quinta-feira, dezembro 29, 2005

Um flarte com a morte

Acabei de ler “As intermitências da morte”, do José Saramago. É um livro engraçadíssimo, com sérias reflexões sobre grandes questões filosóficas, e finas ironias contra o estado e a igreja, que parte de um plano amplo, com personagens apenas esboçados, e vai fechar o foco apenas na última parte. Não conto nada pra não estragar o suspense, mas recomendo enfaticamente. É ótimo. É escrito em português de Portugal, e o autor fez questão de que não fosse traduzido para o brasileiro, mesmo na edição daqui. Então temos ideia sem acento (cá entre nós, bastante inútil), excepção, facto, as sanduíches, gadanha (o instrumento da morte, aquela foice de cabo longo com uma manete à meia altura, que em São Paulo se chama de alfange), o pequeno ecrã (a tela da tv) e outras curiosidades vernaculares. Quanto à sintaxe, chuto que o Saramago, do alto de sua autoridade de autor laureado e parâmetro da norma culta, ao pontuar e usar as maiúsculas contrariando as regras faz uma declaração de princípios sobre o uso da língua, e não apenas uma manifestação de estilo artístico. Tenha em mãos a trilha sonora. Um personagem é construído a partir de um estudo de Chopin, Opus 25, 9, de cinqüenta e oito segundos. E fundamental mesmo é a Suíte nº. 6, BWV 1012, citada a interpretação do Rostropovitch (incrível como os solos de violoncelo de Bach estão por toda parte, ultimamente). É um longo poema em prosa, em que o cinismo cáustico evolui para uma pungente situação íntima, na qual o flarte (de flirt, flerte) com a morte acaba por dar sentido à vida.

sábado, dezembro 24, 2005

No direction home


Meu primeiro Bob Dylan foi o Desire. Claro que eu já conhecia os seus clássicos, achava legais e coisa e tal, mas nunca me ocorreu comprar os discos. É um acetato grosso com o selo laranja da Columbia, comprado em 76. Na época eu escutava rock, Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Deep Purple, Rolling Stones, essas coisas. Daí um dia eu ouvi no rádio “Hurricane”, recém lançada. Adorei na hora e fui correndo comprar. Não entendia nada do que ele cantava, mas tava na cara que era uma história triste e interessante, de um lutador de box chamado Hurricane preso injustamente. O senso dramático está presente desde o timbre e a levada precisa dos acordes menores no violão, no riff do violino, a bateria com escovinha, mas principalmente a entonação de quem tem alguma coisa muito importante pra dizer. Um testemunho emocionado e contagiante. Inspirador é talvez o comentário que mais aparece no “No direction home”, o super-documentário do Scorcese, de quatro horas, quando os entrevistados tentam defini-lo, e que eu assisti ontem (desculpe Robertão, mais um ano sem ver o seu especial de natal).

É sobre os primeiros anos do artista-herói. A formação musical na cidadezinha moribunda em Minnesota, ilustrada com trechos das interpretações dos discos de seu pai e das outras influências. O esforço pra sair de lá, os truques e mentiras, os discos roubados, a negação da origem judaica, e a construção do personagem Bob Dylan. O modelo decalcado foi o Woody Guthrie, de quem aprendeu todas as músicas, o que lhe valeu a entrada na cena folk do Village em Nova Iorque, gravando o primeiro disco em 1961, sem nenhuma composição, já por uma grande gravadora, totalmente moleque. As primeiras composições, ser sugado para o movimento dos direitos civis, mais pela turma que ele andava do que por vontade própria. E aí vem a revelação ou a tese do documentário, que é o mais interessante de tudo. Tudo o que ele queria ser era um deus pop, totalmente entregue às canções, e nunca pensou em ter uma atuação política. Seu modelo estético é calcado nos grandes artistas country, que nada têm a ver com o folk, misturado com o Woody Guthrie. É um personagem que renega o seu passado, sem lar e sem família, entregue à aventura beatnik e um trabalhador incansável. Aprendeu todas as músicas que pôde, e compunha furiosamente. Sugava tudo o que encontrava como uma esponja – há um depoimento nesse sentido – e depois dos Kerouac, Ginsberg, lia toda poesia que caía na sua mão, os da sua língua, entre os quais o de quem pegou o nome, os malditos franceses, tudo o que trombava nas suas andanças pelo Village. Aprendeu a escrever de modo incompreensível e enigmático, e cantava com a entonação profética que o transformou no “porta-voz de uma geração”. Imagens e histórias. Interpretava as canções com um olhar de louco perdido no vazio revirando os olhos e a cabeça jogada pra trás. O máximo.

A impressão que o documentário dá é que ele ficou aprisionado na tal da cena folk, dos músicos “íntegros” que pouco compunham e executavam música antiga folclórica, intelectuais do bairro boêmio, comunistas engajados em uma luta política. Depois de super-exposto na luta dos direitos civis e conquistar o sempre negado título de líder porta-voz cantor de música de protesto, Dylan, ao atingir precocemente sua maturidade como artista, em 1965 começa a eletrificar a sua música, levando ao festival folk de Newport a banda de rock que gravou o 61 Highway Revisited (Like a Rolling Stone), com o super guitarrista Mike Bloomfield. Foi patrulhado e perseguido pela turma do violãozinho, vaiado, e tocou só três músicas. No ano seguinte, 66, montou uma super turnê européia com a banda que viria a ser The Band, com um afiadíssimo som elétrico, um repertório de meter medo – pelo que eu entendi uma parte do show era violão e voz e outra com a banda – terninhos dos melhores estilistas do mundo do rock, reclamando por direito o seu lugar no panteão pop. Foi patrulhado, perseguido e vaiado na Europa inteira. Ficou oito anos sem sair em turnê.

