terça-feira, janeiro 31, 2006

Via oral

Acabei de ler o Evangelho segundo Jesus Cristo, do Saramago, e surgiu-me uma dúvida. Jesus era analfabeto? Que ele tinha conhecimento das escrituras todos sabemos, pelo debate com os doutores do templo e as referências aos profetas e os fundadores de Israel. Saramago menciona – não sei se com fundamento nos evangelhos oficiais – um período de formação na sinagoga de Nazaré, no mínimo provável, mas a educação pode ser sido feita via oral, como os gregos antigos e seus longos poemas, a rima como método mnemônico. A memorização do livro sagrado possivelmente era um valor, indicava o bom cidadão religioso. De que adianta um livro embaixo do braço? Segundo o Saramago, davam graças a Deus o tempo todo, de mil maneiras diferentes. Ao acordar, ao urinar, ao comer, ao saudar, ao sair, ao chegar, ao trabalhar, ao sol, à chuva, tudo. E estavam sempre procurando na memória uma referência bíblica para ilustrar o momento, e fundamentar suas decisões e ações. Um amigo, que algumas vezes comentou este blog com o vitoriano apelido Fitzwilliam, ponderou que era justamente isso que Jesus fazia. Não exatamente pregava, vivia de acordo com suas interpretações livres e modernas da lei, e comentava o mundo, em voz alta, enquanto andava por aí com a sua turma, e a bela Madalena. Sua vida como lição civilizadora. Precisava terminar tão mal?

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Nature boy

Sábado à noite fui ver “Vinícius de Morais”. É um documentário muito bom, ainda que seja questionável a declamação dos atores. Mas a poesia escrita é uma parte essencial da obra e de algum jeito precisaria ser mostrada. O final é um depoimento da Betânia, que diz ter aprendido uma importante lição com o Vinícius, que sempre cantava o “Nature boy”, especialmente os últimos versos, e o filme termina com ele cantando essa canção. Ouvi dizer que ela apareceu no lado b do de um sucesso do Nat King Cole. Está muito viva, aparece no filme “Moulin Rouge”, e foi gravada pelo Caetano naquele último disco, “A Foreign Sound”. É uma linda melodia ao estilo Yiddish.

Nature boy

(Eden Ahbez)

There was a boy
A very strange enchanted boy
They say he wandered very far, very far
Over land and sea
A little shy and sad of eye
But very wise was he
And then one day
A magic day he passed my way
And while we spoke of many things
Fools and kings
This he said to me
"The greatest thing you'll ever learn
Is just to love and be loved in return".


Leia aqui a curiosíssima história do autor.

O Vinícius foi casado nove vezes, e se apaixonava de estalo, como a iluminação de Vieira. Quase voluntário, como os amores inventados do Cazuza.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Don't call me junior


Semana de 22, por Mário de Andrade. Autor de Macunaíma conta a origem da Semana e o contexto em que surgiu, neste artigo de 1942.

São Paulo - Faz vinte anos, este mês de fevereiro, que se realizou no Teatro Municipal, a Semana de Arte Moderna. É todo um passado longínquo de que sorrio sem medo, mas que me assombra um pouco também. Foi gostoso, ficou bonito, mas como tive coragem para participar daquilo! É certo que com minhas experiências artísticas muito venho escandalizando essa minoria que é a intelectualidade do meu país, mas, na realidade, feitas em artigos e livros, minhas experiências como que não se executam in anima nobile. Não estou de corpo presente e isso desencaminha o choque da estupidez.

Mas como tive coragem para dizer versos ante uma assuada tão singular, que eu não escutava do palco o que Paulo Prado me gritava da primeira fila das poltronas?... Como pude fazer uma hórrida conferência na escadaria do teatro, cercado de anônimos que me caçoavam e ofendiam a valer?...

O meu mérito de participante é mérito alheio: fui encorajado, fui enceguecido pelo entusiasmo dos outros. Apesar da confiança, absolutamente firme que tinha na estética renovadora, eu não teria forças para arrostar aquela tempestade de achincalhes. E se agüentei o tranco foi porque estava delirando. O entusiasmo dos outros me embebedava, não o meu. Por mim teria cedido. Digo que teria cedido, mas apenas nessa parte espetacular do movimento modernista. Com ou sem a Semana, minha vida intelectual seria o que tem sido.

