sexta-feira, setembro 30, 2005

Blog encontro com o Stijn

O blogueiro belga Stijn, de passagem por São Paulo, nos convida para um chopp:

Quem quiser vir:
Segunda, dia 3/10, às 8 e meia
é no balcão, onde rola uma das melhores hamburguesas da capital.
fica na melo alves com tietê.
Até lá!

BAR BALCÃO
Rua Dr. Mello Alves, 150
Tel.: (11) 3061-3781

Suspense

Vai aí a versão do "Love me or leave me" (Khan/Donaldson), que todos conhecem na voz de Billie Holiday. O título e o refrão são a subversão do slogan macartista plagiado pela nossa ditadura militar: "Brasil, ame-o ou deixe-o". A versão foi nomeada "Suspense" pelo autor, o Cali, que também a interpreta em simpática gravação caseira.
This suspense is killin' me
I can't stand uncertainty
Tell me now, I've got to know
Whether you want me to stay or go
Love me or leave me or let me be lonely
You won't believe me, I love you only
I'd rather be lonely
Then happy with somebody else
You might find the night time
The right time for kissin'
But night time is my time
For just reminiscin'
Regrettin' instead of forgettin' with somebody else
There'll be no one unless that someone is you
I intend to be independently blue
I want your love but I don't want to borrow
To have it today to give back tomorrow
For your love is my love
There's no love for nobody else

quarta-feira, setembro 28, 2005

Tarja preta

Vi ontem um documentário feito por estudantes da ECA, como trabalho da matéria, sobre o cartunista Lourenço Mutarelli. A história é incrível. Primeiro você fica sabendo que enquanto ele trabalhava no estúdio do Maurício de Souza, animando Mônica e Cebolinha, tomou um trote no seu aniversário preparado pelos colegas, que simularam um seqüestro. Ele foi vendado e amordaçado e ficou uma hora sofrendo ameaças de violência de toda espécie. Saiu destruído da experiência, ficou meses trancado no quarto, e paulatinamente, com ajuda de remédios, foi aos poucos se recuperando, e conseguindo devagar sair de casa e trabalhar. Depois, ele nos conta que seu pai, que era um policial linha dura, levou-o um dia para assistir a uma sessão de tortura, para completar sua formação: “como se transforma um inocente em culpado”. Outro trauma horroroso. E essas histórias autobiográficas são os temas de seus livros em quadrinhos. São entrevistados o Glauco Matoso, poeta e escritor, a irmã do Lourenço, sua mãe, sua mulher, seu editor de quadrinhos, e um ator que trabalhou na montagem de uma peça sua. É engraçado como a mãe só dá bola fora, não querendo ver quem ele realmente é, e a história estranha da família. Para o fim, se conta que ele, desde a morte do pai, não tem mais desenhado tanto. Segundo o Gonzales, do Níquel Náusea, é preguiça. Apenas escreve livros, peças e roteiros, com certo sucesso. O Mutarelli é um viciado confesso em psicotrópicos, que toma em grande quantidade e variedade, como condição de sobrevivência Só vendo.

terça-feira, setembro 27, 2005

I drove all night - versão

Tive que fugir, dessa cidade estúpida e cruel
Devia ter ligado antes mas estava louco pra chegar ao céu

Sonhava com você e tinha muito chão pra queimar
Uh-huh, yeah

Provar os seus beijos, seus braços abertos
A febre, o desejo queimando me deixou desperto

Rodei sem parar pra estar com você
A noite inteira na estrada
Rodei sem parar, me esgueirei no seu quarto
Velei o seu sono, só pra te amar
A noite inteira na estrada
Pra mim não foi nada

Nada protege o coração do amor fatal
Em qualquer lugar se ouve o som do seu ritmo de metal
Eu penso em você e a noite é escura e fria
Uh-hu, yeah

Ninguém me comove só você me liga
Nada separa esse amor que uniu nossas vidas

Rodei sem parar para estar com você
A noite inteira na estrada

Rodei sem parar, me esgueirei no seu quarto
Velei o seu sono, só pra te amar
A noite inteira na estrada
Pra mim não foi nada

Set list


I Drove All Night

Written by Billy Steinberg e Tom Kelly for Roy Orbison

I had to escape
The city was sticky and cruel
Maybe I should have called you first
But I was dying to get to you
I was dreaming while I drove
The long straight road ahead, uh, huh
Could taste your sweet kisses
Your arms open wide
This fever for you is just burning me up inside

I drove all night to get to you
Is that alright
I drove all night
Crept in your room
Woke you from your sleep
To make love to you
Is that alright
I drove all night

What in this world
Keep us from falling apart
No matter where I go I hear
The beating of our one heart
I think about you
When the night is cold and dark
No one can move me the way that you do
Nothing erases the feeling between me and you

Essa breguíssima melodia e seu ritmo galopante foi magistralmente cantada pelo Chico Xavier do rock, o Roy Orbison. Eu gosto tanto que fiz uma versão.

sábado, setembro 24, 2005

Set list

Desde que o samba é samba

Caetano Veloso

A tristeza é senhora,
Desde que o samba é samba é assim
A lágrima clara sobre a pele escura,
a noite e a chuva que cai lá fora
Solidão apavora, tudo demorando em ser tão ruim
Mas alguma coisa acontece, no quando agora em mim
Cantando eu mando a tristeza embora

O samba ainda vai nascer, O samba ainda não chegou
O samba não vai morrer, veja o dia ainda não raiou
O samba é o pai do prazer, o samba é o filho da dor
O grande poder transformador

Do Caetano eu gosto mais das músicas no formato canção de rádio. Essa é uma das boas. Não fosse o "no quando agora em mim" nem dava pra percerber que era dele. Tanto que o João Gilberto gravou.