A sensação que eu fiquei é que ele fez um enorme esforço para ser uma estrela pop, e quando chegou lá, a via de acesso que ele usou, que foi a oportunidade que lhe apareceu, puxou-lhe o tapete. Não escrevia para mudar o mundo, fazer política e liderar uma geração. Ele explicitamente nega isso em todas as oportunidades. Mas sobre si e sobre a sua odisséia ao olimpo pop. Pra mim, quando ele pergunta, “How does it feel, to be without a home, like a rolling stone”, está falando de si mesmo. Nessa época, os Rolling Stones dominavam as paradas. Assim como quando cantou “how many roads must a man walk down, before he call him a man”, falava de si próprio e da distância que estava da sua meta. A Revolução é pessoal.

sexta-feira, dezembro 23, 2005

A salvação da alma (post de natal)

Pois é. Porque a alma precisaria de salvação? Porque a salvação se daria através do simbólico sacrifício de um humano, imolado como um bode de macumba? Essa a salvação temporária, de todo dia, arroz-com-feijão. A definitiva, após a morte, a ressurreição e a vida eterna. E ainda, depois de depois da morte, o apocalipse e a ressurreição de toda a humanidade, para todo o sempre. Haja pecado. O original, a prova do fruto do conhecimento, a consciência racional de nós mesmos. Abdicamos de ser budas, como os animais, pelo uso da palavra. O famoso verbo. Depois, os capitais, tabus de convivência a serem quebrados no cotidiano, a angustiante respiração de controle dos instintos do civilizado. Impulso, pecado, culpa, arrependimento, perdão, impulso, pecado, culpa, arrependimento, perdão. Acredito que nós humanos nunca ficaremos prontos, estamos sempre evoluindo, e nesse processo a religião cristã foi um salto à frente. É uma visão otimista. O deus-juiz que pune e perdoa, antes externo e paternal, depois de Cristo foi introjetado e agora faz parte de nós. Deus e o demônio, a luz e a sombra, convivem dentro de nós, em uma luta constante. Impulso, pecado, culpa, arrependimento, perdão. Os dogmas da religião são pacotes psicológicos que preenchem lacunas filosóficas e têm uma função nesse processo, de construção da civilização e da cultura. Cá pra mim, o apocalipse já aconteceu e não precisamos mais da religião, que não consegue mais cumprir o seu papel. Só nos resta a ética. Mas vamos festejar o nascimento do cordeiro que assassinaremos na páscoa, como fazemos todo ano, convenientemente marcando a virada do odômetro do calendário gregoriano. Vamos festejar mais uma circunvolução da Terra em volta do Sol. Vamos encher a cara, abraçar a família no natal, os amigos no reveillon, e começar, leves e zerados, outro ano.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

G, o gênio do boteco

Como o G, o gênio do boteco, causou forte impressão com maravilhoso refrão carnavalesco “hoje eu vou morder seu silicone”, e atendendo a pedidos traço aqui um breve perfil deste fascinante personagem. Se alguém perceber de quem se trata, favor não comentar nem dar bandeira, porque o G abomina publicidade.

Conheço o G há muitos e muitos anos, desde o ginásio, mas fiquei amigo dele mesmo depois que saímos da escola e nos estabelecemos em escritórios próximos. Passamos a nos encontrar para drinks no fim da tarde com regularidade há mais de vinte anos. No começo éramos jovens fortes e metidos, e tomávamos principalmente uísque, o que engendrava uma velocidade de embebedamento um pouco alta, e o porre total era mais ou menos freqüente. Os locais e os outros convivas variavam mas a falta de outras companhias nunca nos impediu de beber e falar bobagem. Com o tempo fomos deixando o uísque em favor do chopp, que permite uma relação permanência na mesa/estrago um pouco mais branda.

G tem uma característica. Não sei bem porque, mas desconfio que seja uma ressonância telepática com as pessoas do seu entorno próximo. Depois do quarto ou quinto uísque ou o equivalente em álcool de outra bebida, G às vezes se transforma. Como que possuído por um ente sobrenatural, ou como quando o Hulk fica nervoso, ou o Popeye come espinafre, ou o Jerry Lewis em “Professor Aloprado” toma o elixir de Buddy Love, G começa a interagir com as pessoas ao seu redor, conhecidas ou não, fazendo uma espécie de stand-up comedy ou teatro do improviso, ou um sermão de Vieira, um advogado no júri, tomado da convicção dos loucos, contando um caso escabrosíssimo, fazendo considerações filosóficas, sociológicas, e políticas, imitando Miltinho, Elvis ou Dick Farney e Lúcio Alves, com sua sonora voz de cantor inato, ou outra loucura qualquer. Uma vez o vi manipular um bar inteiro lotado, na época da novela “A próxima vítima”, em que cada mesa esperava ansiosamente a sua vez. Outra, ele subiu em cima do piano de meia-cauda e de lá fazia o seu número. Em outra ainda, caiu com a cadeira e tudo de costas no chão, e continuou o seu discurso na horizontal, por um bom tempo, como se nada houvesse acontecido.