A Semana marca uma data, isso é inegável. É uma data que envaidece recordar.

Mas o certo é que a preconciência primeiro, e em seguida a convicção de uma arte nova, de um espírito novo, desde pelo menos seis anos viera se definindo no... sentimento de um grupinho de intelectuais, aqui. Do primeiro, foi um fenômeno estritamente sentimental, uma intuição divinatória, um... estado de poesia. Com efeito: educados na plástica "histórica", sabendo quando muito da existência dos primeiros impressionistas, ignorando Cézanne, o que nos levou a aderir incondicionalmente à exposição de Anita Malfatti, em plena guerra européia, mostrando quadros expressionistas e cubistas? Parece absurdo, mas aqueles quadros foram para mim a revelação. E delirávamos diante do Homem Amarelo, a Estudanta Russa, a Mulher dos Cabelos Verdes. E ao Homem Amarelo eu dedicava um soneto parnasianíssimo... Éramos assim.

Pouco depois, Menotti del Picchia e Osvaldo de Andrade, descobriram Brecheret no seu exílio do Palácio das Indústrias. E fazíamos verdadeiras "rêveries" simbolistizantes em frente da simbólica exasperada e das estilizações decorativas do "gênio". Porque Brecheret era para nós no mínimo um gênio. Este era o mínimo com que podíamos nos contentar, tais os entusiasmos a que ele nos sacudia. E Brecheret ia ser em breve o gatilho que faria Paulicéia Desvairada estourar.

Eu passara esse ano de 1920 sem fazer mais poesia. Tinha cadernos e cadernos de cousas parnasianas e algumas simbolistas, mas tudo acabara por me desagradar. Na minha cultura desarvorada, já conhecia até Marinetti, mas repudiava a maioria dos princípios futuristas, como já escrevera no Jornal dos Debates, de Pinheiro da Cunha. Só então é que descobri Verhaeren, desculpem, e foi o deslumbramento. Concebi fazer um livro de poesias modernas em verso livre, sobre a minha cidade. Tentei, não veio nada que me interessasse. Tentei mais e nada. Os meses passavam numa angústia, numa insuficiência feroz. Será que a poesia tinha se acabado em mim?... E eu me acordava insofrido.

A isso se ajuntavam dificuldades morais e vitais de toda espécie, foi ano de sofrimento muito. Já ganhava para viver folgado, mas o ganho fugia em livros e eu me estrepava em arranjos financeiros temíveis. Estava criando fama de professor bom e fazia esforços para que meus alunos de Conservatório passassem com notas altas. Em casa o clima era torvo. Se mãe e irmãos não me amolavam com as minhas "loucuras", o resto da família me retalhava sem piedade. Tinha discussões brutas em que os desaforos mútuos não raro chegavam àquele ponto de arrebentação que... por que será que a arte os provoca!... A briga era brava e, se não me abatia nada, me deixava em ódio, mesmo ódio.

Foi quando Brecheret me concedeu passar em bronze um gesto dele que eu adorava, uma cabeça de Cristo. Mas "com que roupa"? eu devia os olhos da cara! Não hesitei, fiz mais conchavos financeiros e afinal pude desembrulhar em casa a minha Cabeça de Cristo. A notícia correu num átimo, e a parentada que morava pegado, invadiu a casa para ver. E brigar. Aquilo até era pecado mortal, onde se viu Cristo de trancinha! era feio, medonho!

Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era matar. Jantei por dentro, num estado inimaginável de estraçalho. Depois subi para o quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo, nem sei. Sei que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu Largo do Paissandu. Ruídos, luzes, falas abertas subindo dos choferes de aluguel. Estava aparentemente calmo. Não sei o que me deu...

Cheguei na secretaria, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, Paulicéia Desvairada. O estouro chegara afinal, depois de quase ano de angústias interrogativas. Entre exames, desgostos, dívidas, brigas, em poucos dias estava jogado no papel um discurso bárbaro, duas vezes maior talvez do que isso que o trabalho de arte fez um livro.