Mas será o ..enedito?

e-néditos

Por Christiana Nóvoa

e-scritores • e-nspirados
e-nteligentes • e-modestos
e-mortais • e-minentes
e-mpossíveis
e-ndigestos
e-ndigentes • e-ndígenas • e-dílicos
e-maginários • e-ridescentes • e-luminados
e-lusionistas • e-lustrados • e-lustres • e-lógicos
e-nstáveis • e-nsólitos • e-ncógnitos
e-ndecifráveis • e-ncrencas • e-mbroglios
e-ndecentes • e-mplicantes • e-rônicos
e-conoclastas • e-morais • e-nocentes • e-núteis
e-ncríveis • e-mperdíveis • e-mpensáveis • e-nfláveis • e-mensos
e-mersos • e-mundos • e-fundos • e-tudo

e-néditos : edite-nos
(clique para saber quem somos e o que queremos)

quinta-feira, setembro 22, 2005

Como blogar anônimo

Vejam que interessante manual, que ensina, entre outras pérolas, como blogar anonimamente. Não é para cypherpunks.

Pinga

Ouça pinga gravada alguns anos atrás por amigos.

terça-feira, setembro 20, 2005

Carne Crua

Estava num pequeno grupo que foi à já lendária goma do A. num fim de noite para tomar uma saideira. Dias depois, um dos que estava lá disse ter me visto numa foto no blog Carne Crua. Eu nem sabia o que era blog. Para mim era só mais uma dessas palavras modernas que se um dia se tornasse necessária aprenderia o seu significado. Mas fui ao endereço ver a foto, percebi uma estrutura de diário compartilhado com espaço para comentários, e a possibilidade de ser ilustrado. Aliás, no caso do Carne Crua, muito bem ilustrado com excelentes fotos, especialmente as noturnas, narrando suculentas aventuras cotidianas. Depois, comecei a fuçar a lista de blogs linkados, e percebi adultos fazendo isso e me pareceu muito interessante. Uma comunicação em outro plano. No dia 19 de abril de 2005, uma data marcada de efemérides, lancei o meu, com o pseudônimo acidental Pecus Bilis.

domingo, setembro 18, 2005

Django em Bellevile



Acabei de ver “As Bicicletas de Bellevile”, a maravilhosa animação francesa. E logo na apresentação, aparece, com o bigodinho e o fraque de Amigo da Onça, o Django Reinhardt, o genial guitarrista cigano belga, e faz um solo com o seu fraseado característico, muito bem recriado pelo Bento que compôs a trilha. Incrível o detalhe dos dedos faltantes da mão esquerda, a que passeia alucinadamente pelo braço do instrumento com apenas dois dedos. E os toquinhos!!! Reza a lenda que Django utilizava os toquinhos, fielmente retratados no desenho, dos dedos perdidos num incêndio de carroça na sua infância. E aquela batida da música-tema “Rendez vous” é a típica do “Hot Club de France”, que na sua formação mais excitante eram três violões, contrabaixo e o violino de Stephanie Grappelli. A percussão é feita com as guitarras, num dançante sincopado em triplets, tercinas, termo musical que designa o grupo de três notas encaixado no espaço de duas. Justamente o nome do grupo das trigêmeas de Bellevile.

Quando eu era moleque costumava comprar uma revista estrangeira chamada “Guitar Player”, e lá, nas longas entrevistas com guitarristas de jazz, muitos citavam como referência o Django, descrevendo o uso de arpejos, cromatismos e escalas diminuntas na construção dos seus expressivos solos. E eu nunca tinha ouvido. Um noite fui ao cinema assistir “Corações Loucos”, para mim a primeira aparição do simpático Gerard Depardieu, um road movie em que ele e outro sujeito circulam pela França nunca seqüência de aventuras, ao som do Hot Club de France. Deduzi e confirmei nos créditos que se tratava do Django, apresentado a mim naquele divertidíssimo contexto.

A única coisa que consegui comprar aqui em São Paulo foi um livro com uma sintética biografia, e algumas transcrições de solos. Encomendei a alguém que foi à França um disco qualquer que encontrasse. Trouxeram-me um álbum triplo muito bom, com gravações das duas formações do Hot Club, a com clarineta e bateria, com a qual ele toca guitarra elétrica com um cativante timbre de alto falante de quermesse ou radinho de pilha. Mas o álbum conseguiu a proeza de não ter nenhuma música transcrita no livro, a não ser “Nuages”, uma espécie de prefixo dele que não é lá dos seus melhores números, na minha opinião. Consegui copiar uma fita cassete na fitoteca do Centro Cultural Vergueiro, que durou pouco tempo na minha mão, larguei em algum lugar. Hoje pode-se baixar possivelmente todas as suas gravações nesses programas (sites?) de circulação de coleções caseiras.

Há também o genial filme do Woody Allen, aquele com o Sean Penn que eu nunca lembro o nome, que interpreta um guitarrista, o segundo melhor do mundo, atrás apenas de Reinhardt, do qual ele está sempre a ouvir os discos. Nas duas vezes na vida em que se encontrou com ele desmaiou, exatamente como Freud e Jung depois do rompimento.

É sempre um prazer cruzar com o Django por aí.

sábado, setembro 17, 2005

A fuga

A noite estava perfeita para a fuga. Estava nublado e chuviscando, e a lua crescente quase cheia produzia uma luminescência difusa, que permitia a identificação das grandes silhuetas do relevo, mas dava alguma chance ao fujão de passar despercebido. Ao longo dos dez dias Pecus obteve uma longa tripa de porco fervida e lavada, com a qual preparou, juntando os poucos restos de comida que aqueles escravos esfaimados deixavam, uma espécie linguiça, misturando com as ervas que o Velho tinha preparado. Conseguiu montar um número bem maior do que o de cachorros, porque elas poderiam se perder no escuro, ou um deles engolir várias daquelas cápsulas em detrimento dos outros, e algum permanecer acordado.