Claro que são eventos raros, como os abalos sísmicos, os furacões, e outras manifestações telúricas, sem nenhuma regularidade, que acontecem uma vez por ano ou menos ainda. G é um responsável chefe de família, bom pai, bom marido e bom filho, bem educado e cordato, e até bastante discreto. Naturalmente é inteligente, criativo e engraçado. E não tem nada de louco, embora nesses momentos especiais, com os olhos arregalados e o sampacu acentuado, a sua expressão fique um pouco assustadora.

terça-feira, dezembro 20, 2005

Carnaval 2006

Ontem, afogando as mágoas do bom velhinho, que este ano não trará o presente que eu pedi (será que eu não fui um bom menino?), em meio a uma enxurrada de idéias imbecis surgiu uma pérola antropofágica, que se o Chacrinha estivesse vivo, e o carnaval de marchinhas ainda existisse, valeria milhões de dólares. Uma criação do G, de gênio do boteco, e minha (só fiz a rima óbvia):

Eu hoje vou morder seu silicone
Tô com fome
Tô com fome

domingo, dezembro 18, 2005

Na baixada


Cidade baixa. Ô filmão. Só a cor do sangue está errada.

A caminhada ao longo do rio duraria o dia inteiro. A falta de trilha e a necessidade de saltar de pedra em pedra, ainda que já não estivesse caminhando por dentro d’água, tornavam a marcha bastante lenta. Procurava ser discreto, tinha com medo de ser capturado pelos devoradores de homens. Sua fome agora era um estado crônico, amainado pelos frutos que encontrava pelo caminho, verdes, passados, ou semi-comidos por pássaros. Mas achava que tudo ia bem, estava inteiro, andando, e sentia que suas forças eram suficientes para chegar ao litoral. Até que sentiu uma violenta pedrada na panturrilha direita. Sua primeira reação foi olhar para trás e procurar quem havia desferido o petardo. Só a mata e o marulho do rio. Em seguida, olhou para baixo e levou a mão à perna. Tinha uma flecha espetada lá. Desanimou. Havia sido pego pelos tupinambás. Sabia que eles não andavam sozinhos na mata e naquele estado não teria a menor chance de fugir. Enquanto tentava arrancar a flecha da sua perna, seis ou sete deles o cercaram cubrindo-o-o de porrada. E gritando frases em tupi que ele já conhecia de ouvir contar, que significavam alguma coisa como “perdeu, mano, e você vai virar o meu jantar”, ou “seu português filha-da-puta, você matou meu irmão, e agora você vai ver o que é bom pra tosse”, ou, “você é o bichinho que caiu na minha arapuca e eu vou assar no espeto”. Enquanto apanhava e ouvia esses gritos ameaçadores lembrava de alguém falando que tupinambás não comiam escravos, pois não eram dignos da honraria reservada aos guerreiros. Agarrou-se mentalmente a essa duvidosa informação para manter o ânimo. Foi amarrado pelo pescoço com várias cordas, cada uma segura por um deles, e levado até o rio. Lá, enquanto continuava a tomar cascudos, croques, tapas e pontapés, em meio a gargalhadas e impropérios, e era seguro por mil mãos, teve a flecha retirada da sua perna, com o auxílio de uma faca, o que doeu horrores. A ferida foi lavada e ungüentada. Deram-lhe de beber e de comer, uma paçoca de farinha de mandioca com carne torrada esfarelada, que ele comeu com sofreguidão. Daí, puseram-no para andar, e os trancos e puxões no pescoço eram tamanhos que volta e meia perdia a respiração. Dali a umas duas horas chegou à taba e foi entregue às mulheres, em meio a uma grande gritaria e gargalhadas, naquele mesmo teor: jantar, filha-da-puta, vingança e animal capturado. As mulheres o arrastaram para uma grande oca escura e fresca, através de uma pequena abertura baixa, com a mesma violência de puxões nas cordas do pescoço, gritos, imprecações e gargalhadas, e ainda arranhões e mordidas, e ficaram examinando-o-o, apertando-o-o, puxando suas partes, até que perceberam que ele estava além do limite de suas forças e o puseram numa rede, amarrando longe as várias cordas que estavam no seu pescoço, de modo que podia se mover menos de um palmo. Absolutamente esgotado, Pecus* desacordou.


*Aqui, em trajes de banho, 2003, Dia do Trabalho, Itamambuca.

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Top top 15

Tá certo, estou entre os top quinze, e o ego está um pouco maior hoje. Claro que tem algo de duvidoso nesse mérito, e algum retrogosto de ridículo, como a Daniela Winitz deve ter sentido quando encabeçou uma lista de melhor peito de silicone da praça. E top, top, top, me lembra o gesto característico do Fradim, aquele gênio que inventou o peido no elevador. O sitemeter enlouqueceu, o que mostra o poder da comissão julgadora na blog-o-land, e acredito que bastante gente tenha se decepcionado com as minhas considerações sobre auto-flagelação, culpa, castração e amores falidos. É uma fase. Há algo de fantástico nessa nova forma de comunicação, os blogs. Escrevemos nossas baboseiras em casa, ou roubando tempo ao patrão, na mais absoluta solidão, e disparamos o míssil no espaço, ou lançamos a mensagem da garrafa na maré, e acertamos justamente naqueles que vão entender nossa loucura. Como disse o Saramago a uma amiga minha, muito tempo atrás, não estamos tão sozinhos quanto pensamos. Obrigado Denise, Márcia e Leila, e toda a comissão julgadora, que eu não conhecia mas agora vou prestar muita atenção.

Pássaro Preto

Blackbird
Lennon/McCartney

Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly.
All your life
You were only waiting for this moment to arise.
Blackbird singing in the dead of night
Take these sunken eyes and learn to see.
All your life
You were only waiting for this moment to be free.
Blackbird fly, Blackbird fly
Into the light of the dark black night.