Mais tarde, eu sistematizaria este processo de separação nítida entre o estado de poesia e o estado de arte, para a composição dos meus poemas "dirigidos", as lendas, por exemplo, o abrasileiramento lingüístico de combate. Escolhido o tema, por meio das excitações psicológicas sabidas, preparar o advento do estado de poesia. Se este chega (quantas vezes não chegou...) escrever sem coação de espécie alguma, tudo o que me chega até a mão - a "sinceridade" do indivíduo. E só em seguida, na calma, o trabalho penoso e lento da arte - a "sinceridade" da obra de arte, coletiva e funcional, mil vezes mais importante que eu...

Quem teve a idéia da Semana? Por mim não sei quem foi, só posso garantir que não fui eu. O mais importante era decidir e poder realizar a idéia. E o fautor: verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado. E só mesmo uma figura como ele e uma cidade como São Paulo, poderiam fazer o movimento modernista e objetivá-lo na Semana.

Houve tempo em que alguns escritores do Rio, cuidaram de transplantar para a Capital as raízes do movimento, estribados nas manifestações simbolistas e post-simbolistas, que existiam por lá. Existiam, é inegável. Aqui, esse ambiente só fermentava em Guilherme de Almeida, e num Di Cavalcanti pastelista, "menestrel dos tons velados", como o apelidei numa dedicatória esdrúxula. Mas eu creio ser um engano esse evolucionismo a todo transe, que lembra nomes de Nestor Vítor ou Adelino Magalhães, como elos ou precursores.

Seria mais lógico evocar Manuel Bandeira com o Carnaval.

Não. O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono consciente de princípios e de técnicas, foi uma revolta contra a intelligensia nacional. É mais possível imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra. E as modas que revestiram este espírito foram diretamente importadas da Europa. Quanto a dizer que éramos antinacionalistas, é apenas bobagem ridícula. É esquecer todo o movimento regionalista aberto anteriormente pela Revista do Brasil primeira fase, todo o movimento editorial de Monteiro Lobato, a arquitetura e até urbanismo (Dubugras) neo-colonial aqui nascidos. Isso sim eram raízes engrossadas desde o início da guerra. Mas o espírito e as modas foram diretamente importados da Europa.

Ora São Paulo estava muito mais "ao par" que o Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o modernismo só podia ser importado por São Paulo e arrebentar aqui. Havia uma diferença profunda, já agora pouco sensível, entre Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacinal, como norma de vida exterior. Está claro: capital do país, porto de mar, o Rio tem um internacionalismo ingênito. São Paulo era muito mais "moderna" porém, fruto necessário da economia do café e do industrialismo conseqüente.

Ingenitamente provinciana, conservando até agora um espírito provinciano servil, bem denunciado na política. São Paulo ao mesmo tempo estava, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato, se menos social, mais espiritual (não falo "cultural") e técnico com a atualidade do mundo.

É mesmo de assombrar como o Rio mantém, dentro da sua malícia de cidade internacional, um ruralismo, um caráter tradicional muito maiores que São Paulo. O Rio é dessas cidades em que não só permanece indissolúvel o "exotismo" nacional (o que é prova de vitalidade do seu caráter), mas a interpenetração entre o rural e o urbano. Cousa impossível de achar em São Paulo, como funcionalidade permanente. Como Belém, o Recife, a Cidade do Salvador, apesar do seu urbanismo rescendante, o Rio ainda é uma cidade... folclórica. Em São Paulo o exotismo folclórico não freqüenta a Rua Quinze.

Vive em núcleos mortos, não funcionais, abastardados na separação, Santa Isabel. Carapicuiba. Ora no Rio malicioso, uma exposição com a de Anita Malfatti, podia ter reações publicitárias, mas ninguém se deixava levar. Na São Paulo sem malícia, criou uma religião. Com seus Neros também... O artigo "contra" de Monteiro Lobato, embora fosse apenas uma baladilha zangadinha, sacudiu uma população, modificou uma vida.

Junto disso, o movimento renovador era nitidamente aristocrático. Pelo seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela gratuidade antipopular, era uma aristocracia do espírito. Era natural que a alta e a pequena burguesia o temessem. Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma das figuras principais da nossa aristocracia tradicional. E foi por tudo isto que ele pôde medir bem o que havia de aventureiro, de exercício do perigo no movimento, e arriscar a sua responsabilidade intelectual e tradicional na aventura.