Quando o batuque diário e depois o movimento dos trâmites sexuais sucessivamente cessaram, Pecus, com o coração na bôca, desmontou a grade de madeira que servia de ventilação daquele porão escuro e fétido, na qual vinha trabalhando há uma semana, e vislumbrou, no terreiro de terra batida, claro devido à lua, o vulto negro e assustador dos grandes cães de fila. Um escravo dentro da senzala não provocava nenhuma reação nos animais, que entendiam estar o seu território preservado. Pecus estendeu o braço para fora com a bola, e balançou-o, ao mesmo tempo em que emitia um baixo assobio cheio de ar. Os cães assumiram atitude de ataque e partiram decididamente para o braço de Pecus, que soltou a bola e o recolheu. Um dos cães chegou a enfiar a cabeça na janelinha, forçando o escravo a recuar. Mas distinguiu nitidamente o ruído da bola sendo deglutida. Depois que o cachorrão desobstruiu a vista, Pecus, aproveitando que os animais estava por ali, foi jogando, uma a uma, as bolas. Esperava ruído da deglutição de uma, para mandar a outra. O pitéu caíra no gosto dos caninos, e rapidamente toda a tripa foi consumida.

Pecus esperou uma meia hora, talvez, tentando perceber o estado dos cães, mas não ouvia nada. Esperou o máximo que agüentou, até que esgueirou-se pela janelinha e foi-se. Não havia mais nenhum cachorro por lá. Escalou o grande muro de pedra que circundava o terreno e ganhou o pasto. Arriscando-se a tropeçar em um toco, ou cair num buraco, saiu trotando cautelosamente, pois sabia que o seu tempo era limitado. A rota de fuga era uma só e sempre a mesma. Atravessava o pasto, cercado com um desagradável cerca de lascas de pau trançado, o cafezal, daí uma pequena mata, até atingir o grande rio, num ponto que estava a uns trinta quilômetros do mar. Mergulhando no rio, que naquela época do ano tinha uma velocidade de mais ou menos 4 quilômetros por hora, em mais ou menos sete horas e meia descendo com a corrente chegaria na costa. Os capitães-do-mato sabiam que era muito difícil capturar um escravo no rio. A noite ficava-se quase invisível, boiando com praticamente só as narinas para fora, e os cães não conseguiam seguir o seu rastro.

Foi o que Pecus fez sem nenhuma dificuldade outra que não as esperadas. Tropeços e arranhões, mas nada que tivesse que interromper a sua marcha. A água do rio estava gelada, e as longas horas mantendo-se à tona na correnteza iriam acabar com ele. Começou a nadar à moda dos sapos, movimentando-se lentamente, para tentar manter-se aquecido pelo pequeno esforço, que deveria durar a noite inteira. Mas estava bem preparado, e tinha calculado mentalmente todo o trajeto. Seu plano corria maravilhosamente bem, e o sabor da liberdade era delicioso. Evitava pensar no quanto apanharia se fosse pego. O fato é que absorto em sonhos de praias quentes e ensolaradas e sereias, Pecus deslizou a pela grande baixada a noite inteira, e a luz da aurora o pegou ainda um pouco distante da costa, mas ele achou mais prudente sair do rio e se embrenhar na mata, antes que pudesse ser visto.

Perdeu mais uns quinze minutos andando na penumbra da mata cerrada até ficar seco e seguro, subiu numa árvore que tinha uma grande forquilha, e adormeceu por quatro horas. Teria que andar dois dias por matas, mangues e restingas, circundar uma aldeia tupinambá que havia no caminho, para chegar ao local do encontro marcado sem nenhuma segurança da mera possibilidade da sua efetiva ocorrência, na praia com a sereia, no auge da lua cheia.

Encontrei ontem com o blogueiro belga Stijn, de passagem por São Paulo. Tínhamos apostado um almoço se ele descobriria minha verdadeira identidade. Ele não conseguiu. Criou um blog para cruzar as informações esparsas sobre mim, o que me incomodou bastante, e ele acabou tirando o blog do ar, a meu pedido. Consideramos que a gentileza cerceou suas chances, e rachamos a conta do Acrópolis, o grego do Bom Retiro, onde comemos o excelente polvo. Depois demos uma volta pelo Museu de Arte Sacra, talvez o único prédio de porte do século XVIII ainda em pé em São Paulo, e apreciamos aquela arte primitiva e tocante, o barroco das colônias executado principalmente por índios e negros. Vimos a disciplina do Frei Galvão, idealizador, projetista e construtor do mosteiro, onde instalou uma ordem enclausurada para uma freirinha mocinha que ele muito admirava, e que se flagelava em intensidade acima da média do mercado, o que ele tomou como indicativo de uma grande vocação. O frade franciscano moveu mundos e fundos para a obra pia, na contra corrente do combate às ordens do Marquês de Pombal, que há pouco banira os jesuítas, onde Galvão começou sua carreira de beato milagreiro. Vejo algo de sobrenatural no fato de prédio ainda estar de pé.

sexta-feira, setembro 16, 2005

Set list

Pinga

Enquanto a roça não vinga
A gente toma muita pinga
E sai pra pescar
E não choraminga

Enquanto o peixe não vem
A gente toma pinga também
E dá um mergulho
E solta mais linha

Enquanto o jantar não cozinha
A gente toma outra branquinha
Carrega a pimenta
Que a pinga sustenta

E se a patroa reclama
Serve a ela outra cana
E põe pra dormir
Que amanhã tem mais

Um dia, como outro qualquer
Um dia igual, se deus quiser

quarta-feira, setembro 14, 2005

Checando o material

- Rico é quem gasta menos do que ganha.
- Há felicidade na favela?
- Sim, é claro. Negócio e baile funk tem todo dia.
- Tem gente que só olha para o que não tem e fica triste.
- Outros lembram do que têm e agradecem.
- Sócrates disse: Fui ao shopping e fiquei surpreso de ver quanta coisa eu não precisava.
- O cartão de crédito escraviza.
- A vida é curta. Quem tem perde.
- O que você realmente precisa?
- Muito.
- Muito o que?
- O Oceano e uma sereia.
- Ambicioso.
- Mas que valores carrega?
- O corpo e a alma.
- E o coração?
- Em perfeito estado. VOmax elevado.
- Rins e figo?
- Um pouco baleados mas ainda originais. Senão esforçar muito, mais cinqüenta mil quilômetros sem abrir.
- O mistério?
- Em outra freqüência, mas vibrando bem.
- A moringa?
- Oca, como sempre. Clara e arejada.
- Que mais?
- Só o de comer. Mais nada.
- Está contratado. Pode começar.
- Folgas?