Assim assassinei (recomenda-se sotaque caipira):

Pássaro Preto

Pass’o Preto no meio da noite a cantar
Pega essas asa quebrada e aprende a voar
Vida inteira
Tava só esperando a hora certa de decolar
Pass’o Preto no meio da noite a cantar
Pega esses zóio afundado e começa a enxergar
Vida inteira
Tava só esperando a hora certa de se libertar
Pass’o Preto Vai
Pass’o Preto Vai
No meio da noite no escuro a cantar


Essa música tem uma curiosa semelhança com “Assum Preto”, do rei do baião, a história triste dos olhos furados. Aliás, o assum preto é a mesma ave que a graúna (nome indígena que significa ave negra), assim chamado no nordeste, que é conhecida em São Paulo por pássaro preto ou vira, de vira-bosta. É um grande cantor, capaz de aprender melodias, e ainda truques, sendo de fácil domesticação. Alguns até criados soltos. Assum preto só pode ser corrutela de pássaro preto, truncado em pass’o preto. Só não sei se a ave de Lennon e McCartney existe. Desconfio que seja uma ave poética. Poucas aves cantam à noite e é muito conveniente para a letra que seja negra. São duas grandes canções.


Assum Preto

Luiz Gonzaga / Humberto Teixeira

Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá de mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

Severino e Nair

Em 1969 mudamos para a casa nova, num bairro novo em construção. Eu tinha oito anos e total liberdade. Vivia pelos terrenos baldios e obras com a molecada do bairro, ou amigos da escola, escalando andaimes, construindo carrinhos de roleimã e outras bobagens. Conhecíamos vários pedreiros. Alguns anos depois, começou a obra no último terreno livre do nosso quarteirão. Com a limpeza do terreno, a casa ficou infestada de ratos. Volta e meia caía um rato na piscina, que era esvaziada e lavada. Um dia a piscina tinha só um pouco de água, e uma enorme ratazana havia caído lá durante a noite e estava viva, sem conseguir sair. O que fazer? Como nos livrar do pernicioso invasor? Peguei a espingardinha de chumbo e comecei a dar tiros no bicho. Primeiro ela fugiu da parte seca para a parte com água, e ao nadar deixava um rastro parecendo uma fumacinha, do sangue. Daí ela voltou para a parte seca, encostou-se na parede, sentou sobre as patas traseiras, levantou as dianteiras, e parecendo um canguru, começou a urrar horrivelmente, em gritos estridentes que reverberavam pelas paredes azulejadas. E eu, nervoso com aquela cena tétrica, dava tiros e mais tiros e nada do monstro morrer, o que levou mais um tempo enorme.

O fato é começou a obra no terreno vizinho e trabalhava lá um carpinteiro chamado Severino, baixo, forte, atarracado, bigodinho e costeletas, como se usava na época. Eu já era grandinho, e quem estava na fase de brincar em obras e ficar amigo dos pedreiros era o meu irmão menor. Em casa trabalhava uma cozinheira alta, desengonçada, óculos fundo-de-garrafa, macilenta, uma mulher feia e estranha, a Nair. O Severino se apaixonou pela Nair, e o meu irmão funcionou como cupido, fazendo a aproximação das partes. Não sei bem o que aconteceu, se a Nair relutava, se fez exigências materiais para se casar, mas a história que correu é que o Severino com a machadinha decepou seu polegar esquerdo, a fim de obter uma indenização e montar a casa. Casaram. Pouco tempo depois a Nair virou crente, como se dizia dos fiéis das incipientes seitas evangélicas, e ao que consta passou a se recusar a cumprir os seus deveres conjugais. Coisa do demônio.

terça-feira, dezembro 13, 2005

A carne e o espírito 2

Além da história do Frei Galvão e a Helena Maria do Espírito Santo, para quem ele construiu o Mosteiro da Luz enfrentando as disposições do Marquês do Pombal, e que pra mim tem toda a cara de amor sublimado com auto-flagelação e o encarceramento da pobre tentação em um quarteirão de taipa projetado e amassado pelo próprio frade; e a triste história de Abelardo e Heloísa, do amor livre de filósofo depois maculado pelo casamento, impossibilitado pela mutilação e terminado em religião, topei com um trecho cômico do comunista Saramago, no “Memorial do Convento” que se passa numa quaresma na Lisboa do século XVIII, segundo ele um prolongamento da farra do entrudo, verdadeira temporada do adultério quando deveria haver continência. Mas o engraçado é a procissão da penitência:

“Presas no alto gorro ou na própria disciplina, levam fitinhas de cores, cada um a sua, e se a mulher eleita que à janela anseia de angústia, de piedade pelo amador sofredor, se não também de gozo a que só muito mais tarde aprenderemos a chamar de sádico, não souber, pela fisionomia ou pelo vulto, reconhecer o amante na confusão dos penitentes, dos pendões, do povinho derramado em pavores e súplicas, do vozear das ladainhas, do bambear desacertado dos pálios, dos cabeceamentos bruscos das imagens, adivinhará ao menos pela fitinha cor-de-rosa, ou verde, ou amarela, lilás, se não vermelha ou cor do céu, é aquele o seu homem e servidor, que lhe está dedicando a vergastada violenta e que, não podendo falar, berra como o toiro em cio, mas se às mais mulheres da rua, e ela própria, pareceu que faltou vigor ao braço do penitente ou que a vergastada foi em jeito de não abrir lanho na pele e rasgões que cá em cima se vejam, então levanta-se do coro feminil grande assuada, e possessas, frenéticas as mulheres reclamam força no braço, querem ouvir o estralejar dos rabos do chicote, que o sangue corra como correu o do Divino Salvador, enquanto latejam por baixo das redondas saias, e apertam e abrem as coxas segundo o ritmo da excitação e do seu adiantamento. Está o penitente diante da janela da amada, em baixo na rua, e ela olha-o dominante, talvez acompanhada de mãe ou prima, ou aia, ou tolerante avó ou tia azedíssima, mas todas sabendo muito bem o que se passa, por experiência fresca ou recordação remota, que Deus não tem nada a ver com isto, é tudo coisa de fornicação, e provavelmente o espasmo de cima veio em tempo de responder ao espasmo de baixo, o homem de joelhos no chão, desferindo golpes furiosos, já frenéticos, enquanto geme de dor, a mulher arregalando os olhos para o macho derrubado, abrindo a boca para lhe beber o sangue e o resto.”