Uma cousa dessas seria impossível no Rio, onde não existe aristocracia tradicional, mas apenas sita burguesia riquíssima. E esta não podia encampar um movimento que lhe destruía o espírito conservador e conformista. A burguesia nunca soube perder e isso é que a perde. E aqui foi isso mesmo. Se Paulo Prado, com a sua autoridade intelectual e tradicional, abriu a lista das contribuições e arrastou atrás de si os seus pares e... alguns outros que a sua figura dominava, a burguesia protestou e vaiou. Tanto a burguesia de classe como a do espírito.

É delicioso lembrar que Amadeu Amaral, um dos espíritos mais aristocráticos que São Paulo já produziu, embora retraído pelo muito que o maltratavam alguns de nós, nos via compreensivamente. A ele eu devo o Estado de S. Paulo não ter estraçalhado Paulicéia. Saiu-se de suas ocupações e escreveu ele mesmo a nota sobre o livro, severa mas reconhecendo o direito da experiência.

Em compensação a burguesia semiculta (a aristocracia era inculta: e já irresponsável na sua decadência de então), essa espécie de intelectualidade réptil que abastece as cidades e acaba onde as cidades acabam, com que violência de fulgir e se defender, arremeteu contra nós! Hoje, é irônico evocar os nomes que brilharam lunarmente, iluminados pelo brilho próprio de um estado de espírito coletivo. Tanto os contra como os favoráveis. Destes, os que não desapareceram na poeira de outros caminhos, tornaram-se figuras visíveis da inteligência nacional. Dos contrários, os que tinham valor acabaram aceitando, e muitos aderindo ao movimento renovador. Os outros continuaram pura inteligência de abastecimento urbano. O nome deles acaba onde a cidade acaba.


Ahá! Esse, em negrito, é o pai do intelecutal desesperado. Outro desesperado. Segurou melhor a onda, manteve a calma, e ganhou um fardão.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Fatos que rimam

Curiosamente, o tradutor de “Os caduveo”, leitura de férias que mencionei dois posts atrás, é o tal amigo em talas do Graciliano, descrito na crônica abaixo. A “pensão” a que se refere é obviamente a prisão política do Getúlio, experiência minuciosamente descrita em “Memórias do Cárcere”. Lá, dizia que o tal Júnior o aborrecia para que lesse os seus escritos. Não sei se o trabalho de tradução da obra de Boggiani foi fruto do bizarro anúncio descrito na crônica abaixo, pois não conheço a cronologia dos fatos. Na edição em questão, há uma única nota do tradutor, relacionando um personagem de uma festa caduveo, que lembra a morte vestida de lençol e capuz branco, fechado com um pedaço de pano preto para esconder o rosto, com a “côca” - imagino que seja a Cuca – do folclore paulista, mencionada por seu pai em uma obra chamada “Tradições Populares”. Fatos que rimam, como disse Paul Auster em “A invenção da solidão”.

Um amigo em talas

(Graciliano Ramos)

O meu antigo companheiro de pensão Amadeu Amaral Júnior, um homem louro e fornido, tinha costumes singulares que espantavam os outros hóspedes.

Para falar com propriedade, aquilo não era exatamente pensão, mas isto não tem importância: com um pouco de esforço podíamos admitir que estávamos numa pensão de gente bem comportada. Bocejávamos em demasia, contávamos as pessoas que subiam ou desciam um morro próximo, dormíamos cedo e recebíamos com regularidade a visita do gerente do estabelecimento, o major Nunes, ótima criatura que deixou o cargo por lhe faltar o espírito do negócio.

Amadeu Amaral Júnior vestia-se com sobriedade: usava uma cueca preta e calçava medonhos tamancos barulhentos. Fora isso, o que tinha em cima do corpo era a barba, economicamente desenvolvida, uma barba enorme. Parecia um troglodita. Alimentava-se mal, espichava-se na cama, roncava o dia inteiro e passava as noites acordado, passeando, agitando o soalho, o que provocava a indignação dos outros pensionistas. Quando se cansava, sentava-se a uma grande mesa ao fundo da sala e escrevia o resto da noite. Leu um tratado de psicologia e trocou-o em miúdo, isto é, reduziu-o a artigos, uns quarenta ou cinqüenta, que projetou meter nas revistas e nos jornais e com o produto vestir-se, habitar uma casa diferente daquela e pagar ao barbeiro.