terça-feira, setembro 13, 2005

Grande diversão

Depois de dois dias passeando por Angra e Ilha Grande movidos a motor, ao sairmos da Enseada do Abraão por volta das dez horas da manhã, pegamos um consistente vento do quadrante sul. Havia previsão da chegada de uma frente fria, mas o dia estava lindo e finalmente velejávamos a todo pano. Quando começamos a contornar a ponta oeste da Ilha, o vento refrescou. O vento, agora de través, movimentava o barco adernado à toda velocidade, e o skipper empolgado vigiava o desempenho no gps. O anemômetro indicava a velocidade do vento algo em torno de 14. Achávamos que eram nós, milhas náuticas, depois descobrimos que eram metros por segundo, o que dá mais ou menos o dobro em nós. As crianças começaram a ficar assustadas. Percebemos que vários barcos já voltavam do lado de fora da ilha, para se abrigar do lado protegido. Mas como a velejada estava boa e não parecia haver nenhum risco, mantivemos nosso curso para o lado do oceano.

Ao darmos um bordo a imensa genoa que deveria passar para o outro lado do barco, enganchou-se lá em cima no mastro, formando um balão travado pela força do vento. Tínhamos perdido a hora certa de reduzir o pano. Com a vela presa lá em cima, o barco não mais podia ser posto contra o vento. Pego de través, o barco começou a se inclinar, e foi adernando até deitar completamente na água. O vento nessa hora chegava a uns 40 nós. Toda a tripulação, no cockpit, pendurou-se noguarda-corpo, enquanto o skipper lutava com o leme para tentar por a embarcação no prumo. Mas o vento equilibrou o barco adernado, e ficamos nessa posição um minuto, ou dois, que pareceram uma eternidade. De repente, o barco se aprumou e saímos em desabalada carreira com vento em popa, única direção que podíamos seguir com a genoa presa no mastro.

A situação não era nada boa. O barco estava todo revirado, e um pouco de água entrara pela gaiuta do banheiro traseiro. O material humano, além do skipper não tão experiente, era mais um homem adulto pouco marinheiro, duas mulheres nada marinheiras, e três crianças, entre 13 e 10 anos, apavoradas. O barco não podia ser manobrado. A pressão na vela grande era enorme, e não conseguíamos abaixá-la. A genoa continuava enganchada lá em cima. Só conseguimos enrolar sua parte de baixo, que não resolveu nada. Fomos arrastados pelo vento cada vez mais forte em direção ao Rio, e em vez de irmos nos proteger no meio do oceano, teoricamente o mais seguro a fazer, pensamos em nos abrigar na Enseada de Mangaratiba, que nos pareceu possível de atingir.

As nuvens negras da tempestade já estavam próximas de nós, e o vento só fazia aumentar, e as ondas a crescer. Não conseguimos entrar em Mangaratiba, e fomos tentar abrigo ao lado de um grande molhe de pedra num porto de minério que há um pouco depois. O plano era simples: quando estivéssemos ao lado do molhe, um pouco protegidos do vento, ligaríamos o motor, poríamos o barco de proa para o vento e ancoraríamos, para desembarcar as crianças e baixar as velas. Ao nos aproximarmos do molhe, dois barcos, um do porto e outro de pesca vieram nos ajudar. Tentamos ligar o motor, mas o cabo da genoa havia enrolado no hélice. Jogamos a âncora, que não segurou o barco. Estávamos em rota de colisão, a uns 20 metros das pedras, quando o barco de pesca nos jogou um cabo que amarramos na popa. O pesqueiro puxou o barco pela popa, e conseguiu inverter a posição, e a embarcação passou a se afastar do molhe.

Ele nos emprestou mais uma âncora, que também não segurou o barco, mas reduziu sua velocidade. Um marinheiro veio a bordo e nos ajudou a baixar a vela mestra, agora com a pressão abrandada pela posição do barco, e tivemos que destruir a genoa para tirá-la. Uma lancha vinda da vila ao lado do porto apareceu e levou as mulheres e as crianças para terra. O barco sem velas ainda era arrastado, mas devagar. O marinheiro mergulhou em baixo do barco com uma máscara e uma faca, e conseguiu, depois de uns 20 minutos, soltar o cabo que prendia o motor, a despeito das ondas mais ou menos grandes, que faziam o barco oscilar assustadoramente. O zumbido do vento nos cabos e estais era impressionante.

Mulheres e crianças desembarcadas, o motor livre, eu e o skipper nos despedimos do bravo marinheiro, e o nosso plano era pernoitar no Iate Clube de Itacuruçá, alguns quilômetros adiante. Lutamos uns quarenta minutos para recolhermos as duas âncoras, tarefa dura devido ao mar agitado, e a dificuldade de manter os cabos e correntes no trilho correto do guincho, o que obrigava a constantes manobras de ré. As ondas passavam por cima da proa, e a oscilação total do bico, onde eu estava sentado, devia ser de uns dois metros. Finalmente fomos a motor para Itacuruçá, e o vento sempre forte, com chuva, mas a situação estava sob controle.