É claro que o freio aos instintos é condição da vida civilizada, e a religião teve e tem, ainda que cada vez menos, papel essencial nessa tarefa. Vazando pra todo lado, às vezes de forma trágica, às vezes cômica.

segunda-feira, dezembro 12, 2005

La poule aux oeufs d'or




L'avarice perd tout en voulant tout gagner.
Je ne veux pour le témoigner
Que celui dont la Poule, à ce que dit la fable,
Pondait tous les jours un oeuf d'or.
Il crut que dans son corps elle avait un trésor.
Il la tua, l'ouvrit, et la trouva semblable
A celles dont les oeufs ne lui rapportaient rien,
S'étant lui-même ôté le plus beau de son bien.
Belle leçon pour les gens chiches :
Pendant ces derniers temps, combien en a-t-on vus
Qui du soir au matin sont pauvres devenus
Pour vouloir trop tôt être riches ?

La Fontaine

domingo, dezembro 11, 2005

A carne e o espírito

Heloísa, já há dez anos no convento, retoma o contato com Abelardo, vítima da terrível amputação, a quem pede socorro por carta:

“Os prazeres amorosos que juntos experimentamos têm para mim tanta doçura que não consigo detestá-los, nem mesmo para expulsá-los de minha memória. Para onde quer que eu me volte, eles se apresentam a meus olhos e despertam meus desejos. Sua ilusão não poupa meu sono. Até durante as solenidades da missa, em que a prece deveria ser mais pura ainda, imagens obscenas assaltam minha pobre alma e a ocupam bem mais do que o ofício. Longe de gemer as faltas que cometi, penso suspirando naquelas que não pude cometer. Não foram só os gestos que permaneceram profundamente gravados em minha memória, junto com tua imagem; mas também os lugares, as horas que deles foram testemunhas, a ponto de eu ali me reencontrar contigo, repetindo esses gestos, e não reencontro repouso nem mesmo no meu leito. Às vezes, os movimentos do meu corpo traem os pensamentos da minha alma, palavras reveladores me escapam... ”

O pobre Abelardo procura demonstrar que a sua desgraça pela qual Heloísa se culpa, foi a sua salvação, e ele, livre do “aguilhão da carne” pode dedicar-se inteiramente ao espírito. E exorta a esposa a fazer o mesmo, tentando provar que viviam mergulhados no pecado, mesmo após o casamento:

“Pouco tempo depois de termos recebido o sacramento, tu te lembras, estavas então retirada no convento de Argenteuil, vim um dia ver-te em segredo: minha conscupiciência, desenfreada, satisfez-se contigo num canto do refeitório, à falta de outro lugar para nos entregarmos a esses divertimentos. Tu te lembras, digo, que não fomos retidos pela majestade daquele lugar consagrado a Virgem? Mesmo que não tivéssemos cometido outro crime, esse não seria digno do pior dos castigos? De que serve lembrar nossas antigas imundícies e as fornicações de que fizemos preceder o casamento? A vergonhosa traição da qual me tornei culpado para com teu tio, na casa em que vivia como familiar, quando, impudentemente, te seduzi?”

“Compara, ao perigo ocorrido, a forma pela qual nos libertamos. Compara, ao remédio, a doença. Examina o que teriam merecidos nossas faltas, e admira os efeitos da bondade divina. Tu sabes a que torpezas minha concuspicência desenfreada havia levado nossos corpos. Nem o pudor, nem o respeito de Deus me arrancavam, mesmo durante a Semana Santa, mesmo no dia das maiores solenidades religiosas, do lamaçal em que eu rolava. Tu recusavas, tu resistias com todas as tuas forças, tu tentavas a persuasão. Mas, aproveitando-me da fraqueza de teu sexo, eu forcei mais de uma vez teu consentimento, através de ameaças e de golpes. Meu desejo de ti tinha tamanho ardor que esses miseráveis e obscenos prazeres (hoje não ouso mais nem mencioná-los) passavam para fim à frente de Deus, à frente de mim mesmo. Podia a clemência divida me salvar de outra forma senão mos proibindo para sempre?”