Mudamo-nos, separamo-nos, perdemo-nos de vista. Creio que os artigos de psicologia não foram publicados, pois há tempo li este anúncio num semanário: "Intelectual desempregado. Amadeu Amaral Júnior, em estado de desemprego, aceita esmolas, donativos, roupa velha, pão dormido. Também aceita trabalho”.

O anúncio não produziu nenhum efeito, é o que meses depois, nos declara Amadeu Amaral Júnior: "Minha situação continua preta. Reitero o apelo às almas bem formadas: dêem de comer a quem tem fome, uma fome atávica, milenária. Dêem-me trabalho." E, catalogando as suas habilidades: "Escrevo poesias, crônicas, contos (policiais, psicológicos, de aventura, de terror, de mistério), novelas, discursos, conferências. Sei inglês, francês, italiano, espanhol e um bocado de alemão. Dêem-me trabalho pelo amor de Deus ou do diabo."

De literato brasileiro não conheço página mais sincera e razoável que essa. Ao ler o pedido de roupa velha e pão duro, fiquei meio escandalizado, mas refletindo, confessei publicamente que o meu velho companheiro procedia com acerto. E agora, completamente solidário com ele, admiro a exposição que nos faz das suas aptidões e lamento que não as utilizem.

É evidente que Amadeu Amaral Júnior conhece bem o nosso mercado literário e apregoa as mercadorias mais próprias para o consumo: discursos, contos policiais, de aventura, de terror e de mistério. Julgo que vive sem ocupação por não haver falado antes nisso.

O meio cento de artigos redigidos naquelas noites de insônia encalhou certamente na redação, preterido pelas novelas de arrepiar cabelos. Indignado, Amadeu Amaral Júnior oferece de novo os seus préstimos ao editor, afirmando que também sabe compor histórias policiais, de aventura, de terror e de mistério, que arrancam lágrimas e se vendem regularmente.

A maneira como pede trabalho, pelo amor de Deus ou do diabo, revela que o escritor está impaciente e talvez não escrupulize em pôr a sua pena a serviço de qualquer dessas duas entidades, o que não admira, pois Amadeu é jornalista.

Muita gente se espanta com o procedimento desse amigo. Não sei por quê. Os fabricantes anunciam os seus produtos e os sujeitos desempregados costumam, desde que há jornais, dizer neles para que servem. Por que apenas o articulista, precisamente o indivíduo capaz de arrumar umas linhas com decência, deve calar-se e roer chifres?

Eu por mim acho que Amadeu Amaral Júnior andou muito bem. Todos os jornalistas necessitados deviam seguir o exemplo dele. O anúncio, pois não. E, em duros casos, a propaganda oral, numa esquina, aos gritos. Exatamente como quem vende pomada para calos.

("Linhas tortas", Editora Record - Rio de Janeiro, 1983, pág. 125)

domingo, janeiro 22, 2006

Férias na praia

Parecia um circo nômade. Minhas filhas estavam espalhadas pelas praias, e depois de entulharmos o carro com um imenso super, saímos na manhã do dia 9, uma segunda ensolarada, e chegamos ao meio-dia. A casa, antigona, confortável e funcional, a poucos passos da praia, na sombra de velhos chapéus-de-sol. Com o pacote da locação a preço de custo – o senhorio é irmão do amigo com quem dividimos a casa e não tinha aparecido nenhum negócio melhor – vinha um casal caseiro, que segurava todas, barraca, cadeiras na praia, aperitivos, comida, tudo. À noitinha chegou o outro casal, vindo do interior, o que foi comemorado com um banho de mar noturno, com direito a plâncton fosforescente e lua quase cheia. Depois, adolescentes de 12 a 25 anos vinham e iam, o que garantia boa animação ao circo, e viramos o centro de nossas próprias atenções.

Oito dias de flat total, sol saárico, e a minha rotina era nadar um pouco mais de uma hora de manhã, leituras, drinques e conversas à sombra da castanheira encostada ao muro de pedra da praia – melhor que a sombra da barraca – almoço, cochilo, e uma longa corrida, em hora calculada para apreciar o pôr-do-sol em falso mar, e acabar com o nascer da lua, e mais um banho de mar com plâncton fosforescente.