No canal da entrada da ilha não havia ondas, mas parecia que o vento se acelerava. Já estava quase escuro quando passamos ao largo do clube. Depois de algumas tentativas conseguimos falar com alguém, que nos orientou a buscar uma poita no centro de um “u” entre dois cais. O vento estava tão forte, que desviava a proa do barco ora de um lado, ora de outro, e não conseguíamos pescar a poita com o croque. Entregamos o inflável a dois marinheiros do clube, que foram remando até a poita para nos ajudar. Joguei o cabo dentro do inflável, mas o barco foi jogado pelo vento para cima do inflável, e eles deixaram o cabo cair na água. Em poucos segundos o motor travou novamente. O cabo enrolou de novo no hélice. O barco ficou à deriva, empurrado pelo vento em direção ao cais. A proa ia bater de lado no pontão de concreto. Três sujeitos apareceram lá, e com o braço, impediram a colisão. Com a manobra, a popa começou a se alinhar com a testa do pontão, e eu peguei o último cabo que achei, mandei a eles que conseguiram amarrar o barco no último momento, antes que ele continuasse à deriva e fosse fazer um “strike” nos barcos ancorados no pontão que havia em seguida. Foi a segunda vez que quase perdemos o barco.

segunda-feira, setembro 12, 2005

Afinidades eletivas

- Notamos primeiramente que todos os seres da natureza, perceptíveis para nós, mantêm uma relação recíproca. Com certeza, soa estranho quando se expressa algo que já é óbvio; contudo, somente após compreendermos completamente o conhecido, é que podemos avançar em direção ao desconhecido.
...
- Permitam que me antecipe – disse Charlotte – para ver se entendo aonde querem chegar. Como tudo se relaciona entre si, essas relações também devem valer frente aos outros.
- E isso será diferente segundo a diversidade dos seres – completou Eduard. – Ora agirão como amigos ou velhos conhecidos que rapidamente se reúnem, se juntam, sem modificarem um ao outro, tal como o vinho ao se misturar com a água; ora, ao contrário, permanecerão absolutamente estranhos um ao outro, sem se unirem, mesmo através de fricções ou misturas mecânicas; tal como o óleo e a água, que logo depois de sacolejados juntos voltam a se separar.
...
- Contudo – replicou Eduard -, tal como esses grupos que se agregam por meio de costumes e leis, há também, em nosso mundo químico, elementos para juntar aquilo que se repele mutuamente.
- Assim juntamos, interveio o Capitão – o óleo com a água por meio de um álcali.
- Não vá tão depressa com o seu relato! – disse Charlotte – para que eu demonstre que consigo acompanhá-lo. Já não chegamos aqui às afinidades?
- Correto; - respondeu o Capitão – e logo iremos conhecê-las em toda a sua força e determinação. Àquelas naturezas que, ao se encontrarem, se ligam de imediato, determinando-se mutuamente, chamamos “afins”. Nos álcalis e ácidos essa afinidade é bastante evidente; embora sejam opostos e talvez justamente por isso, procuram-se e se agregam de maneira mais decidida, modificando-se e formando juntos um novo corpo. Pensemos somente na cal, que manifesta uma grande atração por todos os ácidos, um impulso imperativo para a união!
...
- Deixe-me confessar-lhe – disse Charlotte – que, se o senhor chama a essas substâncias estranhas de afins, elas não parecem então possuir uma afinidade sangüínea, mas sim espiritual e anímica. É justamente dessa forma que podem surgir entre as pessoas amizades verdadeiramente significativas, pois características opostas tornam possível uma união íntima.
...
- Já que nos incitou uma vez – replicou Eduard -, não se livrará assim tão facilmente, pois os casos complicados são de fato os mais interessantes. Somente por meio deles é que se conhecem os graus de afinidades, os relacionamentos mais próximos, mais fortes, mais distantes e mais insignificantes; as afinidades se tornam interessantes apenas quando produzem separações.
...
- Vamos prosseguir então – disse o Capitão – o que já referimos e denominamos anteriormente. Por exemplo: o que chamamos de pedra-cal não passa de terra calcárea mais ou menos pura, estreitamente unida a um ácido tênue que ficou conhecido para nós como gaseiforme. Se colocarmos um pedaço dessa pedra em ácido sulfúrico diluído, este se juntará à cal, ganhando com ela a forma de gesso; aquele ácido tênue, etéreo, por sua vez, se evaporará. Aqui ocorreu uma desagregação e uma nova combinação, o que nos autoriza a aplicar a expressão “afinidade eletiva”, pois realmente parece que se preferiu uma relação e não outra, que se elegeu uma em detrimento de outra.
...
- Se não estiver enganado – disse Eduard sorrindo (para Charlotte) – , há um pouco de malícia por trás de suas palavras. Confesse sua traquinice. Em última análise, sou, aos seus olhos, a cal que o Capitão, como ácido sulfúrico, apanhou e afastou de sua agradável companhia, transformando-me em gesso refratário.
- Se a sua consciência – replicou Charlotte – sugere-lhe tais conclusões, eu posso então ficar tranqüila. Essas alegorias são graciosas e divertidas, e quem não gosta de brincar com as semelhanças? Entretanto o ser humano está muitos degraus acima de tais elementos e, se nesse caso tem sido tão liberal com essas belas palavras “escolha” e “afinidades eletivas”, ele fará bem em voltar-se para si mesmo e desse modo refletir bem sobre o valor dessas expressões. Infelizmente conheço muitos casos em que a união íntima e aparentemente indissolúvel de dois seres foi desfeita pela junção ocasional de um terceiro, lançando num imenso vazio um dos membros de tão bela união.
- Nesse caso, os químicos são muito mais galantes; - disse Eduard – eles agregam um quarto elemento para que nenhum fique imune.
- Mas claro! Exclamou o Capitão – esses casos são, sem dúvida, os mais significativos e curiosos; através deles pode-se realmente demonstrar a atração, a afinidade, esse abandono e essa junção entrecruzando-se; neles vêem-se os quatro seres, unido até então dois a dois, que, entrando em contato, abandonam a sua união anterior e formam novas . Nesse ato de largar e prender, nessa fuga e nessa busca, julgamos ver realmente uma determinação mais elevada; atribuímos a esses seres uma espécie de vontade e preferência, e assim consideramos plenamente justificado o termo técnico “afinidades eletivas”.