É uma das histórias mais tristes que eu já conheci. A carne é fraca e o espírito é forte ou ao contrário? Não é inconsistente o discurso do Abelardo, em contraste com o de Heloísa?

quinta-feira, dezembro 08, 2005

Território tupinambá

Pecus acordou com as inúmeras, exuberantes, tropicais, coloridas e barulhentas aves. A mata na beira do rio estava lavada e brilhante e era bem mais desenvolvida do que a da serra. O céu, azul e limpo. O sol brilhava, e o ar ainda estava fresco. O plano era simples. Um banhão de rio e procurar alguma coisa pra comer. Ao entrar na água gelada, pelo ardor percebeu que estava lanhado em vários pontos. Sentia dores por todo o corpo, músculos e ossos amassados, e o cansaço do esforço. Sua roupa de algodão cor-de-burro-quando-foge estava em farrapos, mas ainda oferecia alguma proteção, e ele aproveitou para lavá-la na pedra. Saiu andando devagar, por dentro da água por precaução, para evitar os farejadores, aproveitando as frutas que encontrava. Não tinha mais porque ter pressa, e nem poderia andar rápido naquele estado. Acreditava ter se livrado dos cães, e a janela do encontro com a sereia tinha passado. Mas já estava do lado certo da serra, e aquele rio provavelmente o levaria ao lugar marcado. Sabia estar em pleno território tupinambá.

quarta-feira, dezembro 07, 2005

A cortesia medieval

No centro do esquema imaginativo e linguístico onde, de agora em diante, vão se inscrever milhares de discursos e o dinamismo do canto erótico (a voz falada do desejo), coloca-se uma situação tipo, que é a do Obstáculo. O desejo que eu carrego e que me carrega tende para um objeto que, quaisquer que sejam as circunstâncias e as modalidades de seu fantasma, "eu" não possuirei nunca na "alegria", isto é, na perfeita liberdade e intemporalidade do "jogo". Através das inumeráveis variantes que comportam os destinos individuais, o obstáculo está sempre lá, imanente a todo amor. Não que seja concebido misticamente: o simbolismo cortês primitivo permanece terra a terra, o obstáculo é "significado" em sua linguagem pela condenação virtualmente levada contra o casamento. O casamento, não as relações sexuais como tais, o casamento porque implica num direito de posse.

(Trecho do prefácio a Correspondência de Abelardo e Heloísa, de Paul Zumthor, Ed. Martins Fontes, 1989).

terça-feira, dezembro 06, 2005

How insensitive

Uma das minhas músicas prediletas do Jobim - provavelmente também da metade da torcida do Corinthians - é "Insensatez", com a boa letra do Vinícius, especialmente na versão do João Gilberto. Pois bem, uma série de espíritos menores gosta de exibir a semelhança entre a obra do Jobim e um prelúdio em mi menor do seu quase xará, o Chopin. Vários jazzistas interpretam as duas em medley, para tentar enxovalhar o Tom. Claro que não cola. O Jobim era um chopiniano declarado e chegou a gravar algumas de suas peças. Eu não conheço a história da composição, mas eu imagino o Tom mostrando ao Vinícius a sua última molecagem, tocar o tal prelúdio em ritmo de bossa, e o poetinha comentar o sacrilégio dizendo: "que insensatez que você fez, Tom", e daí, a canção estava quase pronta. Ficou tão boa, que não dava mais pra jogar fora. E seria ridículo dar créditos para o Chopin, porque afinal, não era mais o prelúdio. Era uma nova canção, das boas. Tenho certeza que o Jobim jamais escondeu essa origem de ninguém. Se tem alguém que nunca precisou se auto-afirmar como compositor é ele. Pra mim, a maioria das acusações de plágio é coisa de quem não sabe o que é arte.

Vai a letra (pra escutar, tem na rádio uol, tanto o prelúdio como a canção)


Ah, insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o seu amor
Um amor tão delicado
Ah, por que você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah, meu coração, quem nunca amou
Não merece ser amado


Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade
Vai, meu coração, pede perdão
Perdão apaixonado
Vai, porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Falso amor sincero

(Nelson Sargento)

O nosso amor é tão bonito
Ela finge que me ama
E eu finjo que acredito

O nosso falso amor é tão sincero
Isso me faz bem feliz
Ela faz tudo que eu quero
Eu faço tudo o que ela diz

Aqueles que se amam de verdade
Invejam a nossa felicidade

sábado, dezembro 03, 2005

No fundo do abismo

Vinha no ritmo descompassado das pedras chapadas em degraus irregulares da beira do abismo, quando, ao saltar o que lhe pareceu uma pequena moita, na certeza de haver uma laje do outro lado, encontrou um emaranhado de galhos e folhas de alguns metros de largura, e despencou estalando tudo e se arranhando todo e assim foi caindo com a queda amortecida pelos galhos que se quebravam arranhando-lhe o lombo já tão castigado, e depois de um segundo e pouco que lhe pareceu um tempão estatelou-se entre pedras e as samambaias espinhentas. Apagou.

Depois de um tempo acordou em plena tempestade e demorou a entender o que estava acontecendo. A primeira providência, e urgente, foi localizar as pingadeiras da parede de pedra para matar a sede de horas. Bebeu quanto quis rapidamente, depois de constatar que estava razoavelmente inteiro, bem melhor do que depois de um dia ruim no trabalho. Torceu para que a água abundante da tempestade apagasse o rastro do seu cheiro e dificultasse sua localização pelos cães. Olhou para cima e supôs que a reentrância na grande parede onde caíra era uma fenda, uma rachadura vertical pronunciada na estrutura mais ou menos homogênea do penhasco. A superfície onde se encontrava era provavelmente uma grande pedra entalada na fenda, sobre a qual a deposição de poeira, folhas e sementes, guano e outros detritos, havia possibilitado o crescimento de trepadeiras, cipós e samambaias, cactos e outras plantas adaptadas às pedras. No canto dessa pedra entalada havia uma abertura, uma chaminé, por onde desceu, e encontrou outras pedras empilhadas na fenda, por onde a descida era possível. Era lento, tinha que examinar com cuidado o melhor caminho, mas era uma grande e complicada caixa de escada, e depois de algumas horas estava lá embaixo, no fundo daquele desfiladeiro onde passava um riozinho no meio das pedras, em meio a uma boa quantidade de árvores. Sentiu-se seguro. O longo dia de verão chegava ao fim, mas ainda conseguiu capturar com a mão alguns pitus embaixo das pedras no rio, arrancou-lhes a casca, as tripinhas e comeu-os com muito prazer e um pouco de nojo. Arrumou um canto seco para dormir, lembrou da sereia e ficou pensando nela até adormecer.

