sexta-feira, julho 28, 2006

Una canción desesperada

De carro pela cidade, o trânsito já um pouco esparso depois da hora do congestionamento, desci do espigão da Paulista pela Rebouças, passei por baixo do túnel da Faria Lima, peguei a marginal Pinheiros na direção sul, e fui procurar o bairro da minha infância e adolescência, explorado de bicicleta, skate, motos e motonetas, e até um dodge dart azul, no tempo em que os carros eram coloridos por influência dos hippies, antes da ditadura do prata e do preto. Errei a rua da igrejinha, mas depois achei a rede de neurônios que representava aquela geografia e liguei. Daí refiz todos os circuitos, reconhecendo as casas do meu tempo embaixo daquela glace das reformas e os muros altos, e esquadrinhei o asfalto novo dirigindo suavemente pelas curvas conhecidas, acelerando um pouco mais em um ou outro ponto. Tudo isso ouvindo um pop suave. Então me enfiei pelos túneis por baixo do Rio Pinheiros, Santo Amaro, até submergir por baixo do Ibirapuera no ritmo seriado das luzes a setenta por hora, despontando na Sena Madureira e subindo novamente o espigão, pra chegar em casa só um pouco atrasado.

quinta-feira, julho 27, 2006

Alalaô


Este cone quase perfeito tem o sugestivo nome de Licancabur, dado ao vulcão pelos antigos habitantes do local onde está San Pedro, que o adoravam como deus e mantinham o mau hábito de oferecer-lhe jovens e crianças em sacrifício. Uma montanha de quase seis mil metros como esta merecia uma consistente cobertura de neves eternas, ainda que tal decoração possa ser considerada clichê e até cafona. Intrigado com a ausência, consultei alguns locais que asseveraram que há dez anos atrás o adereço existia de forma permanente, o que confirmei em cartões postais, que não têm em geral preocupação com atualidade. Ao comentar este fato com a recepcionista do hotel, moradora mais ou menos recente, ela o desmentiu e disse que poucas semanas antes da minha chegada o monte estava coberto até a metade de neve. Fiquei pensando nas notícias que têm saído sobre a elevação da temperatura do planeta, e deu-me a dúvida se não haveria algum sensacionalismo nas fotos de geleiras sem gelo e montanhas que estamos acostumados a ver com neve ao cume, como o Kilimanjaro, desprovidas do simpático acessório, e se as tais neves eternas não são tão eternas assim, mas sujeitas a alguma sazonalidade. Mas o calor que tem feito este verão em São Paulo, com temperatura recorde para o mês de julho de mais de trinta graus, as ondas de calor na Califórnia e na França provocando a morte de muita gente, e uma notícia de hoje no Estadão, denunciando significativo e veloz aumento de gás carbônico e outros gases na atmosfera, responsáveis pelo famoso efeito estufa, estão me fazendo começar a acreditar que a coisa é pra valer. Quando essas notícias começaram, houve uma voz dissidente que disse que o fenômeno era cíclico. O planeta esquenta, aumenta a evaporação, conseqüentemente se intensifica o regime de chuvas, a cobertura vegetal se desenvolve e a temperatura volta a baixar. Fez sentido pra mim, e me apeguei a esta idéia. Agora, já estou achando que a onda contrária não vai dar conta. Especialmente depois do fiasco do Protocolo de Kioto graças à negativa daquele país dos automóveis gigantes de motores enormes. Acho que está na hora de começar a andar de bicicleta. Churrasco, nem pensar.

quarta-feira, julho 26, 2006

Lhama



Respondendo a indagações, não só conversei com algumas lhamas, como o bravo Capitão Haddock – sem o privilégio da ducha, característica do animal da qual não consegui apurar a veracidade – como tive o duvidoso prazer de experimentar a sua carne.



No pitoresco pueblito de Machuca, lá no altiplano, que mais parece uma desabitada cidade cenográfica, na qual estavam só três ou quatro habitantes supostamente locais, um deles vendia churrasquinho de lhama, no melhor estilo “de gato”, entremeando à carne rodelas de salsicha barata, para conseguir atender a grande clientela turística a dois dólares o espetinho. Escura e de sabor forte, parece carne de caça. Só não duvidei do pedigree dos moradores porque vi um deles pegar um saquinho de quínoa, que as boas lojas de produtos naturais vendem caro como o cereal dos reis, e macerar num pilão de pedra ao pé de uma casa usando uma outra pedra, igualzinho ao que vi em um museu arqueológico, segundo o qual vem sendo usado há dois mil anos.