Pusemos para funcionar um antigo barco de alumínio de outro irmão do meu amigo, parado há cinco anos, e fizemos um piquenique em ilha próxima, num dia com toda a troupe adolescente do circo (duas viagens). Em outro dia, com o dono do barco e seu filho, mais eu e meu amigo, fizemos um maravilhoso mergulho num parcel, uma pedra submersa perdida de localização mais ou menos secreta. O rapaz estava iluminado e pegou quatro grandes garoupas. Seu pai, um mergulhador experiente e de grande passado, pegou dois peixes pequenos. Meu amigo pegou só um grande siri. Eu, que não sou do ramo, fiquei muito feliz em aos poucos, e sem pressa, chegar até o parcel e vislumbrar as suas tocas, para o que era necessário descer pelo menos uns cinco ou seis metros, saindo da água quente para a gelada, depois de uma incômoda adaptação com um dor na testa de sinusite. No fim estava bem à vontade e a coisa estava me dando muito prazer. O tempo da descida, a água gelada e a vida ao redor da pedra, e a subida em direção ao teto de céu e a lâmina da superfície da água. Lindo. A euforia do sucesso raro da pescaria tornaram o evento especial e muito comemorado, valendo a pena ter participado.

Terça-feira última apareceram uma ondas mínimas para o surfe digno, que substituiu a natação, o que se repetiu na quarta. Quinta-feira, ao acordar, pelo barulho do mar percebi que alguma coisa havia mudado. De fato, encostou uma ondução de respeito, e o surfe de verdade começou. Sedento da coisa, e em forma suficiente depois de tanto exercício, me joguei numa intensa sessão de três horas maravilhosas. Saí antes da estafa total, para peitar outra sessão no fim-da-tarde, quando o mar devia estar liso pela falta de vento, e a formação próxima da perfeição. Ao sair do mar, percebi que havia algo de errado. Uma seqüela em uma costela quebrada anos atrás deu o ar de sua graça, e a incômoda dor voltou com tudo. Mal podia me mover. Fazer o que? Não podia reclamar. A sorte de ondas de verdade entrarem e o ótimo surfe já tinham acontecido. De fato, no fim da tarde o mar ficou espetacular, a formação excelente, praticamente um surfista pra cada lado em cada onda, no pico na frente de casa, com ótimo tamanho. No dia seguinte, o mar caiu bastante, mais ainda havia um surfe razoável. Perdi, no fim, quatro boas sessões, pois hoje de manhã ainda havia alguma coisa.

Foram treze dias de paz e sol, água quente, e busca incessante da sereia. De dia, de noite, antes e depois da arrebentação, no meio do mar, na ilha, no parcel submerso, gritando telepaticamente para o grande espelho da lua, boiando olhando as estrelas e examinando o fundo do mar nas longas nadadas. E nada.

domingo, janeiro 08, 2006

Kadiweu

Estou saindo de férias. Se tudo der certo, fico quinze dias na praia. Mais certo ainda, se entrarem umas ondas, nessa época ingrata. E ainda mais certo ainda, se o tempo estiver bom. Deu um trabalhão pra preparar tudo. Um imenso supermercado, mil e uma providências. O plano é simples: nadar, correr, surfar, comer, beber, jogar conversa fora, e ler. A companhia é ótima. Vamos dividir uma casa com outra família super legal. E certamente encontraremos bastante gente, sem ter nem que entrar no carro. Vida de índio no tempo das vacas gordas.