(Tradução de Erlon José Paschoal)

Transcrevi o mínimo para tornar compreensível a metáfora química que Goethe aplicou às relações humanas. Montou um quarteto – Ottilie está para chegar - que as forças eletivas fazem rearranjar, todos envolvidos em implementar melhoramentos em uma propriedade rural. Iluminista, positivista, a fé no esquadro e no compasso dos maçons. Procurei muito isso no Google, para comentar o post quadricrômico do Dudi sobre o tema, mas não encontrei. Copiei na unha, como um monge, da minha edição “Nova Alexandria” 1993, para compartilhar. O comentário da Lúcia Carvalho foi assim:

olha!
casamentos!
olha!
oh, não!
traições!

sábado, setembro 10, 2005

As cidades invisíveis

Estava folheando (e-books, aprendam) os “Cidades Invisíveis”, do cubano Italo Calvino (não se percam pelo nome como eu) e me surpreendi, primeiro, de ter sido feita a tradução por Diogo Mainardi, antes de se transformar no colunista iconoclasta daquela revista. A situação é semelhante à das mil e uma noites. Marco Polo tem que entreter o Khan, e começa a descrever as cidades maravilhosas por onde teria passado. Na contra-capa há uma declaração do Calvino dizendo esse livro é o que melhor transmite a sua visão de mundo, suas reflexões mais profundas. As cidades têm nomes de mulheres. Espocou-me a idéia, talvez um pouco óbvia, de que Marco Polo construía suas cidades invisíveis sobre as lembranças das mulheres que tivera. E é claro que o intrépido explorador haveria experimentado muitas. A descrição de cada cidade seria assim uma cantada enviesada e metafórica, um monumento erigido a cada mulher que o próprio Italo Calvino teve, ou desejou de forma mais dedicada. Como aquelas músicas que têm nome de mulher e se um dia foram feitas para uma mulher específica, ganharam vida própria e passaram a ser mulheres invisíveis, onde projetamos as nossas cantadas.

sexta-feira, setembro 09, 2005

Set list

Between the bars (ouça aqui com o autor)

Elliott Simth

drink up, baby,
stay up all night
the things you could do,
you won't but you might
the potential you'll be,
that you'll never see
the promises you'll only make
drink up with me now
and forget all about
the pressure of days
do what I say
and I'll make you okay
and drive them away
the images stuck in your head

people you've been before
that you don't want around anymore
that push and shove and won't bend to your will
I'll keep them still

drink up, baby,
look at the stars
I'll kiss you again
between the bars
where I'm seeing you there
with your hands in the air,
waiting to finally be caught
drink up one more time
and I'll make you mine
keep you apart
deep in my heart
separate from the rest
where I like you the best
and keep the things you forgot

Já estou dominando a valsinha

Na versão de Madeleine Peyroux

quinta-feira, setembro 08, 2005

A missão

Pecus à noite uivava de dor nas costas e anseios dos mistérios da sereia. Entoava longos lamentos em banto, falando do mar, das ondas, da liberdade e da sereia. De dia, ao fazer mecanicamente o seu trabalho se punha numa espécie de transe, e zumbizava divagando histórias explicando o estado da sereia, a sua origem e a solução. Sempre sob a vigilância dos cães. À noite os cães circulavam a senzala e ao menor movimento latiam e se tivessem qualquer oportunidade atacavam. Em matilha e com muita violência. Precisaria envenená-los. Foi falar com o velho que fazia as poções. Ele ponderou que era a enésima vez que Pecus fugia, era capturado e apanhava.

- Não tem jeito. Agora eu tenho uma missão.
- Você tá é enfeitiçado.
- É, preciso desvendar esse mistério.
- Deixa esse mistério em paz, ô rapaz..
- Vou fazer só uma tentativa. Se não der, aceito a escravidão.
- Demora uns três dias. Tenho que catar um monte de ervas diferentes.
- Faça na noite que entrar a lua cheia. Assim se ficar só um pouco solto, vai ser na hora certa.
- Fugir na lua cheia é bobagem.

Faltavam dez dias para a lua cheia. Pecus tratou de se alimentar bem, fazia seus alongamentos com cuidado antes e depois da sessão de enxada, e procurava descansar o máximo possível, se guardando da gandaia. O tempo era suficiente para que ele se recuperasse bem. E a imagem que ia se definindo cada vez melhor na sua mente, dele com a sereia ao luar na praia deserta, era a liberdade em concreto. Um homem com uma missão.

quarta-feira, setembro 07, 2005

Uma generalização

Todos conhecem a “Dor elegante” de Paulo Leminski, musicada por Itamar Assunção. Deve ser um dos mais repetidos pelos blogs lusógrafos. É simples e fascinante, como tudo que ele fez. Tinha o dom de mostrar as grandes obviedades como se fosse a primeira vez que as vemos, fazendo-nos vivenciá-las como pequenas iluminações budistas, os hai-kais tanto ao seu gosto. Todos temos as nossas dores, em sentido amplo, incluindo rancores, frustrações, decepções, perdas, um enorme repertório de nomes para defini-las com razoável precisão. Normalmente não dores tão grandes que nos propiciem um andar mais elegante, mas o suficiente para dar a cor e o sabor da personalidade. Se não somos feitos das dores, elas têm uma grande participação na composição da nossa estrutura. Não gostamos de falar delas. Muitas vezes não queremos nem admiti-las para nós mesmos. Mas como os filósofos, artistas e cientistas há muito tempo descobriram as dores são as chaves das portas do mundo interior das pessoas. Se queremos conhecer alguém mesmo, temos que conhecer suas dores. Não adianta pesquisar, ler, entrevistar, torturar, medir, pesar, vigiar, estudar, se não conseguimos identificar suas dores. Só aí compreendemos o seu andar.

terça-feira, setembro 06, 2005

Vera Lynn



We'll Meet Again (ouça)

We'll meet again,
Don't know where,
Don't know when,
But I know
We'll meet again
Some sunny day.

Keep smiling through
Just like you
Always do
Till the blue skies
Drive the dark clouds
Far away.