segunda-feira, julho 24, 2006

Turista



Este lugar aparentemente intocado, a mais ou menos quatro mil e trezentos metros de altura, entre dois vulcões de altura aproximada de seis mil metros, faz parte de uma região devastada pelo turismo. O turista é sempre um predador. Não adianta se iludir, pode ser jovem, mochileiro, interessado na cultura do lugar visitado, não deixar lixo, viajar discretamente em pequenos grupos para lugares pouco procurados, será sempre um turista, tão danoso como uma grande excursão de pacote. O turismo em San Pedro de Atacama deve ter começado assim, como começou em Canoa Quebrada, Trancoso, e tantos outros lugares. O turista chega, se encanta, e compra a preço de banana, que aos locais parece uma fortuna, tudo o que eles têm, até que às tantas os naturais vão morar na periferia de onde moravam, e trabalhar para os turistas que se radicaram no novo paraíso, armados de capital e “cultura cosmopolita”: basicamente saber o que gostam os turistas. Aconteceu isso tanto no litoral paulista, com os caiçaras, como no Havaí, onde os descendentes dos reis agora são favelados sem vista para o mar, e empregados dos hotéis e estabelecimentos dos norte-americanos. San Pedro continua sendo uma vila de ruas de terra e casas de adobe, só que virtualmente todas as casas – com exceção dos pequenos armazéns – se transformaram em hotéis, restaurantes, lojas de artesanato e agências de turismo, tocados por forasteiros. Como aconteceu num período mais recente, em que o acesso à informação é mais fácil para todos, me pareceu que os atacamenhos não se deram tão mal. Moram em ruas calçadas na periferia, em casas novas com confortos modernos, como bons eletrodomésticos e computadores, alguns recebem polpudos aluguéis por seus imóveis no centro, e a comunidade administra o ingresso dos parques onde estão atrações turísticas, o que não é pouco. Ainda assim perderam a cidade onde viviam, que virou uma espécie de parque temático habitado por turistas do mundo inteiro. A sedução da prosperidade é irresistível, mas é uma acomodação difícil e traumática. Uma hora entrei na igreja do século XVI, ainda viva e em pleno funcionamento que pouco se abre, e dois locais estavam concentrados rezando. A imediata invasão dos turistas, fazendo o piso ranger, e os murmúrios dos comentários quebravam o silêncio sepulcral que a atividade requer, até que um dos circunspectos rezadores, com a concentração já perdida, visivelmente irritado, advertiu um turista que era proibido tirar fotos. É o preço.

terça-feira, julho 11, 2006

Férias

Pronto, liguei o foda-se, tomei duas canjebrinas (por enquanto), amanhã de madrugada zarpo para onze dias de férias sem crianças. Uma passagem, uma gaitinha, e um destino incerto. Se der mando umas novidades. Inté.

Pangaré

Pode ser óbvio, mas segundo a minha experiência, as pessoas tendem a reagir umas às outras de acordo com o modo como são tratadas. O marcador italiano de Zidane, segundo o boato mais recente, reagiu à sua arrogância do francês que teria lhe dito ao ser puxado pela camisa algo como “se você quer minha camisa tanto assim, te dou depois do jogo”, afirmando que “nós sabemos que o seu pai é terrorista e sua mãe uma prostituta”. Moral de lado, a agressão foi magnífica. Zidane fez que se afastava até atingira a distância necessária, e virou-se de repente, aproveitando-se da surpresa, e atingiu o peito do ofensor em cheio, bom de cabeceio como é, derrubando o cara no chão. Foi tratado como terrorista e reagiu como terrorista. Tenho visto isso por aí. Se você tratar o seu mecânico como um desonesto, que vai lhe roubar de tudo que é jeito, ele vai perceber a sua desconfiança e reagirá à altura, se aproveitando mesmo. Acredito que esse tipo de ruído na comunicação tem até o poder de transformar honestos em ladrões. Trate uma pessoa com confiança e respeito, e ela tenderá a te devolver a confiança. Talvez até uma pessoa desonesta te poupe, por ser reconhecida como boa, e aproveitar essa sensação agradável com alguém. Trate sua mulher como uma traidora, e ela te trairá. Pra mim isso é verdade, pelo menos como tendência. O que não pode é exagerar. A carga não pode ser excessiva. Trate um pangaré como campeão e ele só vai se revoltar.

