedade, crueldade ou qualquer coisa. Esse sorriso exprimia só a si mesmo, isto é uma quase animal alegria de existir, uma quase divina letícia.

Sierva María

"Parece que os cabelos vão ressuscitar muito menos que outras partes do corpo". (Tomás de Aquino, Da integridade dos corpos ressuscitados, questão 80 cap. 5, é a epígrafe escolhida pelo GGMARQUEZ, para o "Do amor e outros demônios", de onde vem o trecho seguinte).

A menina se mostrava tal como era. Dançava com mais graça e donaire que os africanos da nação, cantava com vozes diferentes nas diversas línguas da África, ou com vozes de pássaros e animais, que desconcertavam os próprios negros. Por ordem de Dominga de Adviento, as escravas mais jovens pintavam-lhe a cara com fuligem, penduravam colares de candomblé por cima do escapulário do batismo e ajeitavam-lhe o cabelo, jamais cortado, que atrapalharia o caminhar não fossem as tranças de muitas voltas que lhe faziam todo dia.

Ela começava a florescer numa encruzilhada de forças contrárias. Tinha muito pouco da mãe. Do pai tinha o corpo esquálido, a timidez irremissível, a pele lívida, os olhos de um azul merencório, e o cobre puro da cabeleira radiosa. Seu modo de ser era tão misterioso que parecia uma criatura invisível. Assustada com tão estranha condição, a mãe lhe pendurava uma campainha ao pulso para não perder seu rumo na penumbra da casa.

terça-feira, novembro 29, 2005

Trator



Eu tinha uns vinte e poucos anos, estava no sítio do meu sogro, e ele me pediu que levasse o trator, um velho Massey Ferguson 65, para a cidade que ficava a uns seis ou sete quilômetros, para consertar os freios. Eu já tinha pilotado aquela máquina simpática algumas vezes, com seu acelerador de mão e engrenagens pesadas. Engatado se movimenta tão lentamente quanto se queira e assim o freio não é tão importante. Saí sozinho naquela bela manhã de sol pela estrada de terra prudentemente em segunda marcha, devagar e sempre. Depois de algum tempo naquele ritmo lento, resolvi botar uma terceira, pra não levar a vida inteira pra chegar. E pensei: “Quando chegar no alto dessa subida, troco a marcha”. Pensado e feito. Quando chegou no alto da subida, desengatei a segunda pra por a terceira. E nada da terceira entrar. Tenta, tenta, tenta, arranha, pisa, e nada da marcha engatar. O trator simplesmente pára no alto da subida, e começa a andar para trás.“Fodeu”, pensei. Era uma estrada municipal que tinha algum tráfego. E o trator, com aquela enorme folga na direção, sem amortecedores, sem freio, andando de marcha a ré e ganhando velocidade. Pular não me pareceu uma boa idéia. Tinha que tentar manter o veículo na estrada e torcer para não aparecer nenhum carro, cavalo, charrete, caminhão, ciclista, pedestre na minha desabalada trajetória. A velocidade foi aumentando e eu lá pilotando aquele trem meio desgovernado, pulando pela estrada de terra com aquele barulho de ferros batendo uns nos outros, com o pescoço virado, apavorado, até que a descida acabou, e ele foi parando. Engatei a segunda e fui assim até a cidade, sem ter ninguém pra comentar a aventura.

segunda-feira, novembro 28, 2005

De novo essa bobagem nietzscheana

AMIZADE ESTELAR
279. Amizade estelar - Nós éramos amigos e nos tornámos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado o seu destino e ter um só destino. Mas então a toda poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos e talvez nunca mais nos vejamos de novo ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade.- E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos que ser inimigos na Terra.
Nietzsche - A Gaia Ciência - LIVRO IV