So will you please
Say hello
To the folks
That I know
Tell them,
I won't be long.

They'll be happy to know
That as you saw me go
I was singing this song.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Estou farto de Pecus - Rascunhos de canções - As melodias são piores ainda

SHEILA LEIRNER AVISOU:

MARTE ATACA PECUS!




Vou conseguir parar de falar bobagem
Vou conseguir ficar com a boca fechada
Vou conseguir me concentrar em coisas produtivas

O soldado antes da batalha sente-se como Jesus no horto das oliveiras antes da última ceia
Medo muito medo muito medo de morrer
Ou de ficar ferido
E ficar com seqüela
E não mais poder
Ficar com ela

Eu fiquei no tempo
No sol, no vento, na chuva, na friagem, no granizo
Eu fiquei no tempo
Como uma árvore crescendo devagar

Você olha e não diz nada
Quando passa apressada na hora do almoço
Indo alimentar o bebê
Acho que você está certa
Acho que você tem razão
O silêncio é o que nos completa
O silêncio é a solução
E eu vou continuar falando com as paredes

Estou preso numa teia de emoções baratas
Estou preso num labirinto de lembranças inventadas
E cada caminho se reparte em dois
E cada caminho se reparte em dois
E eu escolho sempre o caminho errado
E cada lembrança já está gravada
Não pode mais ser apagada
Da pedra da minha tumba

Seja o que deus quiser

Hoje morreu uma amiga querida

Epitáfio da navegadora

Se te perguntarem quem era
essa que às areias e gelos
quis ensinar a primavera;
e que perdeu seus olhos pelos
mares sem deuses desta vida,
sabendo que, de assim perdê-los,
ficaria também perdida;
e que em algas e espumas presa
deixou sua alma agradecida;
essa que sofreu de beleza
e nunca desejou mais nada;
que nunca teve uma surpresa
em sua face iluminada,
dize: "Eu não pude conhecê-la,
sua história está mal contada,
mas seu nome, de barca e estrela,
foi: "SERENA DESESPERADA".

Cecília Meireles

domingo, setembro 04, 2005

Escravo novamente

Pecus terminou de introduzir seus desenhos na garrafa de pinga, e estava arrolhando firmemente o frasco, quando ouviu atrás de si o grunhido roufenho e grave que já conhecia. Saiu correndo à toda velocidade imediatamente em direção ao mar, e mal teve tempo de arremessar a garrafa o mais longe que pôde, quando o peso de um cavalo arrojou-se nas suas costas, derrubando-o na areia. Ao mesmo tempo sentiu no antebraço direito a mordida perfurante, travada como uma ferramenta de mecânica pesada, e entendeu tudo. Tinha sido pêgo, e sabia muito bem por quem. Era o Tonho, aquele filha-da-puta daquele escravo vendido, capitão-de-mato do seu senhor, que com os seus enormes cães-de-fila, de pelagem suja de pardo e preto tigrado, tinha ganho mais uma. “Perdeu, seu Pecus. Te peguei de novo”. Pecus resolveu que ia dar o mínimo de satisfação àquele bosta e não disse nada. Era difícil lidar com aquela questão profissionalmente. Logo foi acorrentado por um bugre que auxiliava Tonho, e posto para andar ao estalar do chicote, que o caçador de escravos manejava com maestria, fazendo-o soar em alto e bom som.

Pecus sabia o que o esperava, e não ficou desesperado. A vida na senzala não era tão ruim assim. O problema era a surra e o tronco que enfrentaria, antes de voltar ao trabalho. A única maneira de assimilar tal grau de intensidade exigido pelo patrão, era encarar aquilo como uma aspiração própria. O trabalho na roça como um trabalho atlético, procurando a posição mais ergonômica de manejar o instrumento, e cumprir sua tarefa lentamente, como todo trabalho de resistência, mas de forma ritmada e eficiente. Dava gosto de ver os grandes taliões de café bem carpidos, embora lhe parecesse de forma evidente que o sentido das linhas da plantação era errado, pois acelerava a lavagem da terra pela enxurrada, formando rapidamente grandes vossorocas. A comida era boa e abundante. O fubá, a farinha de mandioca, e as vísceras e carnes das piores partes dos porcos e bois, bem preparados ficavam ótimos, e eram complementados por especiarias e pimentas que cultivavam, e ainda verduras e frutas que vicejavam em grande quantidade.

Toda noite tinha baile, como eles chamavam aquela batucada com tambores improvisados, palmas das mãos, e principalmente a voz, e os temas variavam desde a chatice do trabalho às questões amorosas, sempre com um afirmação da superioridade espiritual sobre o patrão. Dançavam bastante no escuro. Eram sexualmente livres, pois seus filhos também seriam parte do patrimônio do patrão que por isso incentivava a reprodução, e as preferências se ajeitavam naturalmente como em qualquer comunidade. As vezes os homens da casa-grande baixavam lá, e eram sempre muito disputados pelas mulheres de baixa auto-estima, porque sempre pagavam de algum jeito.

Pecus tomou sua surra, e Tonho se orgulhava de desenhar faixas idênticas e equidistantes por todo o dorso do supliciado. Depois ficou dois dias no tronco, sendo alimentado uma vez por dia, apenas uma tigela de angu aguado. Uma noite de ungüento e descanso, e no dia seguinte já foi trabalhar. Mas só pensava como faria para estar na próxima lua cheia na praia deserta que indicara à sereia.

sábado, setembro 03, 2005

Hablas español?

