Depois do vexame das mensagens desconexas sem resposta, Renato decidiu por a viola no saco e cuidar da sua vida. Superada a aventura farmacológica retomou o ritmo normal do seu trabalho. Concluíram o acordo com os controladores da mineradora, e receberam aquele dinheiro todo que estavam esperando. Trataram de liquidar a ex-corretora, antes que alguém viesse reclamar alguma coisa, e repartiram o butim, cindindo a sociedade em várias outras, uma de cada um dos antigos sócios. A Renato coube além do apartamento onde morava, e os carros que usava, uma boa bolada em dinheiro vivo. Ao contrário do que Fernanda e sua mãe pensavam, Renato nunca cogitou de escamotear do casamento qualquer parcela do que tinha, e verteu tudo o que recebeu numa sociedade com Fernanda em partes iguais. Aplicou todo o dinheiro em fundos de renda variável geridos por um conhecido seu, com os ativos custodiados em bancos, com a condição de que pudesse acompanhar as variações da composição dos fundos on-line. Estimava que se não comesse o capital tinha condições de ter uma renda muito próxima daquela que tinha trabalhando. Se fosse econômico e tivesse um pouco de sorte poderia até fazer crescer o que tinha. Com a ex-corretora fechada, não tinha nenhuma perspectiva profissional imediata.
As férias escolares de Renatinho estavam para começar e resolveram alugar uma casa na praia, para lamberem as feridas e tentarem reconstituir o casamento. Nunca tinham conversado sobre os estragos feitos de parte à parte, que nunca ficaram claros um para o outro, ainda que os dois intuíssem as conspirações e crimes cometidos por ambos. Fernanda queria a Baleia, em São Sebastião, aonde “todo mundo ia”. Renato acabou fechando uma casa na Praia Dura, em Ubatuba, onde certamente ficariam mais isolados, e poderiam se concentrar em ser uma família normal. E era um pouco mais barato. Renato compensou a diferença de preço exigindo que na casa tivesse uma conexão rápida de internet, para o caso de Clarissa querer lhe mandar um e-mail, o que ele achava altamente improvável.
Chegando lá, Renato, sem nada para fazer, voltou a ficar completamente perdido. Passou a fazer esporte furiosamente. Corria, nadava, brincava com as crianças, comia, dormia, e tudo se repetia. Fazia sexo com Fernanda com freqüência, de forma mecânica e aplicada, como se ela fosse um aparelho de ginástica. Depois de alguns dias, talvez por influência da lembrança de Marcos, foi até a cidade e comprou um longboard usado, e os apetrechos necessários para o surf. Nunca tinha surfado com pranchão, mas sempre tinha achado bonito aquele surf tranqüilo de caminhar sobre a prancha. Desenferrujou um pouco na Praia Dura, e percebeu que ainda sabia ler as ondas e se posicionar lá fora. Seus fundamentos estavam intactos. Passou a pegar o carro de manhã cedinho e ir para Itamambuca, chegando antes do crowd dos locais, e em pouco tempo dava os primeiros passos na prancha sem simplesmente se arrastar, e fazia amplas curvas nas gordas e longas paredes. Estava fascinado com o prazer infantil que o surf lhe proporcionava, e aquela praia ainda quase selvagem de manhãzinha era uma experiência e tanto de contato íntimo com a natureza. Volta e meia via tartarugas, algumas voando nas ondas verdes transparentes, e cardumes de peixes pulando de uma vez só para fora d’água.
Um dia estava indo para lá, no trevo da saída da cidade, e cruzou com um carro com uma prancha em cima que lhe fez sinais de farol e buzinou. Encostaram, e Renato reconheceu um dos madrugadores do pico, vestido com um velha camiseta “diga não às drogas”. Disse-lhe que o mar estava muito mexido, e sugeriu irem para a Vermelha do Centro. Chegando lá, constataram que não estava lá essas coisas. Havia uma roda na areia de jovens tresnoitados, possivelmente drogados, e Juninho, como se apresentou, comentou que aquela visão lhe dava calafrios de horror. Renato percebeu que ele era um ex-drogado tentando refazer a sua vida, e se identificou com ele. Voltaram a Itamambuca, e o mar, apesar de mexido, tinha alguma consistência e o surf foi possível. Juninho usava uma prancha velhíssima, um longboard escuro dos anos e do sol, que havia sido de seu pai. Trabalhava em um restaurante por quilo no centro, e surfava cedinho. Ficaram amigos e essa ligação ajudou Renato a ser tolerado pelos locais.
Na noite de natal, comemorado só pela pequena família e a babá, com um peixe assado recheado de farofa, entrou uma violenta frente fria, com chuvas e ventos fortíssimos. De manhã cedo, Renato pôs o pranchão na capota e foi para Itamambuca. Tinha visto a tempestade chegando na internet, e achou que se estivesse surfável, era o único lugar que suportaria aquele volume de onda. Sentia-se em forma e apto a encarar qualquer mar. A grande tempestade marinha tinha encostado, e chegando lá Renato viu um mar enorme, totalmente desorganizado e caótico, o vento sul soprando com intensidade, o céu carregado e a praia deserta. Renato sofreu a tentação do eficiente canal formado pelo rio, e tomou a decisão temerária de entrar, com um ímpeto quase suicida.