Ainda o abismo

Enquanto caminhava – não é bem o termo, saltava de pedra em pedra como quem anda num costão ou num rio de serra – pela beira do abismo, tomou a decisão. A ser pego, prefiria o mergulho. Teria algum significado a sua morte, pelo menos para os cães, caninos e humanos, que o perseguiam. Destruiria o bem que pudesse interessar os seus senhores. Mostraria que nunca os admitiu como tais. Sempre tentou deixar isso bem claro e agora era hora de esfregar-lhes isso na cara. Satisfeito com a resolução e reconhecida a companhia da morte, acelerou a sua marcha caprina sem sentir fome, sede ou cansaço. Pelo som, tinha a impressão de que estava conseguindo manter a distância dos cachorros, mas eles o seguiam na direção certa. A sereia sumiu da sua mente. Deixou de sentir a ligação telepática que lhe proporcionava um aumento de freqüência na sua vibração vital. Estava só.

domingo, novembro 27, 2005

O negócio é sonhar com mares distantes


O Brasil 1 ao largo de Fernando de Noronha





Ontem no escritório, tomando coragem para começar a trabalhar depois do almoção do sábado, li pela primeira vez o "post" do "blog" da regata de volta ao mundo. Dos sete barcos que saíram de Vigo, na Espanha, dois desistiram em função de avarias. Mudaram de bordo em Fernando de Noronha, e agora se aproximam da Cidade do Cabo, fim dessa primeira perna. A descrição de ontem estava magnífica. Os barcos estavam sendo alcançados por uma frente fria formada por aqui, e que se deslocava em direção à Africa. Os mastros de mais de trinta metros a todo pano, velas-balão com centenas de metros quadrados, infladas por ventos de 26 nós. O equipamento esforçado ao máximo, podendo estourar a qualquer momento, enquanto os barcos, na mesma velocidade do vento, antes de alçarem vôo no vão entre as grandes ondas, tinham o convés lavado pela crista de água verde esmeralda. E a cada pancada tudo chacoalhava com violência.


De ontem pra hoje a situação não se alterou. Vinte e quatro horas no limite do desastre. O líder da prova, o ABN 1 bateu o recorde de milhas/24hs para monocasco, com 583. E aumentou a vantagem para o segundo, o ABN2, que aumentou para o terceiro, o nosso Brasil 1. Não entendo nada do esporte, mas imagino que o skipper Torben Grael aliviou. Estourar a embarcação de milhões de dólares e sair fora da regata no início? Estão previstos oito meses. Não sei nem porque tem tão poucos barcos nessa regata. Será que ela sofreu algum tipo de boicote, ou simplesmente não há interesse?

Disse alguém

Taí uma versão que supera o original, do grande compositor Haroldo Barbosa, e interpretada por João Gilberto em "Brasil", deixa todas as outras no chinelo.


Disse alguém


(Seymour Simons e Gerald Marks, versão de Haroldo Barbosa)

Disse alguém que há bem no coração
Um salão onde o amor descança
Ai de mim que estou tão sozinho
Vivo assim, sem esperança
A implorar alguém que não me quis
E feliz, bem feliz seria
Coração meu, convém descansar
Soluçar mais devagar

Disse alguém que há bem no coração
Um salão, um salão dourado onde o amor sempre dança
Ai de mim que só vivo tão sozinho
Vivo assim, vivo sem ter um terno carinho
A implorar alguém que não me quis
E feliz então eu sei, bem sei que não mais seria
Meu, meu coração sem esperança
E vive a chorar, soluçar
Como quem tem medo de reclamar


All of me


All of me
Why not take all of me
Can't you see
That I'm no good without you
Take my arms
I want to loose them
Take my lips
I'll never use them