quinta-feira, julho 06, 2006

Amanhã eu conto

Depois de um mês de enrolação, a alteração sem qualquer explicação dos planos, do four skiff (quatro remadores, remos duplos) – para o qual contribuí com uma grana em remos que não vou usar – para o quatro sem (quatro remadores, um remo para cada um), o barco começou a treinar ontem. Nesse dia cheguei à raia todo pimpão às seis e meia, e o técnico, onipotente e insondável como o Javé do antigo testamento, mediu-me com repulsa e desdém, acusando-me da terrível falta de não ter comparecido às cinco da manhã. Claro que não adiantou nada eu ponderar que não tinha sido avisado, defesa que tinha o defeito de transferir a responsabilidade para ele, e assim, de nada valia. Hoje eu acordei às quatro e meia e saí no barco, noite fechada e cerração, só com as luzes dos cartazes da Marginal Pinheiros, e deu pra ver que vai ser preciso muito trabalho pra acertar a remada. Começou mal e vai piorar. O que eu não contei ainda, é que quarta-feira que vem vou viajar e vou perder sete treinos. A regata é no começo de agosto, então não sei se vai dar pra eu permanecer na guarnição. Estou bem animado com o remo, e é muito mais divertido remar em grupo do que sozinho, mas esse sujeito já está me fazendo perder minha enorme paciência.

terça-feira, julho 04, 2006

Viajar leve 2

Boa parte do peso morto que carregamos, obrigações várias, vêm dos nossos próprios bens, que graças à interferência do estado nos atos da vida cotidiana cada vez maior, dão mais trabalho do que evitam, como era de se esperar. Por exemplo, um carro. IPVA, multas, pontos, renovar a carta, escolher um posto honesto para abastecer, pedágio, sem parar, manutenção, revisão, seguro, seguro obrigatório, será que vale a pena? Porque não uma bicicleta pra distâncias curtas, táxi para as médias, e ônibus ou avião para as maiores? Ou a casa. Depois de comprada, o IPTU, o condomínio, o jardineiro, a empregada, as contas de água, luz, gás, tv, telefone, segurança. Fazendo um exercício de futurologia, será que a tendência não é nos livrarmos de tudo isso e entregarmos a profissionais, como já fazemos com as festinhas de criança e a lavanderia? Será que o sistema dos flats com serviços de hotelaria não vai se ampliar e melhorar e nos salvar definitivamente do chatíssimo trabalho doméstico, incluindo a administração da casa? Imagine pegar tudo o que você tem, converter tudo em grana, aplicar e não digo viver, mas morar e se transportar com o rendimento do capital desses itens, e não ter que cuidar de carro nem da casa. Não combinaria melhor com a nova família do casamento dissolúvel? Casou, muda de um apartamento, chalé, bangalô, flat, o que quer se chame, “single”, para um duplo. Teve filho, abre-se uma porta para um anexo. Separou, pega sua malinha e volta para o single. Claro que teria que ter um jeitão mais de casa e menos hotel do que os flats atuais.

segunda-feira, julho 03, 2006

Viajar leve

Sempre fui um mau acumulador. Sou desorganizado, indisciplinado e perdulário. Não tenho grandes aspirações de consumo, embora tenha ocasionalmente algumas urgências para adquirir certos bens, normalmente discos ou livros, atraído por uma referência qualquer do interesse do momento. Já gastei bastante dinheiro com instrumentos musicais, que estão abandonados em seus estojos, não digo se deteriorando muito porque não precisam grandes cuidados, mas quem for usá-los terá que fazer uma boa revisão. Os livros e discos vêm e vão. Poucos ficam. Numa mudança perdi algumas caixas de livros que ficaram guardadas num sítio, e movidas do lugar protegido onde pus tomaram chuva. Os discos, tenho algumas caixas cheias de vinil, alguns sem capa outros só a capa, e mesmo os mais recentes cds, muitos já se perderam. Um amigo meu aspirante a budista diz que essas coisas tem que circular mesmo. Como sou mau zelador, não acho que as mereça. Coisas mal guardadas não servem pra nada, pois quando se precisa não se acha, quando se acha, não está em condições de uso. Melhor não tê-las. Filmes, nunca cogitei comprar uma fita de vhs na minha vida. Ainda que depois de alguns anos rever um filme - vale para livros também - proporcione tanta novidade quanto da primeira vez, pra mim não vale a pena guardar tanto uma coisa para usar tão pouco. Quanto aos discos, a repetição é importante: ou você gosta bastante dele, e ouve a ponto de impregnar o seu cérebro de forma permanente da sua memória, ou não valeu a pena tê-lo comprado. Há pessoas que expressam sua personalidade através do patrimônio, o que eu muito respeito. Um sujeito com que eu toquei tinha uma imensa coleção de discos, organizada por ordem alfabética do artista ou conjunto, com exceção dos clássicos, por autor. O grosso da coleção era de rock. E era ótimo ficar na casa dele conversando sobre música, conversa que era ilustrada por músicas ou trechos de músicas que ele localizava e tocava com uma agilidade impressionante. Ele morava num pequeno apartamento totalmente tomado por discos, algo como um imenso I-pod analógico. Ainda bem que com toda a facilidade de armazenamento, indexação e circulação que há hoje em dia, com tudo isso reduzido a dados binários, nada disso será mais necessário.