sexta-feira, dezembro 02, 2005

A mais bela flor de Piratininga

Relato do próprio Frei Galvão, cujo autógrafo se encontra no arquivo do Mosteiro de Nossa Senhora da Luz:

"Nasceu Helena em Paranapanema. Freguesia pertencente naquele tempo ao Bispado de São Paulo; nela criou-se até a idade de 17 anos; em todo este tempo eram notáveis os seus procedimentos dando já indícios de sua futura santidade; exercitava-se em obras de caridade, obediência e mansidão para com os domésticos; mui freqüente no exercício da Santa Oração, Via-Sacra e outros atos religiosos, que deixo de os referir por evitar prolixidade; dizendo somente que, entre noite e dia, tinha 7 horas de oração. As sua penitências eram contínuas, anos inteiros usou de cilícios, dormindo com eles em terra fria, digo sobre a terra; usava da disciplina de sangue procurando o silêncio e oportuno tempo da noite. Algumas vezes encontrou-se com feras, entre as quais em certa ocasião uma onça. Invocando o nome de Jesus, com estranha velocidade fugiu o tigre. Aos sete anos levaram seus pais de mudança a um descoberto de ouro, distante alguns dias de sua casa, e como não podia a menina preencher a tarefa dos diários exercícios, esperava nos pousos que faziam os da comitiva, enquanto descansavam todos e dormiam, e fora de horas, retirava-se para os matos, servindo-lhe de farol, para se não perder, os fogos que faziam os arranchados de sua comitiva, aí, pois se disciplinava de sorte que não fosse percebida. Eram-lhe os jejuns contínuos; o mesmo na freqüência dos Sacramentos, etc. etc".

"Veio a São Paulo para servente das Recolhidas de Santa Teresa. Foi no dia que entrou na cidade uando se deu sepultura ao Servo de Deus o Padre Manuel de Oliveira. Recebida pelas mencionadas Recolhidas lá esteve vinte e oito anos; em todo este tempo adiraram-se as virtudes que resplandeciam na Serva de Deus, Helena Maria do Espírito Santo, a qual todos os dias jejuava a pão e água, comendo só ao jantar um pão inteiro, ou meio, senão parte diminuta; algumas vezes passou três dias sem comer coisa alguma. Chegou esse excesso a cinco dias; a Caridade que lhe estuava no coração a transportava muitas vezes, publicamente, fora de seus sentidos; muitos anos com alegria de seu coração serviu às referidas Recolhidas por ser o ofício de servente o mais humilde entre elas, etc. etc.".

"Professou nesse Recolhimento por esmola anterior do M. Rvdo. Dr. Manuel José Vaz, seu confessor por 15 anos. A sua pobreza era extrema e voluntária porque rejeitava esmolas oferecidas de alguns devotos e de seus próprios confessores; só possuía um hábito e uma caixinha velha com algumas coisinhas de nenhum valor. Era admirável na compostura dos olhos, que por nunca os levantar não conhecia nem ainda o Confessor pela fala, que pela experiência que eu tive, disse Frei Antônio, observei que era sem a mínima exageração. Neste Recolhimento lhe apareceu o diabo tomando a forma de alguns de seus Confessores, que a dirigiam; pelo discernimento grande de que era dotada, e auxílio do Céu, nunca este a iludiu e sempre dele triunfou, porque com seus atos de humildade que fazia dava ele demonstração de soberba. Outras muitas coisas poderia referir, que por brevidade as deixo".

Pois bem, o Frei Galvão estava tão impressionado com o potencial da freirinha, que enfrentando a proibição do Marquês de Pombal de criação de ordens religiosas, moveu mundos e fundos, projetou e construiu com as próprias mãos um recolhimento só para ela, que vem a ser o Mosteiro da Luz, talvez o único edifício do século XVIII ainda de pé nesta cidade.