Pecus dava tratos à bola de como encaminharia sua parada, tomando uma cachaça branca embaixo de umas amendoeiras à beira mar. A única idéia que veio à sua mente, que lhe pareceu um tanto improvável e irracional, foi a de mandar à sereia uma mensagem na garrafa. Ela parecia saber sempre onde ele estava, então ele achou que se ele chegasse cedo ao local onde costumavam se encontrar, isto é, se ver à distância, e ficasse de tempos em tempos jogando a garrafa com a mensagem para cima, girando-a, chamaria sua atenção e a faria pegar a mensagem. Talvez desse certo. O segundo problema era a mensagem. Será que aquele ser silencioso, aquela criatura marinha, meio gente, meio peixe, pensava como gente ou pensava como bicho? Tinha ouvido falar em algum lugar que as sereias eram gregas de origem. Falariam grego? Grego antigo? Achou melhor usar uma linguagem não verbal. Desenharia um mapa, designando um local de encontro, uma ilha ou uma praia deserta. E uma lua cheia, para marcar o dia. Será que ela conseguiria ler a mensagem? Para ler um mapa, é necessário decifrar a convenção da planta baixa. A vista aérea! Desenharia aves voando, de forma a dar a entender que aquele era o ponto de vista das aves. Será que ela, que vive nas profundezas, conseguiria transpor seu ponto de vista para o céu? Bom, na falta de coisa melhor, estava decidido. O terceiro problema, eram os motivos do encontro. Se ela fugia dele sempre que ele tentava se aproximar, porque iria? Apenas para satisfazer alguma curiosidade dele? Por outro lado, alguma coisa ela queria dele também, senão não o teria salvado de forma tão espetacular, nem ficaria mantendo aquele contato silencioso à distância. Mas o que ela quereria dele? Talvez que ele a libertasse de algum feitiço maligno que a transformara naquele estado plural, uma verdadeira cisão da personalidade num sentido mais profundo, a ser superado. Tudo o que Pecus imaginou para comunicar à enigmática nereida foi uma mensagem amigável. Desenhou, além do mapa com a referência das aves, ele e ela com enormes e exagerados sorrisos, na praia, sob a lua cheia, caracterizando-a com cintilantes e cafonas reflexos sobre a água do mar. Mas pareceu-lhe claro. Achou que um bom presente era uma prancha de bodyboard. Com aquelas nadadeiras e a intimidade com o meio, ela iria arrepiar.

quinta-feira, setembro 01, 2005

Ariel?

Bem, como Pecus safou-se já será contado. O fato é que agora circulava numa linda praia de um populoso balneário, maravilhado com as mulheres seminuas dourando lentamente ao sol. De vez em quando uma ou duas mergulhavam por cima das ondinhas para refrigeração da chapa quente, exibindo suas bundinhas redondas e tostadas, emolduradas por minúsculus biquinis de cores berrantes. Lembrou do cabalístico Zohar, verberando que “Lilit, a rainha dos demônios, ou os demônios do seu séquito, fazem tudo para levar os homens a atos sexuais dos quais não participa a mulher, com o objetivo de produzirem para si corpos do sêmem disperdiçado”*, e achou que isso era uma grande lorota, um tabu moralista e assustador, mas que fazia algum sentido na presença daquelas lindas mulheres.

Sua demanda não era essa. Pecus tinha que descobrir porque a pequena sereia que o salvara daquele penedo perdido no Oceano não falava. De quando em quando via sua cabeleira de bronze azinhavrado despontar na linha da arrebentação. Olhava para ele, constatava que ele a procurava e a via e tornava a desaparecer. Será que um demônio do séquito de Lilit tinha-lhe roubado a voz, para tranquilamente e em silêncio desmontar seu corpo e com ele produzir outros capetas? Ou seria ela um súcubo envolvendo-o num artifício para roubar-lhe o sêmem? Beliscou-se para ver se ainda estava vivo, e tudo aquilo estava mesmo acontecendo. Não chegara a ver se ela tinha cauda ou pernas, durante o salvamento, mas que era um peixão isso era. Sentiu que sua pele era lubrificada, como a de quem acabou de se untar em protetor solar e entrou na água, e teve que se agarrar nos seus cabelos para não cair da grande baleia que cavalgaram, o que não conseguiram evitar algumas vezes ao atravessar algumas ondas maiores. Estava escuro porém o grande cetáceo percebia imediatamente a perda dos cavaleiros e voltava para os pegar.

Pecus deu tratos à bola sobre o que faria para resolver a questão que o angustiava, e optou por alugar uma prancha de surfe e tentar um contato com a sereia para lá da arrebentação. Era um longboard azul-celeste, não calcinha, com duas bonitas faixas cor de laranja destacando as longarinas laterais, e com ele Pecus rapidamente chegou lá fora. Sentou-se e enquanto a corrente lentamente o arrastava para longe dos demais surfistas esperou. Nâo demorou muito e viu, a uns quinze metros de onde estava, boiar o topo de sua cabeça levemente acobreada, e somente seus olhos muito azuis para fora d’água. Pecus espetou a prancha n’água para dar o impulso inicial e saiu remando em sua direção. Tentou chamá-la, mas não soube dizer-lhe o nome e ela rapidamente desapareceu. Esperou e a procurou por uma hora e nada. No dia seguinte voltou à mesma hora, e a cena se repetiu. E assim durante toda a semana. Nâo conseguiu dela se aproximar nenhuma vez mais perto do que oito metros.

*A Cabala e seu Simbolismo, G.G. Scholem.

Muddy Water


(by P. DeRose / Harry Richman / Jo Trent )
Gravada por Bessie Smith em 2 de março de 1927 e
por Madeleine Peyroux em 1999 - Dreamland

Dixie moonlight, Swanee shore
Headed homebound just once more
To my Mississippi delta home
Southland got that grand garden spot
Although you believe or not
I hear those breeze a-whispering
"Come on back to me"
Muddy water 'round my feet
Muddy water in the street
No God don't shelter
Down on the delta
Muddy water in my shoes
Reeling and rocking to them lowdown blues
They live in ease and comfort down there
I do declare
Been away a year today
To wander and roam
I don't care it's muddy there
But this is my home
Got my toes turned Dixie way
'Round the delta let me lay
My heart cries out for muddy water
Been away a year today
To wander and roam
I don't care it's muddy there
But this is my home
Got my toes turned Dixie way
'Round the delta let me lay
My heart cries out for muddy water


Força à turma do Delta!