Com as fortes chuvas da noite, o rio, cheio de folhas e galhos, estava com o volume mais que duplicado e parecia um trem expresso. Depois de remar um pouco pelo canal junto às pedras, que era fundo e por isso as ondas lá quase não quebravam, Renato percebeu que não tinha mais volta. Com a força da corrente, a única saída era o oceano. Pegou pela frente duas ou três espumas maiores, que não chegaram a interromper a sua marcha, e logo que se viu livre da arrebentação, começou a remar em direção ao norte, para fugir da corrente do rio que o arrastava para fora. De repente entre um balanço e outro das grandes marolas que oscilavam, percebeu que um pico escuro se aproximava. Sentou-se a cavalo na prancha, e viu que era uma enorme série entrando, a maior que já vira na vida, a uns cinqüenta metros de onde estava. Renato remou com todas as suas forças em direção àquela massa, tentando evitar pensar na violência do caldo que tomaria. Subiu a grande onda na hora em que ela começava a se esboroar, e ao chegar lá em cima capotou a prancha rapidamente e segurando-a firmemente por cima dele conseguiu passar sem ser sugado. Desvirou tão rápido quanto pôde na prancha, e viu que atrás daquela vinha outra maior ainda. Remou novamente com toda a velocidade que pôde e conseguiu contornar os picos meio indefinidos que quebravam na grande parede, conseguindo passar ileso entre dois deles. Continuou remando, e passou a terceira, que já era menor, com facilidade.
Sentou na prancha e constatou que estava fodido e mal pago. Estava no meio do oceano, além da linha da ponta de pedra, e a forte corrente marinha, aliada à influência do rio, o arrastava para o norte e para fora. Possivelmente a velocidade da corrente era igual ou maior do que a da sua remada, o que podia significar que talvez não conseguisse voltar para a zona da arrebentação, e sair da água. Tratava-se de lutar pela vida. A seu favor, estava o fato de que o longboard tinha boa flutuação e uma remada muito eficiente. E estava em boa forma, o que significava que poderia remar de forma constante por uma hora ou mais. Decidiu que tomaria um rumo enviesado na corrente, tentando atravessá-la aos poucos, para se aproximar da praia em direção ao canto norte. E pôs-se a remar, sem muita segurança no seu plano, na sua avaliação da sua posição e das correntes. A sensação era de que não saía do lugar, mas tentou ficar tranqüilo e apenas remar com constância. Remou mais de uma hora até conseguir se aproximar da arrebentação novamente, num lugar onde não mais sentia a corrente para fora, apenas um forte arrasto lateral. Agora era pegar uma daquelas enormes ondas fechadas para tentar sair. Não teve que esperar muito, e logo uma série que varreria a praia inteira levantou-se nas suas costas, e Renato, sem alternativa, remou com as forças que lhe restavam num drop atrasado e sem esperança. Mal levantou na prancha a onda o pegou e o arremessou ao fundo segurando-o lá por longos segundos, durante os quais ficou perdido e sem ar. Sentiu a puxada forte do leash na perna, quando punha a cabeça para fora, e engoliu água. Outra onda veio atrás, e a cena se repetiu, antes que ele tivesse a oportunidade de subir na prancha. Depois de alguma luta, finalmente conseguiu pegar uma espuma e atravessou quase toda a extensa arrebentação quando caiu num buraco perto da areia. A corrente forte começou a puxá-lo novamente para fora, e Renato só não se desesperou porque sabia que não havia mais risco. Remou com suas últimas forças para sair da água e quando pegou a última espuminha deixou-se levar até que estivesse com água pela canela. Saiu cambaleando da água, vomitou, jogou-se na areia e dormiu por uma hora. Estava quase no canto norte.
Quando acordou, dali a uma hora, a praia ainda estava deserta, e sem ninguém que testemunhasse ou com quem pudesse comentar o seu desastre, pôs a prancha na capota e voltou para casa. Não contou nada a Fernanda, com vergonha da sua irresponsabilidade. Sabia que quase tinha morrido por pura estupidez. Dormiu quase o dia inteiro. No dia seguinte, pôs a prancha novamente na capota, foi a Itamambuca. O tempo havia melhorado, o mar havia se alinhado, e depois de pelejar uma hora e meia em tentativas erradas, pegou uma enorme e bem formada onda, com a qual foi quase até a areia e que lhe deu um enorme prazer. Sentiu plenamente reparada a sua cagada do dia anterior. Sabia que não teria forças para pegar outra naquele dia e foi embora.
Na volta para casa, fez um balanço mental do atribulado ano, e resolveu que não se deixaria mais levar por paixão alguma. Deixaria Clarissa em paz e seguiria sua via. Seria sempre prático e racional. E foi o que fez. Ele e Fernanda voltaram a fazer o papel de casal feliz, que acabou se incorporando de novo às suas personalidades, e viviam bem. Renato, após participar das reuniões de análise de conjuntura e mercado no asset-management onde investira o seu dinheiro, foi considerado uma contribuição valiosa. Boa parte dos fundos era da própria equipe, e Renato acabou conseguindo uma posição. Apenas um resquício do seu comportamento desviante se mantinha. Todo dia de manhã, ao chegar ao escritório, a primeira coisa que fazia era checar o e-mail que tinha usado para mandar mensagens para Clarissa. A segunda era dar uma busca no seu nome para ver se havia alguma novidade sobre ela. No íntimo, sonhava. Afinal, eram jovens e o mundo tão cedo não pararia de dar as suas voltas.
FIM