Foxy Lady

Neste momento, nove horas e trinta e oito minutos, estou no escritório da casa, única janela com vista para rua, e cai uma chuva intensa e tranqüila fazendo barulho no telhado. Haja água. Um gato costuma passar do outro lado da rua mais ou menos nesse horário, o que sempre percebo porque mesmo a sua pequena presença aciona a luz de segurança da casa da juíza. Olho e está lá o gato passando. Mas hoje ele não veio, está entanguidinho embaixo de algum carro ainda morno tentando ficar seco. A rua está deserta, só circula quem precisa, um carro de quando em quando. Um até agora, nesses cinco minutos. São nove e quarenta e três. É só imaginar o que eu quero que aconteça na rua. Suspendo a persiana para ver melhor. Nada. A chuva e nada. Vejo você parada embaixo de um guarda-chuva pensando que raios está fazendo ali. A minha amiga imaginária, pensando se toca ou não a campainha, se se materializa ou não. Mas eu tenho que virar o pescoço para ver a rua, ou digitar, essa leve percussão com a ponta dos dedos pulando nas molinhas do teclado. A cadeira ergonômica gira e os cotovelos estão apoiados nos braços curtos, na altura certa, e o conforto é bom. O problema é virar o pescoço para ver a rua, a minha amiga imaginária, o gato acionando a luz da casa da juíza, e ainda não passou outro carro. Preciso virar a mesa para a janela. Daí não tenho que virar o pescoço. Acho que a minha amiga imaginária ficaria bem com um cachorro, um bizarro pretexto numa noite de chuva. Uma raça à prova d’água, labrador não, muito óbvio, uma raça pantaneira, um cão pastor acostumado aos grandes espaços abertos, andando sem coleira, e com uma aparência tão amigável que não assustasse ninguém. Agora, às nove e cinqüenta e cinco, a chuva dobrou de intensidade. Minha amiga imaginária evaporou ou derreteu. Jamais viria numa noite dessa a pé com o cachorro. Ela teria que passar de carro e conhecendo meus hábitos, bastaria ver o meu vulto na janela quadrada de vidro fixo, iluminado só pela luz azulada do monitor. Para isso, ela precisaria passar pelo outro lado da rua, e devagar. Talvez eu reconhecesse o carro, se eu soubesse que carro é. Um carro compacto e ágil com todos os itens principais de conforto, um motor com alguma folga de potência, e um desenho moderno. Um Fox. Foxy Lady. Se eu reconhecesse o carro e ela visse que eu estava lá, estaria feito um duplo contato unilateral, porque não haveria retorno do reconhecimento. E sempre uma dúvida. Poderia ser. Ou talvez uma mensagem telepática pudesse acelerar o batimento cardíaco que soaria como um aviso de recebimento. A chuva diminuiu um pouco, mas ainda está mais forte que no começo. São dez e quatro agora. Uma volta no quarteirão, que é um pouco comprido, é o suficiente para resolver se volta ou não. Quer ou não quer? Ah, se ela soubesse... É claro que ela quer, mas pode ser uma puta cagada. Hoje não. São dez e nove, e eu levei cinco minutos para escrever essas últimas quatro linhas, pensando na morte da bezerra e quase babando no teclado.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Comida de sereia


O corpo quase esférico, cheio de espinhos, de início desencoraja o apetite. Mas desde tempos remotos os homens enfrentam a armadura do ouriço-do-mar para saborear as délicatesses que são seus órgãos reprodutores. São cinco gônadas, ou corais, que ocupam quase todo o interior de machos e fêmeas. Nos machos têm cor amarelo-clara ou atijolada e são menores; nas fêmeas, cor amarelo-forte ou alaranjada, e mais gordas, como dizem os pescadores. No litoral brasileiro há várias espécies de ouriço. Alguns têm espinhos que variam do marrom-escuro ao negro, outros são marrom-avermelhados, há os que variam - roxos, verdes ou púrpura - e uma espécie chega a apresentar-se verde, azul, roxa ou rosa.

De modo geral, o ouriço vive em rochas e no lodo do fundo do mar. Durante o dia, esconde-se nas grutas; de noite sai para comer algas, animais mortos e pequenos organismos marinhos. A melhor forma de degustá-lo é cortar a parte de cima (onde fica a boca) e comer de colherinha, direto da concha, com gotas de limão ou azeite. Na Espanha, em especial nas Astúrias, é apreciado em patê, pastéis, molhos para peixe e marinado na sidra. Na França, destaca-se a sauce à l'oursinade, com béchamel e creme de leite, para acompanhar pescado branco poché ou no vapor. No Japão, conhecido como uni, é servido no sushi ou na concha com limão, raiz-forte, óleo de gergelim e shoyu. Em Pernambuco, em dezembro, a Festa da Ouriçada celebra Santa Luzia; ouriços são pescados e assados sobre palhas, e entram em farofa. Em Porto Covo, Portugal, a Ouriçada festeja as marés da Páscoa. Vinho rosé gelado é ótimo acompanhamento.

COMO SE ESCOLHE

Encontra-se em algumas peixarias, mas não é comum, principalmente nas cidades distantes do litoral. Adquira congelado ou em conserva com sal, em mercearia de produtos orientais. Ou encomende na peixaria. Se comprar inteiro, deve estar com os espinhos firmes e o orifício bucal bem fechado. Congelado ou em conserva, verifique no rótulo o prazo de validade e as informações sobre o produtor. Rejeite se o ouriço-do-mar congelado estiver mole ou com acúmulo de gelo dentro ou fora da embalagem. Ao abrir, avalie o cheiro. Precisa ser suave, à maresia. Nunca deve lembrar amoníaco - estará estragado.

COMO SE PREPARA

Se inteiro, abra uma tampa na parte da boca. Use luva e, caso tenha, um corta-ouriço (coupe-oursin). Com pinça tire as vísceras - a parte escura. Restarão as cinco gônadas. Pingue nelas gotas de limão ou azeite e sirva na concha, sobre gelo. Também é bom cru sobre fatias de pão, branco de preferência, com manteiga, ovo quente ou coração de alcachofra. Junte à omelete, a ovos mexidos (1 ouriço para cada ovo), a molho rápido para macarrão. Pode-se ainda cozinhar no vapor por 5 min e misturar em salada. Molho: misture bem o conteúdo de 8 ouriços e um pouco de azeite. Junte a 1 xíc de molho holandês, mexa bem e sirva com peixes.

FICHA TÉCNICA
100 g de ouriço-do-mar cru contêm:
Calorias - 142
Proteínas - 16,3 g
Carboidratos - 1,4 g
Gordura - 7,9 g
Vit. B1 - 0,06 mg
Vit. B2 - 0,42 mg
Niacina - 6,1 mg
Vit. C - 5,7 mg
Cálcio - 59 mg
Ferro - 0,7 mg
Fósforo - 366 mg
Potássio - 221 mg


Texto: Celão