Para entrar no clima, o primeiro livro que escolhi é “Os caduveo”, de um tal Guido Boggiani, uma edição de 1945 ricamente ilustrada, que encontrei numa biblioteca que freqüento, em uma busca mais ou menos aleatória. Li já a longa introdução de outro tal Herbert Baldus, que situa a obra no contexto dos estudos e relatos até então existentes sobre a fascinante nação Gauicuru, da qual que os Cadiveu, Caduveo ou Kadiweu são um ramo, que dominou a planície do pantanal matogrossense e o chaco paraguaio por séculos. Os relatos iniciam-se com os jesuítas das missões, passando por militares espanhóis e portugueses. Como disse um deles, faziam guerra a todo o gênero humano. Grandes, maiores que os europeus, se adaptaram imediatamente ao cavalo, e se tornaram pastores de gado bovino e ovino. Ferocíssimos guerreiros, vestiam-se de peles de onça, que acreditavam torná-los invulneráveis, e combatiam com a massa e a lança em cargas de cavalaria precedidas de estouros da manada. Em uma época quase exterminaram os espanhóis do Paraguai, eram superiores a todas as tribos vizinhas e dominavam um vasto território com a velocidade do cavalo. Os bravos bandeirantes paulistas, quando topavam com eles, fugiam em desabalada carreira para o mato, pois na campina pantaneira não tinham a menor chance. Esta nação era uma fascinante sociedade estratificada, liderada pelos nobres de sangue, e escravos de todas as etnias, inclusive europeus, que eram tratados com a mesma benevolência que dedicavam aos cavalos e gado, e bastante liberdade, com vários canais de miscigenação. Eram orgulhosos caçadores, pescadores e ladrões, e deixavam a agricultura aos cativos e tribos subservientes. Uma das explicações para o seu declínio vem de uma prática das vaidosas capitanas guaicurus, de abortarem todos os filhos concebidos até o qual sentiam fosse o último de sua vida fértil, e assim terem um filho só. Os motivos são a preservação do corpo para o deleite do marido, e a mobilidade que uma tribo nômade precisa ter. Cada nobre guaicuru andava com um pequeno séquito de escravos, e apesar de monogâmicos em princípio cultivavam uma expressiva liberdade sexual. Curiosa a citação de outro ainda tal Almeida Serra, militar português que fez um dos mais importantes relatos sobre os Guaicurus:

Cada mulher, e principalmente as donas, tem um e dois chichisbéus, que sempre andam e dormem mesmo ao seu lado, dos quais os maridos não têm ciúmes, dizendo que é para sua guarda e vigia, sendo que algum destes chibantes o que ordinariamente casa com ela quando o marido faz o mesmo com outra mulher. Separados estes casais, e cada um para o seu antigo domicílio, sucede que tendo ligado no tempo desta separação um e dois casamentos, tornam novamente a se casarem estes antigos consortes; e quando não casam, sempre ficam afeiçoados para se conhecerem cada vez que querem. O fim das suas beberronias, em que empregam grande parte do ano, e em que eles e elas tudo fica bêbado, termina sempre em cada qual ir buscar sua convivência, sem que o homem se lembre da mulher, nem ela do marido, mas sim das suas inclinações, não se negando uns aos outros nos lugares recônditos que buscam, no mato ou no rio para estes bacanais encontros.”

O relato de Boggiani, um artista e antropólogo amador, do qual agora estou só a um prefácio de distância de um outro antropólogo italiano, é um diário de viagem do fim do século XIX, período em que os Guaicurus estavam em franco declínio, mas ainda eram perigosos e mantinham o seu inabalável orgulho e sentimento de superioridade. Boggiani foi morto em uma outra viagem posterior por seus guias chamacocos, tribo do chaco paraguaio submissa aos guaicurus, assassinato motivado pelo pavor dos guias de adentrarem no território guaicuru. É algo entre Júlio Verne e Tintin, supostamente real.

Há alguns anos atrás fiz uma viagem a Bonito, em pleno território kadiweu, e lá comprei um enorme vaso da linda cerâmica que eles comercializam. Comprei o trambolho porque as índias mais velhas e talentosas fabricam os grandes, deixando para as adolescentes os pequenos, que acabam sendo mais singelos. Depois tive notícia que uns arquitetos brasileiros, que ganharam um concurso internacional para a recuperação de um grande conjunto habitacional na Berlim Oriental, usaram como elemento decorativo azulejos com estampas feitas pelas índias, que tiveram os seus direitos intelectuais preservados em uma ação pioneira de um advogado que há anos se dedica à causa Kadiweu. Ao que consta o Darcy Ribeiro iniciou sua carreira de antropólogo estudando os Kadiweu.

O meu plano era levar mais um ou dois Saramagos, dentre os vários que me foram indicados como preferidos por amigos leitores que muito prezo e respeito. Pretendia retirá-los da biblioteca do clube, onde fui cortar o cabelo ontem depois do almoço. Vi a coleção completa através do vidro da estante, mas não havia mais nenhum funcionário para me atender. Paciência. Levo ainda, outra indicação, um escritor húngaro Sandor Marai. A dica era “As brasas”, mas só encontrei “Divórcio em Buda”. Duas na trave, mas paciência, o controle sobre nossas próprias vidas é relativo.