Your goodbye
Left me with eyes that cry
And I know that I
Am no good without you
You took the part
That once was my heart
So why not take all of me

sexta-feira, novembro 25, 2005

Bom com as palavras é o Arnaldo Antunes

Ouça essa

Eu sei que a gente ia ser feliz juntinho
Pra todo dia dividir carinho
Tenho certeza de que daria certo
Eu e você, você e eu por perto
Eu só queria ter o nosso cantinho
Meu corpo junto ao seu mais um pouquinho
Tenho certeza de que daria certo
Nós dois sozinhos num lugar deserto
Se você não quiser
Me viro como der
Mas se quiser me diga, por favor
Pois se você quiser
Me viro como for
Para que seja bom como já é
Eu sei que eu ia te fazer feliz
Dos pés até a ponta do nariz
Da beira da orelha ao fim do mundo
Sugando o sangue de cada segundo
Te dou um filho, te componho um hino
O que você quiser saber eu ensino
Te dou amor enquanto eu te amar
Prometo te deixar quando acabar
Se você não quiser
Me viro como der
Mas se quiser me diga, meu amor
Pois se você quiser
Me viro como for
Para que seja bom como já é

quinta-feira, novembro 24, 2005

Decifra-me ou devoro-te


KEEPER: Heh heh. Stop! What is your name?
ARTHUR: It is Arthur, King of the Britons.
KEEPER: What is your quest?
ARTHUR: To seek the Holy Grail.
KEEPER: What is the air-speed velocity of an unladen swallow?
ARTHUR: What do you mean? An African or European swallow?
KEEPER: What? I...I don't know that! Auuuuuuuugh!
BEDEVERE: How do know so much about swallows?
ARTHUR: Well, you have to know these things when you're a king, you know.

quarta-feira, novembro 23, 2005

terça-feira, novembro 22, 2005

Fruto esquisito

Essa música é um dos mais estranhos frutos do rico cancioneiro norte-americano. É entretenimento?

Strange Fruit (tem na rádio uol)

(de Lewis Allen, cantada por Billie Holiday)

Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.

Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter cry.

segunda-feira, novembro 21, 2005

Fila

Seguiu andando pela beira do abismo pescoçando uma passagem na parede de pedra que pudesse descer sem muito perigo. Depois de meia hora andando começou a ouvir os graves latidos dos filas se comunicando uns com os outros, com o característico crescendo. Apesar do terror e do desespero que sentiu, não deixou de pensar que cachorro é um bicho burro, que caça fazendo barulho. Ainda estavam muito longe, mas a situação não era nada boa, pois estava encurralado entre o despenhadeiro e os cães. Acelerou o passo e redobrou a atenção na procura de um caminho descendente, arriscando-se mais pela beirada. Estava cansado, dolorido, escoriado, mal alimentado, sedento, e o latido roufenho dos mastins lhe pareceu a própria voz do coisa ruim nos seus calcanhares. Pensou no que passaria se fosse capturado de novo, e a idéia de jogar-se no abismo, se não tivesse alternativa, passou-lhe pela cabeça. Aqueles bichos destruíam com facilidade grandes onças pintadas, embora fossem treinados para não danificar os humanos.

sábado, novembro 19, 2005

Velho Chico

Essa música do Chico é tão boa que quando eu conheci achei que era uma das parcerias com o Jobim:

Eu te vejo sumir por aí
Te avisei que a cidade era um vão
Dá tua mão, olha prá mim
Não faz assim, não vá lá, não
Os letreiros a te colorir
Embaraçam a minha visão
Eu te vi suspirar de aflição
E sair da sessão frouxa de rir
Já te vejo brincando gostando de ser
Tua sombra se multiplicar
Nos teus olhos também posso ver
As vitrines te vendo passar
Na galeria, cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo o salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão


E essa que era um dos sambas do Chico dos quais eu mais gostava não é dele. É do Geraldo Pereira e Nelson Trigueiro, das antigas antigas:

Você só dança com ele
E diz que é sem compromisso
é bom acabar com isso
Não sou nenhum Pai João
Quem trouxe você fui eu
Não faça papel de louca
Pra não haver bate-boca
Dentro do salão
Quando toca o samba
Eu lhe tiro pra dançar
Você me diz: Não
Eu agora tenho par
E sai dançando com ele
Alegre e feliz
Quando para o samba
Agradece e pede bis

quinta-feira, novembro 17, 2005

Rave

Há uns três ou quatro anos fui convidado para ir a uma rave numa praia em Santa Catarina. Ia ser aproveitada uma festa que se repetia ali com alguma freqüência para a surfistada e playboys para o lançamento de um instituto de beleza, um sistema de tratamento de pele ou algo assim. Haveria uma ala “vip” separada para os convidados. Chegamos na noite anterior, fomos hospedados num hotel, e no dia seguinte fomos ao local onde ia ser a festa, que sempre era feita na lua cheia. Era um belíssimo bar de praia, muito bem instalado, uma construção rústica de madeira já acinzentada, com restaurante, bar e lounge, que estava sendo ampliado com grandes tendas de lycra. Ficava numa parte meio deserta da praia só ocupada pelos surfistas. Estava um lindo dia de sol, ondas pequenas de qualidade, um verdadeiro paraíso. A organização da festa era feita por dois surfistas, um dos quais era modelo e participou do comercial do tal lançamento, feito ali na praia dias antes, que ia ser exibido na festa. Por volta das duas da tarde, chegou a notícia de que o ministério público estadual tinha obtido uma liminar para impedir a festa por risco de dano ao meio ambiente. Advogados acionados, a ordem foi cassada. Horas depois, chega outra ordem, obtida pelo ministério público federal, para os mesmos fins.

A festa foi mudada para a pousada da mãe do organizador que não era o modelo, que ficava na parte mais ocupada da praia, a algumas quadras do mar. Era um lugar luxuosíssimo, fazendo um tipo “Hamptons”, em madeira branca, e onde estavam hospedados os donos da festa. Tinha um grande jardim, uma vista distante do mar, mas não fazia muito sentido todo aquele dinheiro empatado naquele fundo de praia. Quando chegamos à noite, percebemos que apesar de toda a bebida oferecida pelos patrocinadores, ninguém bebia nada e todos estava suadíssimos com garrafinhas de água na mão. Todos tinham tomado ecstazy. A ala “vip” ficou com as instalações da pousada, deck, bar, restaurante, piscina, e uma escadaria levava ao jardim, onde a festa e seus banheiros químicos estavam. Dos taludes entre o deck e a pista volta e meia despencava um rolando, que além de ecstazy tinha cheirado lança-perfume. Lá embaixo o pessoal dançando tinha algo a ver com a noite dos mortos-vivos, e era docilmente manipulado pelos DJs. Foi a primeira vez que vi um DJ desses que criam sua própria música, trabalhando. Não entendi bem como funciona, mas me pareceu que ele tem bastante controle da dinâmica, e vai acrescentando ou tirando camadas de música como quer. Tira tudo, deixa só uma frasezinha se repetindo, a pista cai, daí vai acrescentando, até que despeja o máximo e os mortos-vivos começam a pular e gritar. É muito bacana. Daí a polícia chamada pelos vizinhos começou a fazer parte da festa. Vinha a música baixava. Ia embora, voltava ao máximo, e os zumbis junto. Várias e várias vezes, naquela noite sem fim e sem cansaço, com uma linda lua cheia. De manhã nos perdemos das vans dos convidados e voltamos a pé para o nosso hotel, na praia vizinha.

Madame Bovary

Acabei de ler “Madame Bovary”. Flaubert cínico e sarcástico. O Bovary é um lorpa caipira ridículo e burro desde o colégio. É arrastado pela mãe para a carreira de médico aos trambolhões e consegue o grau e uma posição no interior mendigando indicações. Sua mãe casa-o com uma viúva velha e feia supostamente rica que para a sorte do rapaz morre quatorze meses depois, deixando-o um pouco melhor que antes. Nesse meio tempo ele havia curado uma fratura simples de um fazendeiro e torna-se benquisto na família. Se engraça com a filha do sujeito, uma linda mocinha recém chegada de um colégio de freiras onde recebeu refinada educação, convivendo com velhas nobres decaídas na revolução. A influência da música e literatura da monarquia moldam o seu caráter romântico e sonhador, e está sempre a perseguir transportes e elevações de espírito em idílios extravagantes. Enterrada no campo ilude-se com o médico, sentindo falso amor que desvanece logo após o casamento. Vive de ler romances e vai se deprimindo com sua situação sem saída. Tem um momento de deslumbramento quando o médico é convidado a um baile num palácio de um poderoso senhor. Daí em diante só faz definhar, até que o Sr. Bovary decide mudar-se para uma outra pequena cidade com ares melhores, por sua saúde. Ao chegar, Madame Bovary logo conhece um jovem escrevente de cartório, com quem tem uma imediata identificação de gostos por romances e música, e nasce um amor platônico e correspondido, mas jamais declarado. O rapaz é tímido. Emma Bovary está grávida, e nasce Bertha. Ele sente que o seu amor é impossível, sua amada é virtuosa, e parte para Paris para completar seu curso de direito. Emma, já com a virtude esgarçada, cai pelo primeiro cafajeste que aparece. É uma cena memorável de um “comício” no interior, mais uma exposição agropecuária, e a ação acontece em vários planos: os animais ao fundo, e os discursos caipiras se entremeando com a cantada de Rudolf. Puro cinema. Impelido pelo farmacêutico, o médico tenta um salto na carreira arriscando uma nova operação num cavalariço aleijado que se movimenta muito bem, soltando seus tendões e enfiando sua perna num grotesco aparelho que constrói. Resultado: gangrena. A amputação na altura da coxa é feita por um médico de uma cidade vizinha. A humilhação do Sr. Bovary é total. É um dos trechos mais aflitivos e incômodos que eu já li. O desprezo de Emma pelo marido chega ao máximo e ela decide fugir com o amante. O cafajeste dá pra trás. Emma tem uma fase beata e depressiva. Para animá-la, o marido resolve levá-la ao teatro em Rouen, onde reencontra Léon, o escrevente, e aí a coisa vai. Emma inventa aulas de piano em Rouen, e vai toda semana se encontrar com o novo amante. Com as roupas, presentes e despesas de viagem e hotel começa a aumentar suas dívidas com um agiota, e acaba levando a família à miséria. Suicida-se com arsênico roubado do farmacêutico.

segunda-feira, novembro 14, 2005

O Abismo


Acordou dolorido do esforço e do lugar pouco confortável onde dormiu. Tentou orientar-se pelo sol da manhã, filtrado pelas grandes árvores, e tomou o que entendeu ser o rumo do litoral, em direção ao nordeste, para evitar reencontrar o rio, provavelmente ao sul de onde estava. Encontrou uma mina de água numa grota onde saciou a sua sede, e continuo andando, subindo a pequena serra à sua frente, procurando o que comer. Encontrou algumas frutas, poucas e em más condições, suficientes apenas para continuar andando. Conforme foi subindo a serra, a vegetação foi rareando, a floresta se transformou numa capoeira, e a capoeira se acabou num capim ralo sobre um terreno pedregoso. Chegando ao topo, percebeu que a orla estava ainda longe. Via no horizonte o mar, que devia estar a uns cinqüenta quilômetros de onde estava, ou mais ou menos oito léguas. Começou a andar em direção ao mar, e logo estacou, com um susto. Entre ele e a o topo inferior seguinte havia um abrupto corte vertical, um abismo, um precipício, um “canyon”, do qual não conseguia nem ver o fundo. Apenas a parte de cima da parede de pedra do outro lado, e o vazio à sua frente. “Que maçada!” pensou. Primeiro, para ver o fundo do problema, aproximou-se perigosamente da borda, para poder olhar para baixo. Uma pedra solta seria fatal. Pensou em deitar na borda, mas apesar de não ter ninguém olhando achou que seria feio. Procurou abstrair os tremores do cansaço e a falta de alimento, e expirando lentamente para manter a sua base esticou o pescoço e olhou para o fundo. “Caráleo!” Bem uns quinhentos metros de queda livre. Olhou em volta. Percebeu que, não fosse o abismo, seu caminho seria, por baixo, uns quinze quilômetros mais curto, pois o fundo do canyon apontava para o mar. A noite era aquela. A lua estaria absolutamente inflada e a sereia estaria lá. Podia sentir isso. E saiu andando pela beirada do precipício, olhando para baixo, procurando uma brecha para descer.