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Felice morte

Eu, agnóstico histórico, sempre tive uma tendência a achar que não vale a pena pensar sobre a morte, temos que viver a vida e pronto. Daí acabou. Melhor tentar esquecer que vamos morrer, e viver até o último momento como se a gadanha medonha jamais fosse nos atingir. Mas ultimamente tenho trombado em profundas reflexões sobre a dita cuja, como o “Memória de Minhas Putas Tristes” do Gabriel Garcia Márquez, “A Sereia e o Senador”, de Tomasi di Lampedusa, “As Intermitências da Morte, do José Saramago, e por último, “A Invenção da Solidão”, do Paul Auster, e estou tendendo a mudar minhas convicções. Todos sabemos que vamos morrer, vamos perder os entes queridos mais velhos do que nós, e faltar aos mais jovens, salvo inversão da ordem natural. Nada mais certo do que isso. E porque temos tanto medo da morte? A religião sempre tentou minimizar esse pavor com fantasias de imortalidade da alma, paraíso, ressurreição, reencarnação, passagem para outra dimensão, outros planetas, e outras bobagens, ao mesmo tempo que induziu o bom comportamento com o assustador inferno. Sempre tive uma visão cientificista da imortalidade da alma, meio darwiniana, um pouco oitocentista, de ser a tal permanência uma ilusão criada pelo instinto de sobrevivência da espécie, que no caso humano auxiliaria na acumulação e transmissão da cultura, essencial para a preservação do homem. Digo sempre que, na minha opinião, o apocalipse já aconteceu, a religião não cumpre mais o seu papel e só temos o suporte da ética. Livre das ilusões, porque temer a morte? Porque não caminhar resolutamente para a boa morte, depois de esgotada a boa vida? Porque não se preparar para a morte? Viver em função da preservação da espécie, da organização e transmissão da nossa imensa, monumental e utilíssima cultura, fonte do bem estar geral, não para ir para o céu ou evitar o inferno, mas só para ter uma boa morte, como foi um dia a morte heróica do soldado no campo de batalha, voluntariamente defendendo sua gente e sua cultura. No novo mundo sem fronteiras, com as culturas circulando com efeito exponencial, a guerra é contra a ignorância e a boa morte é a dos velhos. Corrupção, mesquinharia, arrogância, superioridade, preconceito, intolerância, fundamentalismo, tudo ignorância. Morrer tranqüilo com a missão cumprida, pranteado e lembrado pelos amigos e parentes. Claro que o risco faz parte do jogo e imprevistos acontecem. Como dizem os paulistanos, que assim acreditam que dizem os italianos, “e si non te vedo piu, felice morte”.

terça-feira, janeiro 03, 2006

Mortinha da Silva*

A morte espreita em cada esquina, em cada sombra, vão, desvão, buraco, abismo, canto, cruzamento, privada, genitália, maionese, em cada passante desconhecido, bandido, bactéria, vírus, voando em esporo ou muco, e sempre em potência no corpo prestes a degenerar. Na linha do tempo sempre está à frente, mas agindo pelas costas, armada do elemento surpresa. A não ser que se suba à rede, com coragem e desespero. Não precisa pressa é questão de tempo. A ampulheta escorrendo sua areia, sem que se saiba quanta areia tem, e em que velocidade vai. Dá pra fazer tudo o que precisa? Nunca. Pra que pressa? Bilhões de ampulhetas escorrendo ao mesmo tempo, umas no começo, outras no fim, a de todos, os queridos, odiados, indiferentes, necessários, úteis e voluptuários. Os de comer, os de apanhar, os de brincar, os de amparar, falar sério, xingar. Roubar, matar, trair, nunca, porque senão não vale a pena. Para os outros, pelos outros, ninguém quer um monstro no espelho. A vida e a morte. A morte, a grande verdade metafísica, a única, de massa infinita, onde toda a vida se descarrega, raios, relâmpagos, faíscas efêmeras sobre a terra. Eu nunca tinha pensado nisso, até a visão de uma sereia imortal.

*Ficou um pouco pomposo, paciência. Pode bater à vontade.