terça-feira, novembro 08, 2005

Surfista prateado, heptacampeão


Kelly Slater (post premonitório de maio)

Onda e vontade – Com que fissura essa onda chega, como se tivesse o que matar! Com que pressa assustadora se insere pelas tocas dos corais! É como se quisesse chegar antes de alguém; como se ali escondesse coisa de valor, muito valor. – E agora ela recua, um tanto mais devagar, ainda branca de loucura – estará desiludida? Terá encontrado o que procurava? Puta da vida? – Mas logo vem outra onda, mais louca e brava que a primeira, e também sua alma parece cheia de segredos e da fome de tesouros. Assim vivem as ondas – assim vivemos nós, animais com vontade! – e mais não digo. – O quê? Vocês desconfiam de mim? Ficam putas comigo, monstras lindas? Têm medo que eu traia o seu segredo? Pois bem, fodam-se, levantem os seus perigosos corpos verdes o mais alto que puderem, um muro entre mim e o sol – como agora! Realmente, nada mais resta do mundo senão o fim-de-tarde verde e os raios verdes. Façam como quiserem, morras gigantes, gritem de prazer e de maldade – ou novamente mergulhem suas esmeraldas nas profundezas, espalhando suas rendas brancas sem fim e rajadas de espuma – pra mim tá tudo certo, pois tudo lhes cai bem e por tudo agradeço: como eu poderia lhes trair? – Ouçam bem! Conheço vocês e o seu segredo, conheço a sua raça! Vocês e eu somos da mesma raça! – Vocês e eu, temos o mesmo segredo! (Nietzsche purinho)

domingo, novembro 06, 2005

O Operário


Vi ontem em dvd “O operário”, ou “El Maquinista”, ou “The Machinist”, uma produção internacional Espanha/Inglaterra/Estados Unidos, que os créditos dão a entender ser mais espanhola. Está na prateleira de “suspense” da locadora mas transcende muito o gênero. Uma balada – no sentido tradicional da canção ou poema que conta uma estória – sobre a degeneração mental de um torneiro mecânico há um ano sem dormir, que vai perdendo peso sem parar. Sim, membros são perdidos entre as engrenagens. O diretor americano, desses formados em escolas de cinema, devia ser um ótimo aluno e domina totalmente a linguagem do cinemão. Refinadíssimo. A trilha sonora é um primor. Claramente inspirada nas trilhas de suspense antigas, com pinceladas atonais e até aquele ululante sintetizador primitivo que se toca sem encostar as mãos, e faz um som parecido com o serrote-violino.

sexta-feira, novembro 04, 2005

Quebra-cabeças

Mais uma do Cali. Ouça.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Plano a, b, c...

Todos sabemos que três pontos fazem um plano e por isso o tripé é estável.
Plano a:
1. Cantada
2. Bolero
3.
Plano b:
1. Romance
2. Segredo
3.
Plano c:
1. Luta
2. Estômago
3.
Plano d:
1. Silêncio
2. Distância
3.

terça-feira, novembro 01, 2005

A simetria das ligações


Não vou nem tentar fazer uma metáfora química para as ligações humanas, como a falsa ciência de Goethe nas "Afinidades eletivas", falsa como a sua rala e poética teoria das cores, destruída por ninguém menos que Isaac Newton, a quem bem se aplica a expressão "o pai da matéria". Mas o jogo da atenção entre os humanos - e não estou nem falando em sexo - remete a equilíbrio . Algo assim como frescobol, o falso jogo, na verdade uma dança de ritmo e cooperação.

Cris e Robert


Bierrenbach


Crumb